Fungos sobre a casca trazem sabor e problemas a queijos de Minas
Por Carlos Fioravanti em Pesquisa Fapesp | A casca do queijo Canastra é um paraíso para os fungos filamentosos, também chamados de bolores. Uma análise comparativa de DNA coordenada por pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa (UFV) registrou 25 espécies de fungos abundantes capazes de crescer durante a maturação – de no mínimo duas semanas – do queijo amarelado, de sabor ligeiramente ácido, produzido por cerca de 800 produtores artesanais na região serrana do sudoeste de Minas Gerais. Os bolores apresentam maior diversidade principalmente durante a época das chuvas (de dezembro a março) e podem variar de acordo com a cidade e o produtor.
As variedades de bactérias do interior dos queijos, tradicionalmente associadas à fermentação e ao sabor, têm sido estudadas mais intensamente que a de fungos, cuja diversidade, agora se supõe, deve aumentar a variedade de texturas, aromas e sabores do Canastra, uma das marcas mais conhecidas da região. Também se torna mais claro que alguns tipos de bolores podem causar manchas indesejadas sobre a casca e até substâncias tóxicas ao organismo.
O exame de fungos extraídos de 96 queijos feitos com leite cru e coalho industrial por 16 produtores em nove cidades da região da serra da Canastra indicou que a espécie de levedura (fungo unicelular) Debaryomyces prosopidis foi a mais encontrada na maioria das amostras o ano inteiro, enquanto na estação chuvosa foram, na sequência, Trichosporon asahii, Kluyveromyces lactis e Fusarium solani, como detalhado em um artigo publicado em fevereiro na revista Frontiers in Microbiology.
Ao longo do ano, Penicillium foi pouco detectado, mesmo sendo um gênero de fungo filamentoso comumente associado a queijos: P. roqueforti é usado na produção das variedades Gorgonzola e Roquefort, e P. camemberti nas Brie e Camembert.
Em queijos de todas as fazendas avaliadas havia leveduras dos gêneros Debaryomyces, Kluyveromyces, Torulaspora e Trichosporon. Para os autores desse trabalho, é uma indicação de que essas variedades podem desempenhar um papel importante na qualidade do queijo produzido na região da Canastra.
Uma equipe da Universidade Federal de Lavras (Ufla) chegou a resultados semelhantes, detalhados em um artigo publicado em agosto de 2022 na Journal of Food Science and Technology. Uma metodologia diferente – crescimento em meio de cultura e identificação das espécies por espectrometria de massa – levou ao isolamento de 16 espécies de fungos na casca de queijos de duas cidades da serra da Canastra, com predomínio de Geotrichum candidum, Paecilomyces spp., Tricosporon japonicum e T. coremiiforme, Candida catenulata, Aspergillus oryzae, A. ochraceus e Fusarium spp.
“Os fungos do gênero Candida, com os quais a legislação sanitária mostra grande preocupação, apareceram muito pouco”, observa o biólogo da UFV José Guilherme Prado Martin, coordenador da análise de DNA, apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de Minas Gerais (Fapemig). Segundo ele, esses resultados poderiam motivar os produtores a explorar as variedades de fungos que crescem em sua propriedade para, com as bactérias, desenvolver queijos com sabores e aromas únicos.
Em dezembro de 2022, uma resolução da Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais (Seapa) reconheceu como Queijo Minas Artesanal de Casca Florida (QMACF) com o predomínio visualmente identificável do fungo G. candidum, mas deixou aberta a possibilidade de incluir outras espécies “desde que pesquisas científicas realizadas por órgãos especializados no tema e de ilibada reputação atestem sua segurança alimentar”.
Deixar os bolores crescerem sobre a casca é uma forma de agregar valor aos queijos. “Um Canastra típico pode custar R$ 50 o quilograma, mas com fungos pode chegar a R$ 150, por aumentar a diversidade de aromas e sabores”, observa Martin.
Deixar os fungos crescerem não é uma prática isenta de riscos, porque os fungos também criam problemas. O crescimento excessivo de P. camemberti sobre a casca dos queijos pode causar amargor intenso, enquanto o de outras variedades de Penicillium provoca descoloração, além de sabores desagradáveis, e intensificar a produção de contaminantes. Sal de menos pode apresentar um defeito conhecido como pele de sapo, resultado do crescimento excessivo de G. candidum, ou outro, conhecido como pelo de gato, em razão da proliferação dos fungos do gênero Mucor.
Martin e o microbiologista Paul Cotter, do Centro de Pesquisa em Alimentos Teagasc, da Irlanda, listaram esses problemas após examinarem os estudos sobre fungos encontrados em queijos de 13 países – da Itália à China, incluindo o Brasil –, como detalhado em um artigo publicado em abril na revista científica Helyon.
Há também o risco de substâncias tóxicas produzidas pelos fungos, chamadas de micotoxinas. Em setembro de 2021, na International Dairy Journal, outro grupo da UFV, com colegas da Universidade Federal de Lavras (Ufla), relataram o isolamento de A. flavus e A. niger em queijo minas artesanal e a identificação de aflatoxinas B1 e B2. Encontradas também no milho, na castanha-do-pará e no amendoim, essas substâncias são carcinogênicas e podem causar acúmulo de gordura ou necrose no fígado, perda de peso e hemorragia nos rins.
“As toxinas são liberadas pelos fungos em resposta a variações de acidez, umidade e temperatura ou da competição com outros organismos”, diz Martin. “A mera ocorrência do fungo no queijo não indica necessariamente a produção de toxinas.”
Segundo ele, embora seja caro, o teste de micotoxinas em queijos artesanais feito periodicamente poderia minimizar os riscos à saúde. A resolução da Seapa estabelece que o Instituto Mineiro de Agropecuária deve nortear as normas para produção de queijos de casca florida no estado.
Em um estudo em andamento no Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), em Campinas, interior paulista, a bióloga Marta Taniwaki, com sua equipe, examinou 70 amostras de queijos de seis produtores da região de Canastra e verificou que 15 delas estavam contaminadas com ocratoxina A, micotoxina que pode induzir câncer e danos nos rins. O nome se deve ao bolor ocre amarronzado, mais escuro que a cor habitual do queijo.
“Encontramos níveis altíssimos de ocratoxina, acima de mil partes por bilhão, 100 vezes mais do que o permitido em frutas secas, um alimento consumido diretamente, sem nenhum tratamento posterior, como o queijo”, ela comenta. Outra verificação feita em laboratório é que a quantidade de micotoxina aumenta com o tempo de maturação do queijo. As variedades de Aspergillus que a produzem ficam dominantes após 30 dias, quando o queijo perde água e se torna um ambiente mais favorável ao seu crescimento. “Os bolores podem penetrar no queijo por alguma rachadura ou se a consistência for mais macia”, observa.
Ainda que inacabada, a pesquisa já indica como os apreciadores de Canastra podem evitar intoxicações. “Não comer a casca já reduz bastante o risco de transmissão para as pessoas”, sugere Taniwaki.
“Queremos ajudar produtores a melhorar a qualidade e reduzir os riscos à saúde deles próprios e dos consumidores”, diz. Segundo ela, a limpeza da casca dos queijos com bolor ao fim da maturação, também chamada de toilette, precisa ser aprimorada, para evitar que os esporos dos fungos se espalhem no ar ou sejam inalados e cheguem aos pulmões.
Quando era também integrante do grupo técnico de Contaminantes de Alimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Taniwaki ajudou a criar normas para reduzir os níveis de ocratoxina A em café, incorporadas em um documento do Comitê Codex de Contaminantes de Alimentos (CCCF), ligada à Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
Em 2006, ela coordenou um grupo de pesquisadores que acompanhou uma exportação de grãos verdes de café para a Europa e, fazendo análises químicas de tempos em tempos, verificou que, dentro dos contêineres, a produção dessa micotoxina aumentava com a umidade, à medida que a carga se aproximava do destino, como detalhado em um artigo publicado em 2007 na Journal of Food Protection. Desse trabalho emergiram várias recomendações para os exportadores evitarem os bolores no café.
“Mostramos que a torração elimina até 80% de ocratoxina”, acrescenta a pesquisadora. O mesmo princípio da eliminação do composto indesejado por meio do aquecimento vale também para cacau e castanha-do-pará.
Em queijos, porém, que não passam pelo aquecimento, a toxina pode persistir. “Até o fim da pesquisa, em junho de 2024, pretendemos descobrir quais os níveis máximos toleráveis para o consumo”, diz Taniwaki.
Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.