Especialistas e povos indígenas propõem caminhos para vencer os imensos desafios da saúde pública na Amazônia. Isso passa por manter a floresta viva, a partir de uma visão de prosperidade econômica aliada à conservação e ao desenvolvimento técnico e científico
Por Magali Cabral em Página 22
Sobrevoar a imensidão verde na Amazônia é uma experiência única e arrebatadora, mas esse sentimento esmorece quando, já no chão, se conhece a dura realidade sanitária de comunidades indígenas e ribeirinhas da maior floresta tropical do mundo. A assistência à saúde é um direito humano básico constitucional, mas as longas distâncias impostas pela geografia local são um dos grandes desafios para os gestores e formuladores de políticas públicas.
“Essa geografia não permite que centralizemos a saúde nas capitais amazônicas. Precisamos descentralizar atendimentos complexos para que pessoas da floresta não morram à espera de um avião que nunca chegará e, ao mesmo tempo, não sobrecarreguem os hospitais nas cidades”. A afirmação é da técnica em enfermagem Vanda Ortega, indígena originária do povo Witoto, no município de Amaturá, no Alto Solimões (AM), durante a plenária sobre Saúde e Economia, promovida pela iniciativa Uma Concertação pela Amazônia em 16 de maio, em Manaus.
O painel faz parte de uma série de debates sobre temáticas de interesse regional – como educação, infraestrutura, segurança pública, cultura, entre outros –, para a elaboração de um documento que apresentará propostas factíveis, que possam ser adotadas nos primeiros 100 dias dos governos federal e subnacional e do Congresso Nacional. O documento será disponibilizado aos eleitos, logo após os resultados das urnas.
O painelista Eugênio Scannavino Netto, médico sanitarista fundador do Projeto Saúde & Alegria, que atua há 30 anos na região do Rio Tapajós, levando atenção básica às populações ribeirinhas, destaca a saga daqueles que vivem no coração da Amazônia e precisam de atendimento.
Para sair da comunidade e chegar à cidade, uma viagem de barco leva pelo menos 10 horas e a passagem custa no mínimo 70 reais. Uma vez em terra firme, as despesas com hospedagem e alimentação são diárias. Depois de enfrentar a fila no SUS e conseguir atendimento, vem a etapa dos exames, lembrando que a espera para fazer um ultrassom pode chegar a dois anos. Cumprida essa via crucis, o paciente retorna ao médico, apanha os remédios e viaja de volta para casa. Para fazer essa jornada, o ribeirinho gasta cerca de um mês, período durante o qual não trabalha e, consequentemente, não tem receita.
Para minimizar esse tipo de drama, em 2005, o Saúde & Alegria criou o Programa de Saúde da Família Fluvial e passou a levar Atenção Básica até as comunidades no Oeste do Pará. São barcos-hospitais equipados com laboratório, mesa ginecológica, vacinação, consultório dentário e unidade semi-intensiva, que visitam as comunidades da região a cada 40 dias, ou seja, oito vezes por ano. Em 2010, o Ministério da Saúde encampou o programa e o transformou em política pública.
Atualmente existem 60 embarcações atuando na Amazônia e no Pantanal, algumas delas em condições insatisfatórias, de acordo com o médico, por falta de capacidade dos gestores em acessar recursos federais. Ainda assim, a resolutividade do barcos-hospitais está em torno de 93%. Ou seja, de cada 100 pacientes 93 não precisam ir para a cidade procurar assistência.
“O modelo [dos barcos-hospitais] tem um custo per capita baixo para o Ministério da Saúde e resolve quase todos os problemas sanitários nas comunidades”, afirma ele. “Nosso trabalho é desenvolver tecnologias sociais de qualidade para tentar influenciar e qualificar o estado para aplicar nossas ações em larga escala. É isso que as ONGs fazem.”
Outra medida urgente para ajudar os povos da floresta a não precisarem se deslocar para os centros urbanos em busca de atendimento médico é equipar melhor as Unidades Básicas de Saúde (UBS) das comunidades rurais com itens básicos, como energia solar, geladeiras para armazenamento de vacinas, oxímetros e termômetros. Segundo Scannavino, o Ministério da Cidadania tem dinheiro para isso represado que, de novo, não está sendo acessado pelos gestores.
Outra questão, abordada por Vanda Ortega, diz respeito aos indígenas excluídos do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do SUS por não serem aldeados, isto é, por não viverem dentro de seus respectivos territórios. De acordo com ela, são 600 mil indígenas excluídos do sistema de saúde, inclusive ela própria, que reside no Parque das Tribos – o primeiro bairro indígena oficialmente reconhecido, localizado em Manaus. Ortega defende uma alteração na Constituição, que ainda adota o conceito ultrapassado de que é considerado indígena aquele que vive dentro de territórios demarcados.
A médica Érika Pellegrino, professora da Universidade Federal do Pará, que trabalha na região de Altamira, também apresenta alguns casos que mostram a complexidade da assistência à saúde em longas distâncias. Um deles utilizou apoio da telemedicina, um recurso que, bem aplicado, pode ajudar a solucionar vários entraves.
Uma senhora na casa dos 60 anos contraiu Covid-19 ainda na primeira onda da pandemia. Ficou em estado grave, com dificuldade respiratória agravada por algumas comorbidades. Ela recusou-se a ser removida de seu território ribeirinho para um hospital. Sem poder levar acompanhante, ela não quis correr o risco de morrer sozinha no hospital. Uma técnica de enfermagem do mesmo território encarregou-se dos cuidados dessa paciente. Diariamente levava oxigênio, aplicava corticoides, media a saturação e, de volta a UBS, discutia o caso com a equipe. A paciente melhorou.
“Para cuidar dessa paciente, a técnica em enfermagem recebeu o suporte da telemedicina. Foi um caso super interessante de sucesso que pretendemos ampliar para a abordagem da covid em toda a comunidade das Resex [Reservas Extrativistas] da Terra do Meio”, afirma Pellegrino. Ela adverte, no entanto, que é importante impedir que a telemedicina, ideal no trabalho de prevenção à doenças, substitua os serviços da Atenção Primária.
Falta ambição
Se os recursos para a saúde são escassos ou estão represados em órgãos federais, ainda há alternativas. Por exemplo, deve-se ter a ousadia de bater em portas no exterior mostrando a Amazônia como grande ativo. Pode-se imaginar um acordo com iniciativas internacionais de conectividade, para dedicar algum satélite a regiões críticas da Amazônia e, assim, resolver a questão da telemedicina. Por que não colocar na sala outros atores além do setor público? A filantropia nacional e internacional pode ser mais um agente transformador da realidade.
Para o diretor-presidente da varejista Bemol Denis Minev, o que está faltando é uma grande ambição que traga prosperidade à Amazônia para solucionar muitos dos problemas socioeconômicos e ambientais da região.
“Não existe alternativa à prosperidade e, hoje, nós não temos sequer uma visão do que seja prosperidade na Amazônia”. Para alcançá-la, ele diz que a ambição não deve permanecer focada apenas em resolver questões como saúde e desmatamento zero. Deve abarcar o campo da ciência como um todo. “A Amazônia é um imenso laboratório científico da humanidade, no entanto, nós não estamos descobrindo grandes coisas. Não temos os cérebros aqui, não temos os investimentos porque não temos a ambição como Nação”, afirma.
Segundo Minev, essa ambição já existiu no passado. “Apesar de o Brasil não ter vocação para ser uma potência aeroespacial, construiu o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e hoje temos a Embraer”. O Centro-Oeste é outro caso citado pelo empresário. “A região não produzia quase nada, mas o País teve a ambição de evoluir a soja para lá e veja aonde chegamos. Pode-se até discutir a questão ambiental, mas a geração de riqueza produzida ali é inacreditável”, observa ele.
Depois de citar também o programa Proálcool como um caso de sucesso do passado, Minev reafirma que o Brasil nunca teve ambição científica na Amazônia e que uma prova disso é o orçamento anual pífio do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), inferior a R$ 50 milhões. “Esse não é um orçamento com o qual se compete com mundo.”
No acumulado, a Amazônia já tem cerca de 90 milhões de hectares desmatados. Desse total, 20 milhões ainda estão razoavelmente bem utilizados. Mas os 70 milhões restantes estão degradados. Segundo ele, essa imensidão de terra poderia ter um destino razoavelmente produtivo. Tem muita gente testando modelos de restauração florestal, de sistema agroflorestal, com integração de lavoura, pecuária e floresta. “Se fizermos isso em grande escala, nos tornaremos campeões globais em armazenamento de carbono. Imagine replantar 1 milhão de hectares por ano, ou até mais, o volume de empregos que isso geraria, o volume de produção de alimentos e de madeira. Nós nos tornaríamos potência em diversos mercados diferentes, trazendo segurança alimentar e produtividade”, vislumbra.
Outro exemplo trazido pelo empresário é o da piscicultura. Com apenas um hectare, ele diz ser possível produzir 10 toneladas de peixe por ano, usando tecnologia básica. Se o País fizer o mesmo que fez com a soja ou com a celulose, utilizando um milhão de hectares desmatados para a produção de peixes amazônicos, o Brasil se torna de novo uma potência mundial em produção de proteína – de um lado com a carne bovina, de outro com os pescados. “A partir da Amazônia é possível reinventar o Brasil, que tem estado muito concentrado em pequenas reformas, dificuldades orçamentárias e pensamento pequeno”, conclui Minev.
Ciclos da natureza
Cercados por um mundo cuja dinâmica é regida pelo capital versus o tempo, o povo da artesã Larissa Tukano sente-se “como objeto de pesquisa, como seres do passado”. Mas não é bem assim. O que se quer, segundo a painelista do evento, que representa a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, é diálogo com os governos e um apoio tecnológico para diminuir, ainda que virtualmente, a distância física entre as diversas tribos e, com isso, aumentar os seus potenciais de produção. As 23 aldeias indígenas que a artesã representa trabalham com a produção de pimenta e azeite baniwa, cerâmica tukano, artesanatos em geral e turismo.
Para ela, nem sempre o ritmo de trabalho dos indígenas é compreendido por possíveis investidores. “O nosso modo de trabalhar é diferente do modo dos não-indígenas. Nós temos nosso ritmo, nossas técnicas, nossas tradições de trabalho, nossa própria governança. Pessoas que gostariam de investir no nosso artesanato, por exemplo, não conseguem aceitar esse ritmo. Não somos como uma fábrica, temos o nosso tempo e respeitamos os ciclos da natureza”, afirma.
Pontos com sinal de internet ao longo da bacia do Rio Negro seriam uma grande ajuda para a inclusão de mulheres e jovens que moram mais distantes nesse mercado artesanal. Dispondo de equipamentos de comunicação, é possível atualizar a todos, inclusive aqueles que estão mais nas franjas do território, não apenas sobre as políticas de retrocesso que rondam as aldeias, mas sobre conhecimento em educação financeira, em marketing digital, entre outros temas.
A ativista indígena Samela Sateré Mawé, complementa a fala de Larissa Tukano afirmando que, de fato, “nós, indígenas, não funcionamos como uma empresa, mas produzimos nossos artesanatos, mantemos a floresta em pé e ainda temos a nossa bioeconomia ou etnoeconomia”. O artesanato indígena contribui para a formação de crianças e as levam até a faculdade, como é o caso da própria ativista, que cursa Biologia na Universidade do Estado do Amazonas (UEA). “Muitos têm no artesanato uma saída para a vida. As sementes dão frutos em diversos aspectos. Quando plantadas no território ou quando enfiadas em um colar”, diz.
Sobre o sistema de saúde que se quer para a Amazônia, Samela Mawé defende a proposta que vem sendo discutida de um “SUS adaptado” à cultura e às tradições dos povos originários. Para ilustrar como se daria essa adaptação, ela conta o caso de um bebê indígena internado no hospital que não parou de chorar até que o enfermeiro teve a ideia de amarrar uma pequena rede no quarto e tirá-lo da cama – o vídeo dessa história viralizou na internet.
“A medicina da população branca é a mesma que queremos para nós? Ou essa medicina deve levar em consideração toda a nossa vivência, as nossas especificidades”, questiona. “Tudo o que for pensado para nós não deve ser pensado sem nós”, complementa, fazendo referência à frase que marcou a sua presença na COP 26 a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima de 2021, em Glasgow, na Escócia: “Nada é por nós sem nós”. Segundo a ativista, os povos indígenas têm plena capacidade de estar dentro dos espaços de debates e das construções de soluções para eles próprios.
Este texto foi originalmente publicado por Página 22 de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não representa necessariamente a opinião do Portal eCycle.