No extremo sul do estado do Amazonas, a 700 quilômetros de Manaus, pastagens começam a se multiplicar rapidamente em uma área antes ocupada pela floresta virgem. “Os municípios na fronteira do desmatamento estão sentindo uma pressão enorme”, diz Mariana Napolitano, chefe de ciência da WWF Brasil. Em um ciclo conhecido em toda a Amazônia, a floresta está dando lugar à “extração ilegal de madeira, seguida de corte e queima de pastagens e, eventualmente, a chegada da monocultura”.
Os quatro municípios que mais desmatam na região (Lábrea, Humaitá, Canutama e Tapauá, todos próximos à divisa de Rondônia) registraram juntos cerca de 330 mil alertas de perda de cobertura arbórea até agora este ano, de acordo com dados de satélite da Universidade de Maryland visualizados no Global Forest Watch, totalizando 14% aumento em relação ao mesmo período em 2020. Isso reflete um ataque mais amplo à Amazônia brasileira: o desmatamento subiu 51% em 11 meses, com 838 mil hectares de terra desmatados desde agosto passado, segundo dados do Imazon.
Ativistas atribuem a destruição da floresta à principal rodovia da região, a BR-319. A estrada percorre cerca de 885 km de Porto Velho, capital de Rondônia, a Manaus, a maior cidade da Amazônia. A rodovia foi construída na década de 1970 durante a ditadura militar no Brasil, mas, uma década depois, o mau estado de preservação prevaleceu. Partes dela, como o trecho no sul do Amazonas, nunca foram pavimentadas.
Agora, forasteiros que invadem a área apostam nas promessas do presidente Jair Bolsonaro de finalmente pavimentar parte da BR-319, trazendo prosperidade e desenvolvimento a esse recanto do estado. A esperança, dizem as fontes locais, é que o asfalto facilite o transporte de madeira — e, eventualmente, soja — dessa região remota e ainda com floresta densa.
Mas ambientalistas soaram o alarme, informando que o aumento das invasões está ameaçando as dezenas de áreas protegidas espalhadas ao redor da rodovia, bem como as comunidades tradicionais e indígenas que dependem da floresta para sua sobrevivência.
A rodovia corta cerca de 13 municípios que abrigam 41 unidades de conservação e 69 reservas indígenas. A área também abrange territórios que ainda aguardam demarcação, bem como locais que abrigam povos indígenas afastados que vivem em isolamento voluntário do mundo exterior.
As invasões também sinalizam o avanço do chamado Arco do Desmatamento, uma faixa em forma de meia-lua que percorre as bordas sul e leste da Amazônia brasileira, onde o agronegócio consumiu vastas áreas de floresta tropical.
“O que está acontecendo nessa região é uma tragédia que se previa”, alertou Virgilio Viana, superintendente da Fundação Amazonas Sustentável (FAS) e ex-secretário de Meio Ambiente do estado. “Não é uma surpresa. Há anos que estamos alertando sobre isso… E assim que a BR-319 for pavimentada, as invasões vão explodir”.
Os planos para pavimentar esse trecho da BR-319 não são novos, mas foram bloqueados há anos por um complexo processo de licenciamento que visa avaliar o impacto da estrada na rica biodiversidade que a circunda e nas comunidades que vivem na região.
O Ibama e a Funai estão atualmente revisando os impactos potenciais da pavimentação dessa parte da estrada. Mas ambientalistas alertaram que isso tornará a área mais acessível aos invasores, levando a mais invasões ilícitas na floresta.
“Hoje, a extração de madeira é relativamente difícil porque a estrada é muito ruim”, explicou Viana. “Portanto, é uma barreira. A melhoria da estrada tornará economicamente viável a extração de madeira em maior escala, em áreas onde hoje ainda não é possível”.
Mesmo assim, embora o projeto ainda não tenha sido aprovado, Bolsonaro já assinou contrato com uma construtora no ano passado para a pavimentação de um trecho de 52 quilômetros da BR-319, conhecido como Lote C. No início deste ano, ele anunciou que as obras seriam iniciadas em 2022.
“Só o anúncio do projeto já cria esse clima e acelera a ocupação da região”, diz Fernanda Meirelles, secretária-executiva do Observatório BR-319, coalizão de ONGs brasileiras e internacionais que monitora o desmatamento ao longo da rodovia. “Algumas áreas protegidas já estão sendo invadidas e estamos observando uma grande especulação imobiliária”.
Já há sinais de que as áreas protegidas no entorno estão sentindo o impacto. Uma pesquisa recente mostrou que o desmatamento no entorno da BR-319 aumentou 25% em 2020 e que a pavimentação da estrada resultará em cerca de 170 mil quilômetros quadrados de perda de floresta até 2050. Foram registradas invasões em pelo menos meia dúzia de unidades de conservação sob proteção federal ou estadual, incluindo a Reserva Extrativista de Canutama, a Floresta Nacional Balata-Tufari e a Floresta Estadual Tapauá.
A BR-319 também é fundamental para as maiores ambições da região de se tornar um centro de transporte de soja e carne bovina, a maior parte com destino à China e à Europa. Recentemente, Humaitá inaugurou um enorme entreposto frigorífico de carne bovina e agora está construindo uma “Estrada da Soja”, uma ramificação da BR-319. A estrada se conectará a um novo porto de granéis de alta tecnologia em Humaitá, facilitando o embarque de soja para fora da região.
“A BR-319 não vem sozinha”, acrescentou Meirelles. “E todos esses projetos de desdobramento mostram a visão para o desenvolvimento da região. É com soja e gado”.
Tudo isso alimentou as esperanças entre os grileiros de que o acesso a essa parte remota do Amazonas se abrirá em breve, tornando as terras que reivindicam ainda mais valiosas. Fontes dizem que a maioria está correndo para declarar fatias de floresta como suas por meio do sistema nacional de registro de terras rurais, conhecido como Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (CAR).
“O cadastro está sendo usado como instrumento de apropriação de terras”, expressou Viana. “Por meio do CAR, iniciamos esse processo de legalização da ocupação ilegal de terras públicas. E é tudo para fins de especulação imobiliária”.
As declarações do CAR devem ser verificadas pelas autoridades estaduais, mas o processo é lento e aleatório, de acordo com Paulo Moutinho, cientista sênior do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Enquanto a verificação se arrasta, os grileiros podem usar o registro para garantir o financiamento de bancos, permitindo-lhes financiar o desmatamento de grandes áreas de floresta.
“O grileiro diz que essa área é dele, limpa-a, coloca gado nela e espera que alguém a compre — ou que o governo legalize a sua reivindicação” ao alterar os regulamentos federais, disse Moutinho.
Bolsonaro, uma figura popular no cinturão agrícola do Brasil, prometeu legalizar reivindicações de terras em parques protegidos e permitir extração de madeira, mineração e cultivo em reservas indígenas. Os legisladores brasileiros estão atualmente ponderando vários projetos de lei que poderiam enfraquecer a proteção de terras e tornar mais fácil a apropriação de terras.
Os sinais amigáveis do presidente tiveram um efeito marcante, afirmam os ambientalistas, alimentando uma onda de invasões de terras públicas como parques federais, unidades de conservação estaduais e florestas não destinadas que ainda não estão sob proteção oficial.
Cerca de metade do desmatamento no Brasil ocorre em terras públicas, com grande parte em florestas públicas não destinadas, de acordo com Moutinho. Quase 20 milhões de hectares de terras públicas são reivindicados de forma fraudulenta por meio do CAR, estimou ele.
O Amazonas, lar de mais florestas não destinadas do que em qualquer outro lugar no Brasil, ofereceu um terreno fértil para grileiros. Forasteiros reivindicaram falsamente mais de 8.500 hectares, ou 15%, de florestas públicas não destinadas no Amazonas, de acordo com um relatório emitido pelo Imazon publicado no início deste ano. Os defensores dizem que muitas das reivindicações de terras fraudulentas foram agrupadas na parte sul do estado, densamente florestada.
“Essa região é uma das mais novas fronteiras do desmatamento impulsionado pela grilagem de terras”, explicou Moutinho. “E a fiscalização é muito fraca para impedi-lo”.
O desmatamento ilegal em toda a Amazônia se tornou muito menos arriscado sob a supervisão de Bolsonaro, afirmam os ambientalistas. O presidente cortou fundos para agências de fiscalização como o Ibama e o ICMBio, tornando mais fácil o florescimento de atividades ilegais sem punição.
“A percepção é de que o risco de ser punido por meio de uma repressão ambiental é baixo”, disse Viana. “E, ao mesmo tempo, a narrativa do governo federal é de proteção ao grileiro, ao madeireiro e ao mineiro”.
Os recursos do Estado também diminuíram. Em 2019, o governo federal paralisou o Fundo Amazônia, que financiava ações estaduais de combate ao desmatamento ilegal. Particularmente, o fundo — formado em grande parte por doações da Noruega e da Alemanha — apoiou a fiscalização do CAR e a verificação de novos registros de terras.
À medida que foi reduzida a fiscalização ambiental consistente em toda a Amazônia, o governo federal permutou medidas repressivas berrantes e de curto prazo nas áreas visadas. Em abril, encerrou uma operação militar de alto nível na Amazônia, quase dois anos após o envio de tropas para controlar o desmatamento — com resultados questionáveis.
O sul do Amazonas também tem sido o foco de um número limitado de operações federais. A pedido do Ministério Público, a Polícia Federal lançou a Operação Constantino no início deste ano, visando uma organização madeireira ilegal na área que invadiu mais de 9.000 hectares de terras públicas e desmatou cerca de 4 mil hectares.
O estado do Amazonas, por sua vez, lançou um novo plano de dois anos para prevenção do desmatamento no ano passado, que afirma priorizar os municípios do sul. Em abril, o estado também deu início à Operação Tamoiotatá, que reprime o desmatamento ilegal em Humaitá e Canutama. As autoridades apreenderam caminhões de madeira ilegal e embargaram milhares de hectares como parte da operação.
Mas ambientalistas alegam que a fiscalização, tanto por agentes estaduais quanto federais, não tem sido forte o suficiente para deter os grileiros. Apesar das operações, os críticos dizem que poucas multas são aplicadas e menos ainda são cumpridas. O número de multas pagas por crimes ambientais na Amazônia caiu 93% desde que Bolsonaro assumiu o cargo.
Os agentes federais também foram desencorajados de queimar equipamentos apreendidos durante buscas contra madeireiros e mineiros ilegais, o que Viana diz ter sido prejudicial para a fiscalização. O resultado é que muitos invasores retornam logo após as operações de intervenção, certos de que não serão punidos se forem pegos novamente.
“É preciso haver um custo mais alto para a ilegalidade”, disse Viana. “Sem isso, as máquinas são apenas postas de volta ao trabalho, desmatando a floresta”.
Observações do editor: Esta história foi desenvolvida por Places to Watch, uma iniciativa da Global Forest Watch (GFW) projetada para rapidamente identificar a perda de florestas em todo o mundo e catalisar investigações adicionais nessas áreas. A Places to Watch baseia-se em uma combinação de dados de satélite quase que em tempo real, algoritmos automatizados e inteligência de campo para identificar novas áreas mensalmente. Em parceria com a Mongabay, a GFW está apoiando o jornalismo baseado em dados, fornecendo dados e mapas gerados pela Places to Watch. A Mongabay mantém total independência editorial sobre as histórias relatadas usando esses dados.
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