Por Gilberto Stam em Pesquisa Fapesp — “Encontramos um easter egg!”, exclamou a engenheira de alimentos Veridiana de Rosso em seu laboratório no campus de Santos (SP) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em 2012, usando uma expressão que entre os fãs de tecnologia significa um grande achado. Ela terminava de ver os resultados da análise química de uma fruta nativa, a juçara (Euterpe edulis), palmeira da Mata Atlântica da qual também é extraído o palmito. Os testes indicavam que a polpa do fruto – redondo e escuro, com 1,4 centímetro de diâmetro – tinha níveis elevados de antocianina, substância que dá a cor roxa dos frutos maduros e tem efeito antioxidante, removendo resíduos que prejudicam o funcionamento das células e ajudam a prevenir doenças. Dez anos e diversos estudos depois, De Rosso concluiu que a juçara beneficia a microbiota intestinal e, por estimular a multiplicação de bactérias benéficas e reverter processos inflamatórios, poderia ser usada no tratamento da obesidade.
“Em ratos, uma pequena porção da fruta da juçara ajudou a diminuir a inflamação no intestino que está relacionada à obesidade”, conta. Em um de seus experimentos mais recentes, ela comparou, durante 16 semanas, três grupos de 15 camundongos que receberam uma dieta hipercalórica, sendo que um deles recebeu uma porção de polpa desidratada de juçara equivalente a 0,5% da dieta e outro uma porção de 2% da dieta. Foram medidos cinco indicadores de inflamação no tecido adiposo de cinco regiões do corpo. No intestino, a concentração de interleucina-10 (Il-10), proteína que promove a inflamação, caiu cerca de 20% no grupo com 0,5% da dieta com polpa de juçara — já no grupo com 2%, o efeito não foi observado. “A dose menor de juçara diminui a inflamação de forma mais efetiva”, conclui De Rosso, que assina o estudo publicado em 2021 na revista Journal of Functional Foods.
Estudos anteriores, com pessoas, já haviam mostrado que a juçara ajuda a diminuir a inflamação do intestino, a equilibrar a microbiota e a perder peso. Em um deles, 18 obesos que consumiram uma porção de 5 gramas (g) de frutas da juçara desidratada, equivalente a uma bola de sorvete de 50 g da polpa fresca, apresentaram melhora em indicadores metabólicos em relação a um grupo de 17 obesos que não consumiram o preparado, segundo artigo publicado na Journal of Nutritional Biochemistry em 2020. No grupo que consumiu o preparado aumentou a concentração de colesterol bom (HDL) e diminuiu a gordura corporal. Além disso, dobrou a concentração de adiponectina, hormônio que ajuda a controlar a glicemia.
“Foi um resultado impressionante”, avalia a pesquisadora. O consumo da polpa da fruta também ajudou a equilibrar a microbiota. Houve um aumento da população de bactérias benéficas, entre elas as que produzem acetato, substância absorvida no intestino que melhora a sensibilidade do corpo à insulina, conforme resultados descritos na revista European Journal of Nutrition em 2020.
“Além de possuir uma concentração de antocianinas até quatro vezes maior do que o açaí, a juçara tem um teor alto de fibras e ácidos graxos mono e poliinsaturados, que agem de forma sinérgica, beneficiando a microbiota”, explica De Rosso.
Palmeira comum da Mata Atlântica, a juçara foi citada por Pero Vaz de Caminha em sua carta para o rei de Portugal, em 1500. Mas, a partir da década de 1960, com a exportação do palmito, foi explorada de forma predatória. A extração do palmito após 8 a 10 anos mata a árvore, que não rebrota, enquanto os frutos podem ser explorados por 30 anos a partir dos 6 anos de idade. Assim como o açaí, a polpa dos frutos é consumida em sucos, geleias, cremes e doces.
Apenas três espécies nativas brasileiras são produzidas comercialmente em larga escala no país: o maracujá (Passiflora edulis), o abacaxi (Ananas comosus) e a goiaba (Psidium guajava). A jabuticaba (Myrciaria cauliflora), que demora 10 anos para começar a produzir, depende da agricultura familiar.
“Temos centenas de espécies de frutas nativas no Brasil com potencial comercial”, ressalta o agrônomo Angelo Pedro Jacomino, da Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), coordenador de um projeto sobre frutas da Mata Atlântica apoiado pela FAPESP.
Jacomino passou o último Natal à procura de cereja-do-rio-grande (Eugenia involucrata) e grumixama (Eugenia brasiliensis), frutas nativas da Mata Atlântica, e depois as distribuiu entre amigos para degustação. A receptividade foi boa. Segundo ele, os que saborearam a grumixama relataram que a fruta é parecida com a cereja, embora mais escura; o gosto lembra a jabuticaba e a pitanga; é doce, com um leve sabor azedo no final.
Há outros grupos que trabalham para caracterizar a composição química de frutas nativas e estimular a cadeia produtiva para que cheguem às feiras e supermercados. O liderado pelo engenheiro-agrônomo Severino Matias de Alencar, também da Esalq, analisou 14 espécies raras da Mata Atlântica nos últimos anos.
Semelhantes a cerejas, as grumixamas são doces, com um leve azedo no final da degustaçãoHelton Josué Teodoro Muniz/Sítio Frutas Raras
“A grumixama e a cereja-do-rio-grande são arroxeadas por causa das antocianinas, que ajudam a combater os radicais livres, moléculas geradas naturalmente pelo organismo que prejudicam as células e causam envelhecimento”, explica Alencar. Já a uvaia (Eugenia pyriformis), fruta de cor laranja que cresce no quintal de muitas casas do interior, tem mais carotenoides do que a cenoura.
Nas análises que vem fazendo, o pesquisador viu que algumas frutas produzem polifenóis, substâncias antioxidantes que ajudam na prevenção de doenças. A maioria dos exemplares estudados foi colhida no sítio Frutas Raras, do colecionador Helton Josué Teodoro Muniz, no município de Campina do Monte Alegre, no interior paulista. Segundo Muniz, o sítio tem quase 1.300 espécies de frutas nativas do Brasil. “É de dar inveja aos nossos colegas americanos. Eles mal acreditam que ainda temos tantas espécies novas a serem exploradas comercialmente”, regozija-se Alencar, que fez estudos com ratos para se certificar de que as plantas não são tóxicas. Os resultados foram apresentados nas revistas PLOS ONE, em 2016, Food Chemistry, em 2019, e Food and Function, em 2020.
“Transformar espécies nativas em culturas agrícolas é um processo que pode levar décadas”, diz Jacomino. “É preciso escolher as melhores plantas, muitas delas ameaçadas de extinção.” Ele encontrou uma árvore de cambuci (Campomanesia phaea) ótima para o consumo in natura, com menos tanino e não tão azeda, mas, antes que pudesse estudar e reproduzir a planta, a árvore morreu, derrubada por uma tempestade.
Outro desafio é reproduzir as plantas de modo a padronizar a qualidade. “Das quatro frutas que estudamos, a única que conseguimos clonar, até o momento, foi a cereja-do-rio-grande, com cerca de 50% de sucesso, o que ainda é pouco para fins comerciais”, lamenta Jacomino.
A juçara é usada no Vale do Ribeira em projetos de reflorestamento e extrativismo, baseado na agricultura familiar, desde 2012. “Com patrocínio das empresas japonesas Mitsui e Aenon, a área recuperada chega a 46 hectares, ao lado de outras espécies frutíferas como lichia, goiaba e banana”, conta o engenheiro-agrônomo Guenji Yamazoe, pesquisador aposentado do antigo Instituto Florestal. O projeto recuperou plantações de chá, os chamados chazais, iniciadas na década de 1930 por imigrantes japoneses e depois abandonadas, retomando a produção de chá artesanal orgânico.
Além de demonstrarem os benefícios para a saúde, que ajuda a fazer o marketing dessas frutas, os pesquisadores desenvolvem novos produtos com maior valor agregado. Um fitoterápico de jabuticaba vendido em farmácias de manipulação para ajudar a tratar o diabetes foi desenvolvido pelo engenheiro de alimentos Mario Roberto Maróstica Junior e sua equipe na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). As antocianinas do fruto da juçara que De Rosso extrai já são usadas em alimentos e cosméticos.
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