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Uma pesquisa realizada no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP demonstrou, pela primeira vez, de que forma a melatonina regula a sensibilidade à insulina e a tolerância à glicose durante a gravidez e no período pós-parto. O estudo foi feito em ratas e os resultados foram publicados em fevereiro na revista Journal of Pineal Research.
Melatonina é um hormônio produzido pela glândula pineal, localizada no cérebro, e uma das suas funções principais é o controle dos ciclos do sono e da vigília. “Esse hormônio, que é produzido somente à noite, tem acesso funcional a praticamente todos os sistemas fisiológicos”, explica ao Jornal da USP José Cipolla Neto, professor do ICB e orientador do estudo. “Ela regula a atividade do sistema nervoso, tem um papel importante na regulação dos sistemas cardiovascular, imunológico e reprodutivo, por exemplo.”
A insulina é um hormônio produzido pelo pâncreas, responsável pela redução da glicose no sangue. Quando as células são resistentes, o organismo é incapaz de produzir a quantidade de insulina necessária para a manutenção do seu metabolismo normal. Já a tolerância à glicose é definida como a capacidade do corpo em manter os níveis normais de açúcar no sangue.
Outro resultado importante mostrou que a melatonina também é responsável por todo o remodelamento pancreático que acontece no organismo materno após a gestação.
Em uma gravidez sem ocorrências, a maioria dos tecidos metabólicos aumenta a sua atividade para dar conta não só da mãe, mas também do feto que está em desenvolvimento. Por isso, o pâncreas passa por um processo de crescimento de tamanho, chamado hipertrofia, e de número de células, conhecido como hiperplasia. “Como consequência, há um aumento na produção de insulina”, relata Patrícia Rodrigues Lourenço Gomes, fisioterapeuta e primeira autora do estudo. “Quando a gestante entra em trabalho de parto, há todo um remodelamento desses tecidos, ou seja, eles retornam às condições semelhantes ao período não gravídico [anterior à gravidez].” Se isso não ocorrer, a dedução dos cientistas é que ele vai continuar trabalhando excessivamente e, ao longo do tempo, pode entrar em falência, causando diabete tipo 2.
“Pela primeira vez, se atribuiu um significado funcional ao incremento da produção de melatonina que ocorre naturalmente durante a gravidez”, destaca José Cipolla Neto.
Estudos anteriores ofereceram três informações importantes para os cientistas. A primeira é que há um aumento progressivo de produção de melatonina do primeiro para o segundo e do segundo para o terceiro trimestre da gestação, mas não se sabia o porquê. A outra diz que o metabolismo materno se modifica para satisfazer não só o organismo materno, mas o do bebê (ou dos bebês) em desenvolvimento. E a terceira fala que a melatonina tem uma ação metabólica importante, ou seja, regula a secreção e a ação da insulina, o dispêndio energético e a ingestão alimentar.
Diante desses dados, Patrícia decidiu olhar para o organismo das ratas durante a gestação: como estava o metabolismo de glicose na ausência de melatonina e após a suplementação desse hormônio, além de analisar a atividade do pâncreas nessas duas situações.
A primeira etapa do trabalho foi selecionar ratas virgens (para não haver nenhum tipo de interferência causada por gestações prévias), que foram divididas em quatro grupos experimentais. Um deles era o grupo controle. Nos outros três, os animais foram submetidos à retirada da glândula pineal, processo conhecido como pinealectomia. Dentro dessa categoria, uma parte foi separada para o experimento. “A ideia era mimetizar uma pessoa que não produzia melatonina de forma sistêmica, ou que trabalha em turnos e possui a produção de melatonina comprometida”, explica Patrícia.
Nos outros dois, uma parte das ratas recebeu reposição fixa de melatonina e o outra, doses crescentes ao longo de toda a gravidez. A administração foi feita sempre durante a noite. “Toda essa suplementação foi feita durante 21 dias, que é quanto dura a gestação em ratas, e mais 21 dias, que corresponde ao período da lactação”, esclarece a pesquisadora.
Metade das ratas de todos os grupos foi eutanasiada no momento do parto, ou seja, no 21º dia, e a outra metade, no 21º dia de lactação. Os cientistas extraíram um grupamento de células chamadas de ilhotas pancreáticas. Dentre elas, estão as células β (beta), responsáveis pela produção de insulina. Além disso, amostras de sangue também foram coletadas para a realização de análises metabólicas. “Os ensaios, então, se concentraram no estudo da secreção de insulina, além da avaliação da capacidade de proliferação e morte dessas células β”, elucida Patrícia ao Jornal da USP.
O primeiro resultado do estudo foi que a melatonina não interfere no peso da gestante, seja na sua ausência ou na sua suplementação. Esses dados são importantes porque a gestação é um período em que a mulher ganha peso por conta do feto em formação.
O hormônio do sono é o responsável por controlar a tolerância à glicose e a resistência à insulina. “Quando estamos com a glicose (também conhecida como glicemia) aumentada no sangue, esse estado funciona como um sensor para ativar a síntese de secreção de insulina pelo pâncreas. Se o animal é tolerante à glicose, significa que ele está funcionando muito bem”, elucida Patrícia.
Se o pâncreas não funciona bem durante a gestação, acontece a resistência à insulina. “Os tecidos periféricos, como músculo-esquelético, tecido adiposo branco, músculo cardíaco e fígado são responsivos a esse hormônio. Isso quer dizer que quando tem insulina, esses tecidos entendem que eles precisam internalizar a glicose que está no sangue, para que as células tenham combustível para funcionar”, relata a pesquisadora. “Mas se o tecido da mãe estiver muito sensível à insulina, ele vai pegar toda a glicose do sistema para ela, não sobrando nada para o feto.”
Como a melatonina é o hormônio que regula essa distribuição, os estudos mostraram que os animais pinealectomizados (e que, portanto, não produziam melatonina) não secretavam insulina da mesma maneira que o grupo controle e dos grupos que foram submetidos à reposição endógena do hormônio. Segundo Patrícia, esses dados já sinalizaram que esse era um indício de que o pâncreas não funcionava em sua plenitude nesse período tão crítico, que é a gravidez.
Dando continuidade aos achados, os pesquisadores viram que essas mesmas mães submetidas à cirurgia tiveram o remodelamento pancreático prejudicado. “Elas apresentaram um crescimento excessivo desse tecido em relação aos demais. Aparentemente, o pâncreas tentou se remodelar logo no terceiro dia após o parto, mas no terceiro dia de lactação, observamos uma tendência desse pâncreas a continuar se proliferando”, esclarece a primeira autora. “Pode ser que, a longo prazo, esse tecido trabalhe tão exaustivamente que chegue a falhar em algum momento, causando a diabete tipo 2.”
A melatonina começa a ser liberada no início da noite, quando cai a iluminação natural. Tendo em vista que a noite da Terra na primavera e no outono tem duração média de 12 horas, o pico da produção do hormônio se dá entre 3 e 4 horas da madrugada. Depois disso, os níveis vão caindo e, quando acordamos, a melatonina já deixou de ser produzida. “Mas, claro, esses horários variam, dependendo das estações do ano e se um indivíduo é matutino ou vespertino”, explica Cipolla. “O pico noturno vai acompanhar a fisiologia para a noite para o tipo da pessoa em particular.”
Cipolla ressalta que, na sociedade contemporânea, o ser humano leva a luz do dia para dentro de casa à noite, como o crescente uso de aparelhos eletrônicos (celulares, tablets e computadores). “Até 300 anos atrás, não havia luz elétrica. Esse novo comportamento está levando a população a entrar em um estado patogênico chamado hipomelatoninemia, que é a redução da produção de melatonina pela glândula pineal”, alerta o professor.
“Da forma como estamos vivendo, nos colocamos em uma condição que bloqueia a nossa síntese de melatonina e isso é quase catastrófico”, destaca Cipolla ao Jornal da USP. “Esse é um determinante importante de patologias encontradas em populações urbanas, como doenças metabólicas, cardiovasculares e neurodegenerativas.”
Algumas ações bem simples podem minimizar os danos causados pelo uso contínuo de eletrônicos à noite. Existem programas que bloqueiam o comprimento de onda da luz azul, que é um dos causadores da hipomelatoninemia. Nos Estados Unidos, existem lâmpadas específicas para uso durante a noite.
Já com trabalhadores noturnos, que não podem trocar o tipo de iluminação pois precisam se manter concentrados no trabalho, não há o que fazer. “Eles sempre estarão em dano fisiológico, por isso, a incidência de doenças é muito maior nesses indivíduos, além de a longevidade ser menor.”
Ingerir melatonina sintética, alerta o professor, pode causar danos sérios à saúde. “O indivíduo pode até dormir, mas a vigília dele não vai ser adequada, o sistema cardiovascular não vai trabalhar direito, o metabolismo pode desenvolver problemas seríssimos, como resistência à insulina e intolerância à glicose. Lidar com melatonina não é coisa para amadores. Tem que ter um acompanhamento médico por trás dessa administração terapêutica.”
Patrícia pretende continuar trabalhando com o tema mas, dessa vez, vai olhar para a programação genética dos filhotes. “Será que esse momento de gestação tão crítico foi capaz de alterar, de reprogramar geneticamente as células para o aparecimento de doenças no futuro?”
Já o professor Cipolla, em sua linha de pesquisa, tem o interesse de fazer o uso terapêutico de melatonina em mulheres grávidas saudáveis. Na literatura, explica o professor, já existe uma associação entre a redução da melatonina noturna na gestação com o aparecimento de diabetes gravídico, pré-eclâmpsia (hipertensão arterial específica da gravidez) e eclâmpsia (evolução da pré-eclâmpsia, que coloca em risco a vida da mãe e do feto) .
Olhar para os fetos de ratos gerados em hipomelatoninemia também faz parte dos planos do grupo de pesquisa de Cipolla. Já existem evidências de que um filhote de mãe sem melatonina desenvolve diabete, tem dislipidemia (elevação de colesterol e triglicerídeos no plasma ou a diminuição dos níveis de HDL que contribuem para a aterosclerose) e redução da função pancreática.
Além disso, pode provocar alterações no desenvolvimento desse filhote, tais como retardo no processo de desenvolvimento (abertura vaginal, deiscência do testículo, aparecimento de pelos, tamanho da orelha, abertura dos olhos etc.). “Esse animal será analisado sob todos os aspectos da fisiologia.”
Para finalizar, o pesquisador também está desenvolvendo um trabalho com filhos de mães que trabalharam à noite durante a gravidez. “A nossa ideia é comparar essas crianças com outras da mesma idade, em termos de desenvolvimento psicomotor, metabólicos, cardiovasculares e estrutura do sono, por exemplo”, finaliza.
Fonte: Jornal da USP.
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