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Indígenas de diversas regiões da América do Sul guardam uma pequena semelhança genética com povos que hoje vivem na Oceania e no sul da Ásia, separados por milhares de quilômetros de distância. Integrantes de grupos como os Suruí, os Karitiana, os Xavante e os Guarani-Kaiowá, no Brasil, e os Chotuna, no Peru, têm uma pequena porção de seu genoma – algo entre 1% e 3% – igual à encontrada no material genético dos aborígenes da Austrália e da Papua-Nova Guiné, na Australásia, e dos Onge, da Ilha de Andamão, na Índia, segundo estudo coordenado pela geneticista Tábita Hünemeier, da Universidade de São Paulo (USP), e publicado em 29 de março na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).

Para os pesquisadores, essa semelhança genética entre grupos étnicos vivendo em regiões geograficamente tão distantes indica que esses povos da América do Sul seriam descendentes de um dos primeiros grupos humanos que teriam entrado nas Américas há mais de 10 mil anos. Conhecida como população Y, inicial de Ypykuéra (ancestral, em tupi), esse grupo de antepassados distantes de algumas etnias sul-americanas seria composto por indivíduos mestiços, resultado do cruzamento de populações nativas do Sudeste Asiático (descendentes de um ramo-irmão dos ancestrais dos povos da Oceania e sul da Ásia) com grupos que viviam na Beríngia, a extensão de terra que conectava a Sibéria, na Ásia, ao Alasca, na América do Norte, e estava exposta durante o último período mais intenso de glaciação. “O sinal genético da população Y está amplamente distribuído na América do Sul, embora não esteja presente em todos os povos nativos da região e possa variar de um grupo para outro”, relata Hünemeier.

Mesmo entre etnias aparentadas vivendo em regiões próximas, o sinal pode variar. A proporção do genoma semelhante à dos povos da Oceania chega a 3% em povos nativos do litoral do Peru e está estimada entre 1% e 2% nos Xavante, que vivem no planalto Central, e os Suruí e os Karitiana, originários da Amazônia. Essa distribuição em mosaico, de acordo com os geneticistas, ocorre tipicamente com trechos do genoma que foram compartilhados há milhares de anos por populações distintas. “Com o tempo, traços genéticos podem ser mantidos ou perdidos ao acaso”, explica Hünemeier, responsável por um projeto do Programa Jovem Pesquisador, da FAPESP, que investiga a diversidade genômica dos povos nativos das Américas.

A geneticista da USP e colaboradores das universidades federais do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Paraná (UFPR), no Brasil, e da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, já haviam identificado os sinais (marcadores) genéticos da população Y nos Karitiana e Suruí, que vivem em Rondônia, e nos Xavante, que habitam Mato Grosso, em 2015. Os dados disponíveis à época, no entanto, sugeriam que a população Y teria sido um grupo isolado, que haveria entrado nas Américas há mais de 6 mil anos, e não davam pistas do provável trajeto percorrido para chegar à América do Sul.

No trabalho atual, os biólogos Marcos Araújo Castro e Silva e Tiago Ferraz, da equipe de Hünemeier, em parceria com colaboradores da UFRGS e da Universidade Pompeu Fabra, na Espanha, analisaram marcadores genéticos distribuídos por quase todo o genoma de 383 indivíduos integrantes de 58 grupos nativos das Américas (49 da América do Sul e 9 da América do Norte), a maior amostra já avaliada de populações nativas do continente. Em seguida, os pesquisadores compararam esse material com o de 67 povos de todo o mundo, obtido em bancos de dados internacionais.

O aumento do número de populações amostradas indicou agora que a população Y não teria permanecido isolada na Beríngia, mas se miscigenado com os povos que viviam ali. Os dados atuais também sugerem que a herança genética da população Y é mais antiga do que se estimava anteriormente, com idade superior a 10 mil anos, e que ela está mais bem distribuída na América do Sul do que se imaginava. Etnias que habitam tanto a oeste como a leste da cordilheira dos Andes e falam línguas diferentes apresentam, em graus variados, um trecho do material genético semelhante ao dos povos da Oceania (ver mapa). Das cinco etnias que vivem próximo ao litoral do Peru, quatro compartilham algum grau de ancestralidade da população Y – entre elas, os Chotuna, que apresentam o sinal genético mais forte (3% do genoma deles é semelhante ao dos povos do Pacífico Sul). A localização desses grupos levou os pesquisadores a suspeitarem de que a dispersão da população Y pelas Américas tenha se dado pelo litoral. “O mais provável é que, depois de passar pela Beríngia, esses migrantes rumaram para o sul pela costa do Pacífico, possivelmente usando embarcações”, sugere Hünemeier.

Análises estatísticas feitas pelo grupo da geneticista sugerem ainda que essa leva migratória, que teria entrado na América do Sul pela costa do Pacífico, compartilhou seus genes com as etnias que já estavam estabelecidas no interior do continente. É possível que a partir do litoral do Peru, onde a altitude dos Andes não intimida tanto, alguns grupos tenham adentrado o continente e se espalhado pela Amazônia (ver mapa).

Como sempre acontece nas migrações, o grupo que partiu para a travessia das montanhas levou apenas uma porção da diversidade genética da população que ficou no litoral. Sendo raros, esses marcadores também podem desaparecer quando os indivíduos morrem ou se misturam com os de outros grupos. Assim, parte dessas características teria se perdido pelo caminho, deixando o sinal cada vez mais fraco nas populações do interior do continente.

“A hipótese da rota da costa do Pacífico faz todo sentido”, defende o antropólogo físico Rolando Gonzáles-José, do Centro Nacional Patagônico (Cenpat), na Argentina, que também investiga a chegada dos seres humanos às Américas, mas não participou do trabalho publicado na PNAS. “Os beringianos deviam estar habituados a explorar os recursos da fauna costeira, como focas e aves marinhas, para alimentação.” Para o pesquisador, seria natural que essas populações seguissem por uma rota com ecologia costeira semelhante desde o ponto de origem, no Alasca, até a Terra do Fogo, no extremo sul da América do Sul.

A rota de dispersão pela costa do Pacífico também pode explicar por que esses marcadores genéticos ainda não foram localizados em populações nativas do litoral e do interior das Américas Central e do Norte. “Eles podem ter feito paradas pontuais na América do Norte, sem se estabelecer por causa do frio intenso do final da última glaciação, descendo até os trópicos, onde o clima era mais ameno”, supõe a geneticista da USP. Para Gonzáles-José, a ausência do marcador Y nessa região das Américas também pode ser decorrente de um problema de amostragem.

Línguas e genes

O sinal genético da população Y, mostra o trabalho atual, não está restrito a grupos culturais específicos. Ele foi encontrado em indivíduos que falam pelo menos cinco línguas indígenas da América do Sul: tupi-arikém, tupi-mondé, guarani, jê e descendentes dos falantes da língua mochica. Esse fato sugere que o tal sinal já existiria em uma população ancestral sul-americana que, mais tarde, originou os povos falantes dessas línguas.

Línguas e genes geralmente caminham juntos porque os mesmos idiomas são usados dentro de grupos étnicos aparentados. “Como a diversificação dos troncos linguísticos da América do Sul aconteceu há 6 mil anos, a população Y deve ter chegado a essa parte do continente bem antes disso”, explica Hünemeier. “Os integrantes dessa população podem ter sido os primeiros a colocar os pés nas Américas, há cerca de 15 mil anos”, sugere. Nessa época, as geleiras da última glaciação começavam a recuar, tornando a costa do Pacífico o local de clima mais quente e aprazível do continente e uma boa rota de migração.

Um indício de que a chegada da população Y pode ser muito anterior à separação dos troncos linguísticos sul-americanos é que os marcadores genéticos desse grupo foram encontrados anos atrás em um povo que viveu há cerca de 11 mil anos onde hoje é Lagoa Santa, em Minas Gerais. Um estudo publicado em 2018 na revista Science pelo grupo do biólogo Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, identificou em um dos sete indivíduos dos quais foi possível extrair o DNA trechos do genoma semelhantes aos dos povos nativos da Oceania. “Esse, no entanto, não é um dado conclusivo, porque pode resultar de erro de amostra ou de análise”, aponta a geneticista da USP. Como o DNA extraído de material arqueológico se degrada com o tempo, é possível ainda que o sinal tenha desaparecido do genoma dos outros representantes desse grupo.

Apesar das novas evidências, ainda restam várias dúvidas sobre a identidade dos integrantes da população Y e se teriam, de fato, existido. “Não sabemos a data das migrações, o que torna mais difícil entender quem eram essas populações”, afirma o arqueólogo André Strauss, da USP, que também investiga a ocupação das Américas, mas não participou do estudo da PNAS. “Além disso, em um trabalho publicado na Nature em 2019, o grupo de Willerslev não encontrou os marcadores da população Y no genoma de 34 indivíduos pertencentes a populações da Sibéria que viveram entre 31 mil anos e 600 anos atrás. O fato é que ainda não conhecemos direito essas populações”, conclui.

“Falta ainda preencher muitas lacunas sobre a história da ocupação da América”, afirma Hünemeier. “Ainda não sabemos, por exemplo, quando e com quem os antecessores dos beringianos interagiram, uma vez estavam relativamente isolados das demais populações da Ásia.” A pesquisadora ressalta que os povos nativos das Américas são os menos estudados do mundo e que novas evidências devem ajudar a entender os detalhes da ocupação do continente.

Projeto

Diversidade genômica dos nativos americanos (nº 15/26875-9); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisadora responsável Tábita Hünemeier (USP); Investimento R$ 1.352.437,20.

Artigo científico

CASTRO-SILVA, M. A. et alDeep genetic affinity between coastal Pacific and Amazonian natives evidenced by Australasian ancestry. PNAS. 29 mar. 2021.

Equipe eCycle

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