O fanatismo religioso é “alimentado por um sistema de crenças absolutas e irracionais que visa servir a um ser poderoso empenhado na luta contra o Mal”, conforme explica o psicanalista Raymundo de Lima em seu ensaio “O fanatismo religioso entre outros“, publicado em 2019 na Revista Espaço Acadêmico.
Segundo Lima, “o fanático acha que pode exorcizar pessoas e coisas supostamente ‘possuídas pelo demônio’, ‘combater as forças do Mal’ ou ‘salvar a humanidade do caos'”, em prol de uma suposta verdade absoluta que ele defende acima de tudo – e contra todos os que não compartilham da mesma crença.
O fanático religioso é o indivíduo que adota um credo cujos princípios seriam supostamente perfeitos e, por isso, presume que esteja autorizado a fazer tudo o que quiser, ainda que seus atos possam ferir outras pessoas moral e fisicamente.
Durante a Idade Média, os fanáticos religiosos cristãos entraram no Oriente Médio para ajudar o Império Bisantino e muitas vezes foram massacrados. Mais recentemente, a história se inverteu – no atentado de 11 de Setembro, coordenado por fanáticos religiosos islâmicos, quase 3 mil americanos, a maioria cristãos, perderam a vida após o ataque às Torres Gêmeas, na cidade de Nova York.
Para compreender o fanatismo religioso, é fundamental compreender os fundamentos da religião e da espiritualidade. Os efeitos do fanatismo religioso na saúde mental estão em uma relação simbiótica. Muitas vezes parece haver uma linha tênue entre o que é benéfico para o estado mental de uma pessoa e o que é aceito como apropriado para as crenças religiosas.
Desde os tempos primitivos, os humanos têm um senso de religião; que existe algum ser ou força todo-poderoso que nos colocou neste planeta. Frequentemente ouvimos histórias de grupos antigos de humanos que adoravam elementos. Com o passar do tempo, os conceitos de religião e adoração evoluíram.
Muitas pessoas, sejam religiosas ou espiritualizadas, encontram conforto na certeza de que existe um propósito maior na vida e de que há uma força responsável pela existência da humanidade. Entretanto, em alguns casos, apegar-se exageradamente a uma doutrina cria barreiras mentais e sofrimento.
O fanatismo religioso pode estar associado a qualquer credo e se manifestar de diversas formas – seja de forma organizada, como acontece em atentados terroristas, ou individual; seja com violência física, seja com discriminação e agressões verbais. No entanto, todas as representações desse fenômeno têm pontos comuns: o radicalismo, o extremismo e um comportamento desmedido de devoção a uma crença particular.
De acordo com estudos, concentrar-se cada vez mais na religião ou em atividades religiosas é um possível sintoma de mania e hipomania no transtorno bipolar. No entanto, esse foco intensificado não é necessariamente exclusivo do transtorno bipolar, pois também pode estar associado à esquizofrenia, ao transtorno esquizofreniforme, ao transtorno esquizoafetivo e a outros transtornos psicóticos.
Por outro lado, em uma revisão da literatura sobre o assunto realizada em 2007, o psiquiatra Harold G. Koenig, professor de psiquiatria e ciências comportamentais da Duke University (EUA), aponta que “embora cerca de um terço das psicoses tenham delírios religiosos, nem todas as experiências religiosas são psicóticas”.
Delírios são definidos como “falsas crenças firmemente sustentadas”, e diferentes tipos incluem delírios paranóicos ou persecutórios, delírios de referência, delírios de grandeza, ciúme delirante e outros. Dois deles, em particular, podem se expressar em um contexto religioso. Aqui estão alguns exemplos:
Além disso, um estudo de 2010 com pacientes muçulmanos com esquizofrenia no Paquistão revelou que, quanto mais religiosos são, mais propensos os pacientes são a experimentar delírios religiosos e ouvir vozes de “agentes paranormais”.
Muitos pacientes com transtornos psicóticos consideram a fé espiritual um importante mecanismo de enfrentamento. Para aqueles que não estão delirando, crenças e atividades religiosas como mecanismos de enfrentamento foram associadas, em alguns estudos, a melhores resultados para a doença como um todo.
Por outro lado, descobriu-se que ter delírios religiosos está associado a um curso mais sério da doença e a resultados piores. Pesquisas mostram que pacientes com delírios religiosos podem manifestar sintomas psicóticos mais graves, uma história mais longa de doença e pior funcionamento antes do início de um episódio psicótico.
Por isso, é essencial que os profissionais da saúde analisem e incluam eventuais crenças na avaliação dos pacientes psiquiátricos como um todo, tendo o cuidado de distinguir fortes crenças religiosas de delírios.
Um estudo de 2013 publicado no Journal of Religion & Health mostrou taxas mais altas de problemas de saúde mental entre aqueles que adoravam um Deus vingativo do que aqueles que seguiam um deus deísta ou bondoso. Os entrevistados sofreram mais com ansiedade social, paranóia, pensamento obsessivo e compulsões.
O problema é que fanáticos religiosos podem optar por recorrer somente a seus líderes religiosos e divindades em busca de cura, em vez de buscar a orientação de profissionais médicos. Em última instância, isso pode levar a casos de esquizofrenia sendo “diagnosticados” como possessão demoníaca – ou doenças físicas sendo encaradas como punição por falta de fé ou devoção vacilante.
Sem o tratamento adequado, os problemas de saúde mental podem se tornar problemáticos para o indivíduo e seus entes queridos e podem criar barreiras para o acesso ao propósito e à paz.
A noção de “falta de fé” é tão prevalente que a American Psychiatric Association teve que desenvolver um guia para enviar aos líderes religiosos. Seu propósito é ajudar os líderes a identificar a diferença entre os crentes devotos e aqueles que sofrem de problemas de saúde mental ou delírios mentais.
Um dos efeitos mais prejudiciais da religião é a Síndrome do Trauma Religioso (STR), que se refere a pessoas que sofrem traumas relacionados à sua religião, especialmente aqueles que foram doutrinados nela e acreditam que Deus é vingativo.
A maneira mais fácil de entender a síndrome do trauma religioso é observar como pessoas LGBTQIA+ ouvem de familiares e amigos que Deus condena sua identidade e que sua existência por si só é um “pecado”.
Ainda criança, o indivíduo absorve essas mensagens e, indiretamente, ou diretamente para alguns, internaliza o medo e a vergonha em torno de sua identidade, o que pode levá-lo a comportamentos de risco na idade adulta, incluindo o suicídio.
A Síndrome do Trauma Religioso foi identificada pela Dra. Marlene Winell, que usou o termo para descrever o trauma vivenciado por pessoas que fugiram de religiões e cultos de tipo autoritário. Os sintomas de STR podem afetar negativamente a capacidade cognitiva, o desenvolvimento emocional, a socialização e a cultura.
De acordo com o Dra. Winell, a STR é uma combinação de “teologia tóxica” e “autoritarismo”, e frequentemente ocorre ao longo da vida de uma pessoa com reforço constante em lugares como escola, igreja ou em casa.
A religião foi, e sempre será, um assunto delicado. Tudo o que podemos fazer é incentivar o respeito a todas as fés, buscar e divulgar informações corretas a respeito das diferentes crenças e, especialmente, ajudar a desmistificar religiões já historicamente marginalizadas, como é o caso das práticas religiosas de matriz africana no Brasil.
Para isso, empatia, compaixão e compreensão constituem um caminho viável para evitar a intolerância, a violência e eventuais problemas de saúde mental associados a manifestações de religiosidade demasiadamente inflexíveis e nocivas para aquele que crê e para os que estão ao redor.
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