Por João Guilherme Bieber em Repórter Brasil | A falta de acesso de autoridades públicas a dados da pecuária prejudica a fiscalização ambiental. Nem o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) nem o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade), órgãos federais responsáveis pela conservação e policiamento ambiental, conseguem consultar guias de movimentação de gado e cadastros de criadores na Amazônia Legal. Com exceção do Pará, os outros oito estados da região (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Rondônia, Roraima e Tocantins) não disponibilizam acesso às informações que facilitariam a identificação de irregularidades ambientais na criação de bovinos, principal causa de desmatamento da floresta amazônica.
A confirmação de que não há compartilhamento de informações entre estados e os órgãos ambientais federais foi obtida pela Repórter Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação. Apesar disso, há reconhecimento de que são instrumentos importantes para o combate ao desmatamento. “São informações decisivas para a qualificação de pessoas que desmatam ilegalmente para a criação de gado na Amazônia, ou que criam, recriam e engordam gado em áreas destruídas anteriormente e embargadas”, defende o Ibama, em manifestação enviada por meio da assessoria de imprensa. Leia aqui a resposta completa da autarquia.
Um exemplo de uso bem sucedido dessas informações vem do próprio ICMBio, que conseguiu identificar atividades de pecuária irregular em unidades de conservação no Pará, único estado que concede acesso a essas referências. O resultado foi que, desde fevereiro de 2022, foram registrados “730 autos de infração totalizando R$ 206,3 mil em multas, decorrentes da movimentação ilegal de 103.529 animais”, informou via LAI o órgão.
Os dados da pecuária são de competência das agências estaduais de defesa agropecuária, responsáveis por controlar os rebanhos para fins sanitários. Elas coletam e administram informações cadastrais dos criadores, como nomes, CPFs, endereços e localização das fazendas, e controlam a movimentação de gado por meio das Guias de Trânsito Animal (GTAs), documentos sanitários obrigatórios que registram deslocamentos do animal. As GTAs informam a origem, o destino e a finalidade de cada movimentação de gado, além da quantidade do rebanho deslocado, faixa etária e sexo do animal transportado.
Cruzados com mapas de propriedades, localização de embargos ou pontos de desmatamento, as GTAs ajudam a identificar os responsáveis pelas ilegalidades e também permitem entrever situações em que há “lavagem de gado”, quando uma fazenda intermediária sem óbices socioambientais é apontada no papel como a origem dos animais, mesmo que isso não reflita a realidade.
“Estes dados deveriam ser públicos. Mas o Ministério da Agricultura e as agências estaduais alegam que as GTAs são para fins de controle sanitário e não querem misturar isso com questões ambientais. A transparência aumentaria a confiança no controle sanitário e ambiental”, defende Paulo Barreto, pesquisador associado do Imazon, organização com foco na conservação e desenvolvimento sustentável da Amazônia. Segundo suas estimativas, publicadas em um estudo recente, 90% da área desmatada na Amazônia foi transformada em pasto.
Segundo Cristiane Mazzetti, porta-voz da campanha da Amazônia do Greenpeace Brasil, o argumento de que a transparência dos dados colocaria a segurança sanitária em risco não se sustenta: “Já existem casos de irregularidades de GTAs mesmo sem haver transparência”, diz. Uma investigação publicada em março pela Repórter Brasil revelou que gado criado dentro da Terra Indígena Ituna Itatá é comercializado sem a emissão de GTAs, em desacordo com as normas sanitárias do Pará.
Após os últimos anos de desmatamento em alta, Luiz Inácio Lula da Silva venceu a eleição e assumiu a presidência com promessas de combate ao desmatamento ilegal. Para isso, retomou o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), que tem como meta alcançar o desmatamento zero na região até 2030. Criado em 2004, o PPCDAm reduziu o desmatamento da Amazônia em 83% entre 2004 e 2012.
A versão preliminar da 5º fase do PPCDAm reconhece a importância dos dados da pecuária para a fiscalização ambiental e controle do desmatamento. Entre as 176 linhas de ação, prevê a integração de bases de informações, inclusive de saúde animal, para aprimorar o combate a ilícitos ambientais, sanitários e fiscais. Também menciona a necessidade de “responsabilização administrativa e civil solidária da cadeia produtiva que adquire produtos procedentes de desmatamento ilegal de fornecedores diretos e indiretos” e o desenvolvimento de sistemas de rastreabilidade dos produtos agropecuários na Amazônia.
Além disso, o Ibama, em sua resposta ao pedido de informação feito pela Repórter Brasil, afirmou que em 2023 “retomou as tratativas com as agências de defesa agropecuária dos demais estados da Amazônia Legal para acesso a essas informações”. Contatado pela reportagem, o órgão não deu estimativa para isso, mas destacou que, “com as novas diretrizes do PPCDAm, é esperada uma ampliação do compartilhamento de informações entre os órgãos de governo para o combate ao desmatamento ilegal”.
Ainda que as tratativas avancem com os governos estaduais, não há garantia de acesso imediato às informações do setor da pecuária. Em sua resposta via LAI, o ICMBio revelou que embora o acordo de compartilhamento de informações tenha sido firmado em 2018, seus técnicos só conseguiram efetivamente entrar no sistema mais de três anos depois, em fevereiro de 2022. “Com relação aos outros estados, o ICMBio não possui acesso direto aos dados, havendo a necessidade de acordo semelhante para tal”, complementa o órgão.
A cadeia da carne está associada a diversas irregularidades, como criação ilegal em terras indígenas e o desmatamento ilegal. Como já revelou a Repórter Brasil, o monitoramento dos fornecedores por parte dos frigoríficos é falho.
Por isso, especialistas defendem a transparência destes dados, que poderia auxiliar pesquisas acadêmicas, apurações jornalísticas e estudos de mercado, entre outras finalidades. “Frigoríficos monitoram só o último elo da cadeia da carne e avançaram pouco, ou quase nada, na rastreabilidade da cadeia – incluindo todos os fornecedores indiretos. A transparência das GTAs não é o único caminho possível, mas ajudaria bastante nesse controle. Se os compradores e a sociedade civil tivessem acesso aos dados, isso facilitaria o monitoramento de todos os elos da cadeia”, explica Mazzetti, do Greenpeace Brasil.
O Ministério Público Federal (MPF) também defende a transparência destes dados há anos. Em 2015, a instituição emitiu recomendações para que as agências estaduais agropecuárias do Mato Grosso e do Pará publicassem as GTAs: “É instrumento imprescindível para a concretização do princípio da informação ambiental no que tange à cadeia da pecuária, já que permitirá aos cidadãos e à sociedade civil organizada, com muito mais acuidade, controlar as implicações ambientais que decorrem dessa atividade”, defende a instituição.
Em 2020, o MPF do Pará ajuizou ação para que esses dados se tornassem públicos.
O Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) chegou a prever a publicação dos dados de GTAs em seu Plano de Dados Abertos 2018/2019, mas voltou atrás sob a justificativa de que sua divulgação revelaria transações comerciais e estratégias de negócios e colocaria em risco a segurança dos produtores e as atividades de defesa agropecuária.
Questionado pela reportagem se planeja tornar os dados relativos à pecuária públicos e acessíveis, o MAPA informou que não existe previsão ou iniciativa para divulgação dos dados em questão, explicando que os utiliza para controle sanitário e que eles não são destinados ao público em geral. Leia aqui a resposta completa do MAPA.
Este texto foi originalmente publicado pela Repórter Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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