Experimento que reativou vírus de 48 mil anos quer alertar para retorno de microbiota da era do gelo ao convívio humano

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Por Eduardo Geraque em Jornal da Unesp | Há 48 mil anos, boa parte do nosso planeta gemia de frio na mais recente Era do Gelo, coberto de neve e cortado por grandes geleiras. Sobre sua superfície se deslocavam animais imensos e estranhos, como rinocerontes-lanudos, alces gigantes e preguiças do tamanho de elefantes, e a humanidade dispunha apenas de ferramentas de pedra polida para sustentar seu modo de vida de caçador coletor nômade. Agora, graças à combinação de avanço tecnológico e mudança climática, um minúsculo fragmento daquele mundo perdido varou as eras e reapareceu em pleno ano de 2023, na forma de um vírus. Denominado Pandoravirus yedoma, ele permaneceu quase quinhentos séculos oculto no subsolo da Sibéria até ser reativado por um experimento de laboratório.

O autor da proeza foi o francês Jean-Michel Claverie, professor aposentado de genômica na Escola de Medicina da Universidade Aix-Marseille em Marselha, França. Ele é também o primeiro autor de um artigo divulgando o feito, publicado este ano na revista Viruses. Na verdade, ele e sua equipe de colaboradores trabalharam com 13 cepas de vírus, de idades diferentes, coletadas em sete pontos da região do Ártico da Sibéria, e mostraram que elas poderiam voltar a infectar outros seres vivos – no caso, amebas especialmente cultivadas em laboratório para o experimento.

Um dos fatores que permitiu esse ressurgimento são as consequências do processo de mudança climática e de aquecimento global, cada vez mais intensas. O conjunto das áreas do planeta que contém água em estado sólido é denominado criosfera. Entre os elementos da criosfera estão as áreas permanentemente cobertas por gelo que, estima-se hoje equivalerem a 10% da área da Terra, e camadas subterrâneas de solo congelado, denominadas permafrost. A elevação da temperatura tem resultado no derretimento do gelo superficial, principalmente do Ártico e também do permafrost. É de lá que estão vindo esses vírus. No ritmo em que avança o derretimento do Ártico, a previsão é que quantidades colossais de microrganismos sejam liberadas nas próximas décadas. O desafio dos cientistas agora é compreender e antever quais podem ser as consequências da reativação desses microrganismos para as dinâmicas do planeta, e para a humanidade.

O caçador de vírus zumbis

Claverie chama esses vírus de “vírus zumbis”, numa espécie de analogia pela capacidade que eles teriam de voltar à vida – embora a discussão sobre se vírus podem ou não ser considerados seres vivos seja antiga e esteja ainda em aberto. Ele vem trabalhando com esses microrganismos desde 2012, e por questões de segurança usa apenas vírus capazes de contaminar bactérias, e não humanos.

Em 2014, o francês já havia atraído muita atenção, por parte da mídia e da comunidade científica, ao mostrar que cepas com 30 mil anos de idade podiam ser reativadas e voltar a infectar bactérias. Em mais recente experimento, ele empregou uma amostra de 48,5 mil anos retirada de um lago subterrâneo, 16 metros abaixo da superfície. As cepas mais recentes, datadas em 27 mil anos antes do presente, estavam no remanescente da pelagem de um mamute.

E atrair atenção é um dos objetivos de Claverie. Ele se diz preocupado com as possíveis consequências do degelo do Ártico, e mais especificamente do permafrost, no que diz respeito à ressurgência de microrganismos contagiosos que habitaram nosso planeta no passado.

Durante a pesquisa, além de conseguir fazer com que os microrganismos voltassem à vida, os cientistas também constataram que as cepas permaneceram com seu poder de infectar outros seres vivos – no caso, amebas – totalmente intacto. “São vírus naturalmente presentes no meio ambiente que reviveram sem nenhuma manipulação genética. As amostras do permafrost foram simplesmente colocadas em cultura no laboratório”, explica Jean-Michel Claverie ao Jornal da Unesp.

O cientista francês foge da polêmica quanto à possibilidade de que esses experimentos possam ajudar a redefinir, ou problematizar, o conceito de vida. Mas está certo de que os resultados obtidos nos últimos anos devem servir como alerta. “Trabalhamos apenas com vírus capazes de infectar amebas. Mas sabemos que vários outros vírus estão presentes no mesmo solo, incluindo alguns com poder de infectar animais. Está demonstrado que microrganismos com 50 mil anos podem sobreviver no permafrost mantendo ativo seu poder de infectar outras células. E quando ocorre o derretimento desses solos, eles são liberados”, explica. A principal hipótese de estudo do grupo, segundo Claverie, está cada vez mais confirmada. “O vírus de um passado distante pode trazer de volta doenças que não conhecemos. E, talvez, eles também tenham contribuído para a extinção dos neandertais e dos grandes animais do Ártico, como os mamutes e os rinocerontes-lanudos.”

Houve contaminação na Rússia?

“É um assunto delicado, que não deve se prestar ao alarmismo”, diz o microbiologista Luis Andrés Yarzábal, pesquisador da Universidade Católica de Cuenca, no Equador. Ele é um dos autores do estudo “Climate change, melting cryosphere and frozen pathogens: Should we worry…?”, publicado em 2021 na revista Environmental Sustainability  Para o microbiologista, é preciso determinar o verdadeiro risco do descongelamento e do derretimento da criosfera, sem no entanto descambar para exageros de qualquer sorte.

Para Yarzábal, ainda não se pode fazer afirmações sobre perigos reais que os microrganismos adormecidos no gelo possam eventualmente causar. “É fato comprovado que muitos vírus permanecem ativos por muito tempo, milênios inclusive, no gelo e, quando reativados, são capazes de infectar suas células hospedeiras. No entanto, até o momento, não há evidências científicas de que isso tenha acontecido, embora haja evidências experimentais, obtidas em laboratórios, de que isso possa acontecer”, diz. É importante também lembrar que os vírus, por serem parasitas moleculares, precisam necessariamente de uma outra célula animal, vegetal ou de até um outro microrganismo para se multiplicar e se espalhar entre a população humana.

Quando o foco muda de um vírus para uma bactéria, ainda que o pano de fundo da abordagem científica seja bastante parecido, um caso real, ocorrido em 2016 na Sibéria, deixa as cores do quadro mais carregadas. Em agosto, portanto no alto verão, dezenas de pessoas deram entrada no hospital e uma criança morreu. O governo russo confirmou 21 casos de antraz, doença causada pelo Bacillus anthracis, em humanos na região da península Yamal, já dentro do Círculo Polar Ártico, além da contaminação de mais de 2 mil cervos.

Os estudos científicos feitos na época atestam a presença da bactéria tanto no solo quanto na carcaça de um cervo que emergiu do gelo por causa das altas temperaturas do verão. Há mais ou menos um século, a mesma região remota da Sibéria havia sido atingida por uma epidemia de antraz, que afetou principalmente os animais. Naquela região a camada do permafrost chega a alcançar 300 metros de espessura, o equivalente a um prédio da altura do Empire State, em Nova York. Ou seja, o descongelamento dessa caixa de pandora pode trazer muitas revelações para os cientistas.

Yarzábal  diz que “segundo todas as indicações e evidências disponíveis, parece que aconteceu” a reativação de bactérias patogênicas e contagiosas como a causadora do antraz. Ele faz questão de frisar o uso do termo “parece”. “Digo isso porque até agora não foi absolutamente provado que tenha sido assim, embora todas as indicações apontem para essa conclusão.” Se de fato o cervo morto há aproximadamente um século guardava bactérias nocivas dormentes, que podem contaminar o homem e animais vivos, o mesmo processo pode ocorrer com outros grupos animais e também com as plantas.

Estudo preventivo com antibióticos

Dentro do campo das possibilidades, outro sinal de alerta recente foi dado por pesquisadores do Instituto de Genética Molecular Kurchatov e pelo Centro de Pesquisas em Biotecnologia, ambos da Rússia. Os cientistas russos, em seus laboratórios, pesquisaram a relação que pode existir entre microrganismos congelados há milhares ou milhões de anos com os antibióticos do século 21. 

“As bactérias que estudamos foram isoladas do permafrost com idade entre 15 mil e 1,8 milhão de anos, mas tinham muito em comum com as cepas modernas. Os resultados mostram que a situação é assustadora. O aquecimento global pode ser retardado, mas nunca interrompido, e o processo pode resultar em novas infecções. Um estudo desses potenciais patógenos, que neste momento estão enterrados no permafrost, pode salvar nossas vidas e saúde no futuro”, afirma Nikolai Ravin, chefe do Laboratório de Clonagem Molecular do Centro de Pesquisa em Biotecnologia da Rússia. 

Os grupos de pesquisa russos analisaram o comportamento, por meio de análises genômicas, da bactéria Acinetobacter woffii. A espécie analisada não é patogênica e está atualmente presente em vários habitats no planeta. Mas outras representantes do mesmo gênero, com cargas genéticas bastante semelhantes, são associadas a surtos de infecção hospitalar pelo mundo afora. Mais uma vez, como defendem os pesquisadores russos, o caminho é investir em pesquisa.

Microrganismos não patogênicos também podem criar problemas

O risco indireto para os seres vivos, e os seres humanos incluídos, talvez seja até mais potente e real, avalia o grupo de pesquisadores latino-americanos encabeçado por Yarzábal. “O problema maior não parece emergir da reativação de microrganismos patogênicos, mas nos microrganismos em geral que estão aprisionados em toda a criosfera”, afirma o cientista.

O metabolismo dos microrganismos resulta na liberação de gás carbônico, um gás de efeito estufa que contribui bastante para o aquecimento global. Não é difícil imaginar  a quantidade de gás carbônico que será liberada na atmosfera quando esse batalhão de bactérias e vírus acordar e começar a consumir o que estiver ao redor delas.

Segundo estimativas do grupo liderado pelo equatoriano, o gelo sobre a Terra hoje guarda o equivalente a 10 elevado a 28 de microrganismos. Esse número, a depender de qual a estimativa adotada, é entre 10 mil e 1 milhão de vezes superior ao do total de estrelas no Universo. “Apenas no permafrost do Ártico estão armazenados 1,7 bilhão de toneladas métricas de carbono. Portanto, apenas ao se alimentar, os microrganismos vão liberar quantidades enormes de gás carbônico na atmosfera”, diz Yarzábal. Além disso, o próprio derretimento do permafrost por si só já resulta na liberação de carbono para a atmosfera

Há outro processo biogeoquímico em paralelo  que também preocupa. Ao sair do gelo e permanecer em áreas pantanosas, o que ocorre com frequência em áreas de tundra, os microrganismos também produzem grandes quantidades de metano, outro gás que contribui para o aquecimento médio da atmosfera do planeta. “Esses microrganismos que estão no gelo não apenas representam uma ameaça direta para a sobrevivência humana como também representam uma ameaça indireta de dimensões consideráveis”, explica o pesquisador radicado no Equador.

Um dos maiores glaciologistas do Brasil, Jefferson Cardia Simões, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, também atesta que os riscos, hoje, ainda estão mais no campo da teoria, apesar de o degelo no Ártico avançar em ritmo acelerado, o que significa que mamutes e renas – como a que emergiu na Sibéria em 2016 – estão cada vez mais vindo à tona, e liberando vírus e bactérias. “Uma das grandes questões é se seria possível os microrganismos se espalharem, gerando uma epidemia, em uma região com densidade populacional muito baixa”, afirma o cientista brasileiro.

Simões diz que, em tese, haveria menos chances de que ocorresse algo semelhante em sua área de estudo, a Antártica. “São dois casos bem diferentes.” No Ártico, onde por volta de 30% da massa continental do hemisfério norte tem permafrost, o aquecimento maior está gerando um derretimento acelerado. Na Antártica, o derretimento do permafrost está ocorrendo mais em ilhas subárticas, como no  arquipélago das Shetland do Sul, onde está a estação brasileira Comandante Ferraz. “Menos de 0,3% da Antártica não é coberta de gelo, ou seja, a região com permafrost é muito restrita e, por isso, os riscos também tendem a ser menores”, diz Simões. O fato de a fauna e a flora antárticas serem endêmicas – apesar do registro recente da entrada de espécies invasoras nas áreas insulares – também tende a atenuar os riscos.

Os pesquisadores envolvidos com as regiões polares do planeta não têm dúvidas de que, até para que os riscos possam ser entendidos e controlados, não basta conduzir apenas pesquisas básicas. É necessário que entrem em campo grupos mais estruturados para proceder ao monitoramento, e que sejam capazes de emitir alertas em caso de necessidade. “O melhor programa de acompanhamento é a intensificação da atividade científica orientada para o conhecimento da realidade. Na medida em que dispusermos de mais e melhores informações, os cientistas poderão avaliar quais as possíveis consequências da liberação desses microrganismos”, diz Yarzábal.


Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da Unesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Thalles Moreira

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