Por Ana Magalhães, Daniel Camargos, Diego Junqueira e Hyury Potter em Repórter Brasil | A retirada de garimpeiros de Terras Indígenas (TI), como vem acontecendo no território Yanomami, é apenas o primeiro passo para combater o garimpo ilegal em áreas de preservação. Para o governo Lula cumprir a promessa de acabar com a ilegalidade no setor, será preciso envolver dezenas de órgãos públicos para implantar medidas como mudanças na legislação, melhorias na fiscalização, adoção de nota fiscal eletrônica e até novas regras para o comércio de máquinas e combustível de aviação.
Essa é a análise feita por indígenas, pesquisadores, instituições ligadas à mineração, membros do governo e procuradores ouvidos pela Repórter Brasil para listar as ações urgentes para derrotar o garimpo ilegal.
A exploração mineral em territórios demarcados é proibida no Brasil, mas um conjunto de fatores, entre eles o incentivo do governo Bolsonaro, fez o garimpo criminoso explodir nos últimos anos na Amazônia. Os povos originários são os mais afetados pela extração ilegal de minérios, e o drama dos Yanomami dá uma dimensão do impacto que a atividade ilegal pode causar. Povos como os Munduruku e os Kayapó, no Pará, também sofrem com o problema e demandam ação do governo.
Para mudar esse cenário, é necessária uma “operação de guerra” nos territórios. Mas, para não repetir o fracasso da “guerra às drogas” nem cair na ilusão de que é possível alcançar a paz só com o envio de forças policiais, o combate ao garimpo exige, também, a construção de políticas sociais para os trabalhadores que operam à margem da lei.
“Se não for nesse governo, a gente não vai debater isso”, diz o professor Luiz Jardim Wanderley, da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Confira as principais propostas:
Um dos maiores problemas do setor é a lei 12.844/2013, pois ela “presume” a legalidade do ouro comercializado e a “boa-fé” do comprador, mesmo sem a comprovação de origem do metal. A única exigência é de que a procedência do ouro seja informada em uma nota fiscal em papel.
Porém, investigações já identificaram que o ouro extraído ilegalmente de terras indígenas é declarado como se tivesse sido minerado em uma lavra regularizada. É neste momento, por meio de fraude, que acontece a chamada “lavagem de ouro” (legalização do metal ilegal). Na prática, a lei dificulta que vendedores e compradores sejam responsabilizados por seus crimes.
‘Temos hoje um sistema perfeito de impunidade. Quem compra e quem vende está protegido pelo sistema da ‘boa fé’’, diz Sérgio Leitão, do Instituto Escolhas
“Temos hoje um sistema perfeito de impunidade. Quem compra e quem vende está protegido por esse sistema da ‘boa fé’”, critica Sérgio Leitão, diretor-executivo do Instituto Escolhas, organização que vem pesquisando o setor. O especialista defende que a lei seja alterada pelo novo governo por meio de medida provisória (MP), instrumento que tem validade imediata após ser publicado.
Além de mudar a lei, outra medida urgente é digitalizar as transações comerciais de ouro, desde sua extração mineral até o consumidor final, garantido o rastreamento da cadeia. Na prática, trata-se de incorporar tecnologias de ponta para tirar os mecanismos de controle da idade da pedra.
A primeira medida nesse sentido é criar um banco de dados digitalizado e descentralizado, gerido pela Agência Nacional de Mineração (ANM), mas que seja acessado por diferentes usuários, garantindo transparência. Essa proposta foi apresentada pelo Instituto Escolhas à então deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR), hoje presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), que incorporou as sugestões em um projeto de lei apresentado no ano passado.
A ideia é que esse banco de dados registre cada etapa do caminho do ouro dentro de uma corrente de informações inquebrável, ou seja, as informações não podem ser adulteradas e os registros ficam conectados uns aos outros. O nome dado a essa tecnologia é “blockchain” (corrente de registros digitais).
Nessa corrente é possível inserir todo tipo de informação, como autorizações para garimpar ou minerar uma área, licenças ambientais, capacidade da lavra, relatórios anuais de produção, cadastro das pessoas envolvidas, dentre outros.
O setor teria de adotar ainda documentos que não são usados hoje, como a nota fiscal eletrônica em cada transação comercial e as guias de transporte de ouro, semelhante ao que acontece para movimentar madeira e gado.
Também é possível fazer uma marcação molecular no minério de ouro, uma espécie de código de barras, para saber de onde está sendo extraído. Esse código se mantém mesmo se o minério for derretido ou passar por refino.
“É um combo de medidas necessárias para sanear a compra e venda de ouro no Brasil. Mas, para funcionar, cada órgão tem de cumprir a sua parte”, alerta Leitão sobre a alimentação do banco de dados, caso seja criado.
A rastreabilidade do ouro será eficaz para identificar transações ilegais daqui para frente. Já para as irregularidades cometidas nos últimos anos e para o contrabando, Sérgio Leitão, do Escolhas, cobra ação da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e do Banco Central. Essas duas instituições são responsáveis por fiscalizar as DTVMs (Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários), empresas do sistema financeiro autorizadas para fazer a primeira aquisição do metal de garimpo no Brasil.
Pelo menos três dessas intermediárias enfrentam ações na Justiça Federal por crimes ambientais ou de lavagem de dinheiro relacionados a garimpo ilegal. O Ministério Público Federal (MPF) as acusa não apenas de comprarem ouro ilegal de terra indígena, mas de participarem do esquema de lavagem do metal. Os processos ainda não foram julgados e seguem tramitando na Justiça.
À Repórter Brasil, Leitão disse que foi solicitado ao BC e à CVM que fizessem uma análise das suspeitas que pairam sobre as principais DTVMs que mais comercializam ouro. “A gente mostrou que há um nível muito alto de indícios de ilegalidade. Mas quem pode confirmar isso é a apuração por parte dos órgãos”, declarou.
Uma fonte com conhecimento das investigações judiciais, ouvida pela reportagem de forma anônima, afirmou que o Banco Central não faz sua parte para fiscalizar essas instituições financeiras.
Mas o BC, assim como a CVM, negaram a acusação em manifestações enviadas ao STF nesta semana. Nos dois posicionamentos, as instituições jogaram a responsabilidade para outros órgãos.
A CVM disse que as operações que envolvem ouro no sistema financeiro não são de sua alçada mas, sim, do Banco Central. Já o Banco Central afirmou que sua fiscalização se limita à “regularidade da contabilização do ouro nos registros contábeis das entidades”, atribuindo a competência para fiscalizar as DTVMs à Agência Nacional de Mineração e à Receita Federal.
Questionado pela Repórter Brasil se há em curso alguma investigação contra DTVMs por suposta lavagem de recursos, o banco respondeu que não comentaria o assunto. O BC disse apenas que participa de fóruns de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro e que apoia iniciativas para aprimorar o rastreamento do ouro no Brasil.
A CVM abriu, em 18 de janeiro, uma investigação contra 5 DTVMs para apurar denúncia de compra de ouro ilegal. Porém, o processo já foi encerrado. A CVM informou à Repórter Brasil que investigações dessa natureza não são de sua competência, mas do Banco Central (veja os posicionamentos na íntegra).
Uma proposta prevista no projeto de lei de Wapichana para evitar esse jogo de empurra é obrigar o Banco Central a elaborar um relatório anual sobre fiscalização dessas distribuidoras autorizadas a comercializar ouro.
Após a Repórter Brasil revelar que o ouro extraído ilegalmente das terras indígenas Yanomami, Kayapó e Munduruku está presente nos produtos das quatro empresas mais valiosas do mundo (Apple, Amazon, Google e Microsoft), a organização Amazon Watch passou a questionar essas companhias e a exigir que as compradoras finais comprovem aquisição do metal regularizado.
“Não seria a hora de inverter o ônus da prova? Será que todas essas empresas gigantes podem provar que não estão vinculadas a fluxos potencialmente ilegais de ouro no Brasil?”, publicou a organização.
Para a Amazon Watch, se essas empresas não forem capazes de demonstrar que estão livres do ouro com sangue indígena, elas devem “cortar os laços com todas as refinarias de ouro que não possam provar a origem do ouro”.
Questionada à época, a Apple suspendeu um de seus fornecedores suspeitos – que, depois da publicação da denúncia pela Repórter Brasil, perdeu o selo de qualidade e saiu da lista de fornecimento para marcas globais.
Uma outra tentativa de controlar a cadeia de produção por meio dos compradores finais é proposta pelo Ibram, entidade que faz lobby em prol de grandes mineradoras, como Vale, AngloAmerican e BHP. A entidade vem dialogando com o setor joalheiro para que as empresas do setor comprem apenas ouro produzido pelas grandes mineradoras – que, segundo o instituto, passam por processos auditados. Além disso, o órgão vem abrindo diálogo com compradores estrangeiros.
A Agência Nacional da Mineração é um órgão-chave quando falamos de garimpo – seja ele legal ou não. É o órgão responsável por aprovar as chamadas Permissões de Lavras Garimpeiras (PLGs), que são os garimpos legalizados. O problema é que são as PLGs que vêm sendo usadas para legalizar o ouro ilegal, a partir das notas fiscais fraudulentas abordadas anteriormente. Estudo feito pela UFMG a partir de imagens de satélite revelou que algumas dessas lavras declaradas nas notas fiscais eram “fantasmas” – ou seja, não tinham nenhuma atividade econômica.
Uma fonte ouvida pela Repórter Brasil diz que o primeiro passo é acabar com o aparelhamento do órgão e nomear diretores e presidentes que tenham visão socioambiental. “Os diretores atuais servem a interesses de fomento da mineração, não têm esse olhar de defesa do meio ambiente”, lamenta.
A segunda medida é exigir que a ANM comece a fiscalizar a produção das PLGs: anualmente, elas são obrigadas a enviar relatórios de produção. Esses relatórios, porém, são auto-declaratórios e não são analisados pela agência. Há casos de pequenas lavras que declaram produzir mais do que a maior mina do mundo – um indício de que estão sendo usadas para legalizar o ouro ilegal.
Um episódio suspeito descoberto pela Polícia Federal durante a Operação Terra Desolata revelou um garimpo com produção desproporcional para seu porte: entre 2018 e 2021, teriam sido extraídas 3,2 toneladas de ouro, o que o faz o mais produtivo do Brasil. Segundo a PF, isso evidencia que o local é usado para lavar o ouro extraído ilegalmente de garimpos clandestinos.
Para efeito de comparação, o garimpo de Serra Pelada reuniu mais de 100 mil garimpeiros que extraíram 42 toneladas de ouro durante toda a década de 1980, naquele que foi o maior garimpo a céu aberto do mundo, segundo informações do Ibram.
“A prevenção à lavagem de ouro ilegalmente extraído na Amazônia passa necessariamente pelo fortalecimento e aprimoramento dos mecanismos de análise e cotejo de Relatórios Anuais de Lavra e de Notas Fiscais”, afirma o manual “Mineração ilegal de ouro na Amazônia: marcos jurídicos e questões controversas”, lançado em 2020 pelo MPF.
A utilização de máquinas pesadas em áreas de garimpo popularizou-se nos últimos anos pela velocidade com que abrem crateras e facilitam o trabalho de garimpeiros, multiplicando as chances de lucro. Alguns desses equipamentos, como retroescavadeiras, pás-carregadeiras, escavadeiras hidráulicas e motoniveladoras, podem custar mais de R$ 1 milhão e contrastam com a ideia de que o garimpo deveria ser uma atividade “artesanal”.
Legislação da década de 1940 deixava claro o caráter rudimentar do garimpo, afirmando que só poderiam ser usados “aparelhos ou máquinas simples e portáteis”. No entanto, reformas legislativas posteriores foram numa “crescente indeterminação terminológica”, deixando mais tênue a diferença entre a mineração industrial e o garimpo, segundo manual do MPF. Uma das sugestões da Procuradoria é alterar a legislação para deixar clara a proibição de grandes máquinas nos garimpos atuais.
Outro caminho é exigir que empresas fabricantes dessas máquinas sejam mais rigorosas na hora da venda e façam um levantamento sobre as atividades do comprador – se ele tiver lavra garimpeira, por exemplo, a ideia é suspender a operação comercial.
Outra solução seria implantar o Código da Consciência, programa que, uma vez inserido no computador de bordo de uma máquina, emite um alerta ou mesmo desliga o motor do veículo quando ele se aproxima de uma área protegida. Por estar gravado na memória da máquina, não é possível que o operador desligue seu funcionamento.
O MPF sugere a criação de um cadastro técnico federal que credencie e acompanhe individualmente o uso de equipamentos de mineração. A medida, defendida no manual de combate ao garimpo ilegal da instituição, permitiria avaliar o potencial de dano das máquinas a partir do porte e da quantidade de equipamentos previstos para uso em cada lavra.
Atualmente, a extração ilegal de ouro em território não permitido pode caracterizar dois crimes: dano ambiental e usurpação do patrimônio da União, com previsão de detenção de até 5 anos, além de multa.
A presidente da Funai, Joenia Wapichana, defende aumentar a pena para quem comete crimes ambientais – o que inclui extração ilegal de ouro por meio de garimpos. “É crime hediondo, pois, além da questão ambiental, [afeta] a questão da saúde, o social, a cultura e a vida [dos povos indígenas]”, disse em entrevista à Repórter Brasil antes de ser nomeada para a fundação.
O membro da campanha da Amazônia do Greenpeace Brasil, Danicley de Aguiar, entende que o governo precisa ir além da retirada dos garimpeiros das terras indígenas – caso contrário, os garimpeiros que estão saindo agora da TI Yanomami migrarão para outras áreas protegidas ou voltarão em alguns meses. “É preciso entrar com políticas sociais, pois enquanto existir a opção do garimpo, a massa empobrecida vai ser atraída”, avalia Aguiar.
Para ele, o garimpo é a “mega sena” da população pobre da Amazônia. “As pessoas estão desesperadas para sair da condição de pobreza extrema e partem em busca de uma solução que o Estado não oferece. Se uma pessoa bamburra (acha uma grande pepita), sai da condição que estava”, explica.
Uma fonte ligada às investigações, no entanto, pondera que os garimpeiros costumam exigir do governo benefícios tão rentáveis quanto o garimpo – o que, na sua avaliação, é praticamente impossível. “Nada é tão lucrativo quanto roubar um bem da União, devastar o meio ambiente e não recuperá-lo”, afirma. “Essas pessoas (garimpeiros) estão dentro de uma lógica de exploração que não foi por elas criada, mas elas se servem disso e retiram dali a sua possibilidade de subsistência”, disse o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, em entrevista à Folha de São Paulo.
Para chegar a garimpos na Amazônia, a melhor opção é a aviação de pequeno porte, mas o controle do governo sobre o tráfego aéreo na floresta é considerado insuficiente.
E, com o avanço do garimpo no governo Bolsonaro, o problema se agravou. Dados da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), obtidos via Lei de Acesso à Informação, revelam que as três principais cidades garimpeiras da região do rio Tapajós (PA) – Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso – consumiram três vezes mais gasolina de aviação em 2021 do que a cidade de São Paulo no mesmo período. Foram 2,3 milhões de litros, o suficiente para um avião de garimpo dar 220 voltas ao mundo.
Em terra a situação não é diferente. Há pelo menos 1.269 pistas clandestinas na Amazônia Legal, segundo investigação conjunta do The Intercept Brasil, The New York Times e Pulitzer Center. Um terço delas estão próximas a garimpos de ouro.
Esses números justificam a urgência de o governo controlar a venda da gasolina de aviação. A ANP poderia cobrar dos revendedores dados sobre os aviões que compram o produto. Dessa forma, órgãos de controle poderiam saber se uma aeronave específica está consumindo muito combustível, o que acenderia um alerta para fiscalizar a sua operação. Outro caminho é desativar as pistas construídas irregularmente e melhorar o controle do tráfego aéreo na região.
Este texto foi originalmente publicado pelo Repórter Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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