Por Domingos Zaparolli em Pesquisa Fapesp — O aproveitamento da energia térmica presente no subsolo para climatizar ambientes tem potencial de reduzir significativamente os gastos com o uso de sistemas de ar-condicionado em edifícios comerciais, apartamentos e residências. A climatização por geotermia superficial é largamente empregada em países de clima temperado, principalmente na Europa, nos Estados Unidos, no Japão e no Canadá, e será testada pela primeira vez nas condições brasileiras de solo e clima. O experimento se dará no Cics Living Lab, o edifício-laboratório que o Centro de Inovação em Construção Sustentável (Cics) da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) está erguendo no campus da Cidade Universitária, na zona oeste de São Paulo.
“No Brasil, o ar-condicionado responde, em média, por entre 40% e 50% dos gastos de energia de um edifício comercial e por volta de 20% a 25% de uma residência, ao longo do ano. A climatização geotérmica pode reduzir esse consumo de energia, proporcionando economia e menor impacto ambiental”, afirma o engenheiro mecânico Alberto Hernandez Neto, do Departamento de Engenharia Mecânica da Poli-USP.
Estudo feito em 2018 pela Empresa de Pesquisa Energética, que presta serviços ao Ministério de Minas e Energia (MME), revelou que apenas o consumo residencial de eletricidade devido aos condicionadores de ar atingira 18,7 terawatt-hora (TWh) em 2017. Equivale a toda geração de energia solar fotovoltaica no país em 2021 e poderá alcançar 48,5 TWh em 2035, segundo o mesmo trabalho.
Para o sistema geotérmico de climatização que será testado no Cics Living Lab serão usadas fundações trocadoras de calor. Nele, um fluido, por exemplo, água, circula por tubos instalados no interior de estacas que formam as fundações do edifício, promovendo a troca de calor entre o ambiente interno do prédio e o subsolo. “O funcionamento do sistema é baseado na diferença de temperatura entre as duas partes”, explica a engenheira civil Cristina de Hollanda Cavalcanti Tsuha, do Departamento de Geotécnica da Escola de Engenharia de São Carlos (Eesc) da USP, responsável por projeto dedicado a avaliar essa tecnologia no estado de São Paulo. A pesquisa recebeu apoio da FAPESP.
No verão paulistano são comuns temperaturas atmosféricas superiores a 30 graus Celsius (ºC). A partir de poucos metros de profundidade, o solo apresenta temperatura constante durante todo o ano, semelhante à média da temperatura atmosférica anual do local. Na região da USP, a temperatura do subsolo gira em torno de 23 ºC.
A energia térmica é transportada por uma bomba de calor geotérmica que realiza a troca de calor entre o subsolo e os ambientes do prédio (ver infográfico). Graças a esse equipamento, o resfriamento (ou o aquecimento) de ambientes pode ser feito de modo eficiente. “É um ciclo de refrigeração semelhante ao de uma geladeira doméstica”, compara Hernandez Neto. “A diferença é que a bomba de calor geotérmica pode ser reversível, resfriando ou aquecendo o ambiente interno.” Segundo o engenheiro, uma bomba de calor consome em média 40% menos energia do que o ar-condicionado convencional.
Em países de clima temperado, a dupla função do sistema (aquecimento e resfriamento) permite que seja usado tanto no verão como no inverno, aproveitando o calor subterrâneo para aquecer o ambiente das edificações. Promove, assim, um reequilíbrio periódico da temperatura do subsolo onde estão instaladas as fundações.
Em um país de clima tropical, como o Brasil, onde o aquecimento de ambientes no inverno não é comum, não se conhece ainda o impacto do uso desse sistema em demanda única na temperatura do subsolo em longo prazo, ou seja, em uma situação em que apenas irá se rejeitar calor do ambiente externo no subsolo para resfriar a edificação. A contínua rejeição de calor no subsolo, segundo Tsuha, aumentará sua temperatura, podendo reduzir a eficiência do sistema geotérmico de climatização ao longo do tempo.
Os pesquisadores pretendem usar a experiência do Cics Living Lab para avaliar esse possível impacto no subsolo e pesquisar formas de evitá-lo. Uma possibilidade é instalar o sistema em todas as estacas que compõem a fundação da edificação, mas promover a troca de calor de forma alternada – em um ano, nas estacas de apenas um lado do edifício, e, no ano seguinte, nas fundações do lado oposto. Outra alternativa é extrair o excesso de calor no subsolo para o aquecimento de água para uso em chuveiros ou na higienização de roupas e utensílios.
A experiência no Cics Living Lab ajudará, ainda, a verificar se os ciclos de aquecimento e resfriamento poderão afetar o comportamento das fundações do edifício ao longo do tempo. Um primeiro estudo com esse objetivo foi tema da tese de doutorado da engenheira civil Thaise da Silva Oliveira Morais, orientada por Tsuha na Eesc-USP. A tese foi vencedora do Prêmio Costa Nunes da Associação Brasileira de Mecânica dos Solos e Engenharia Geotérmica no biênio 2018-2019.
“A imposição de ciclos térmicos [rejeição e extração de energia térmica] provoca dilatação e contração das estacas. Nos experimentos feitos no âmbito da tese, considerando um perfil de solo tropical da cidade de São Carlos, e apenas a rejeição de calor no subsolo [demanda térmica por resfriamento], não percebemos um impacto significativo na resposta mecânica dessas estruturas”, detalha Morais. “Mas é preciso avaliar a resposta da fundação após maior número de ciclos de aquecimento e resfriamento, além de considerar também diferentes demandas térmicas.”
O sistema de climatização geotérmica também poderá ser empregado no retrofit (reforma) de prédios antigos. Nesses casos, a tubulação necessária para a troca de calor pode ser instalada em poços perfurados no terreno do imóvel. Segundo Hernandez Neto, em um retrofit, o custo para equipar com ar-condicionado central um edifício de 20 andares é estimado entre R$ 2 milhões e R$ 2,5 milhões. A instalação de um sistema de bomba de calor e tubulação externa ao edifício, em poços de até 100 m, sairia por cerca de R$ 2 milhões. O ganho se dá com a economia de energia elétrica ao longo da vida útil do prédio.
O Cics Living Lab deve ser inaugurado em 2023. O edifício também será utilizado para validar tecnologias inovadoras de diferentes etapas do processo construtivo, como uso de vergalhões com novas ligas de aço e concreto de alta performance produzido de modo a mitigar as emissões de gás carbônico na atmosfera.
O aproveitamento da energia térmica subterrânea é uma prática antiga. A primeira usina geotérmica foi construída na Itália, em 1904. Essas instalações captam água quente ou vapor proveniente do magma no interior da Terra para mover turbinas que acionam geradores e produzem energia elétrica. Apenas regiões vulcânicas ou onde há gêiseres têm potencial para o aproveitamento dessa energia. Cerca de 25 países têm centrais geotérmicas para produzir eletricidade, entre eles Islândia, Estados Unidos, Japão, Nova Zelândia.
Já a energia geotérmica superficial, disponível em qualquer local e utilizada para aquecer ou resfriar ambientes, é explorada desde os anos 1950. A climatização geotérmica por meio de fundações por estacas teve origem nos anos 1980 na Áustria. Hoje equipa milhares de edificações em todo o mundo, entre casas e prédios comerciais.
Uma das construções mais emblemáticas é a sede do Google, em Mountain View, na Califórnia, um campus de 75 mil metros quadrados (m2) que comporta três edifícios. São 4 mil estacas que chegam a 24 m de profundidade, sendo 2,5 mil aproveitadas no sistema geotérmico. No Brasil, a expectativa de Tsuha e Hernandez Neto é que residências, hotéis, hospitais e edifícios comerciais sejam os principais usuários do sistema.
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