Por Sibélia Zanon em Mongabay Brasil | Projeto Harpia completa 25 anos monitorando mais de 60 ninhos na Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica; um de seus programas tem como objetivo trabalhar a conservação de forma integrada, devolvendo para a natureza toda ave em condições de não ficar em cativeiro permanente.
Perda de habitat, caça e colisão com fios de alta tensão são as principais ameaças à espécie; é comum também que as pessoas atirem numa harpia por mera “curiosidade”. Pesquisadores apontam que, com o agravamento das mudanças climáticas, a harpia terá sua distribuição reduzida e poderá desaparecer de regiões como o Arco do Desmatamento, na borda da Amazônia.
“Manter a árvore do ninho em pé e proteger um pequeno entorno daquela árvore é uma das nossas metas”, diz Tânia Sanaiotti, fundadora do Projeto Harpia, que completou 25 anos. “Se deixar só a árvore do ninho lá no meio do nada, o filhote não vai conseguir alçar o primeiro voo. É muito importante manter algumas árvores altas em que o filhote vai poder desenvolver sua musculatura”.
Considerada vulnerável pela Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), a harpia ou gavião-real (Harpia harpyja) é uma das maiores aves de rapina do mundo. Desde o século 19, ela perdeu mais de 40% de seu território, que abrange desde o México até a Argentina. No Brasil, a ave ocorria em todos os biomas. Atualmente, populações grandes, funcionais e diversas são encontradas apenas na Amazônia.
Monogâmicas, as harpias utilizam o mesmo ninho por décadas, tendo um filhote a cada três anos. Sumaúmas, castanheiras, jatobás e angelins são suas árvores favoritas, as mais altas da mata e também as mais cobiçadas por madeireiros. Dotadas de uma grande forquilha, as árvores eleitas precisam dar espaço às chegadas e partidas dos ninhos, que chegam a 2,5 metros de diâmetro. Lá, o filhote se desenvolve por cinco meses antes de arriscar o primeiro voo, de 15 a 30 metros de distância. Desenvolvida a musculatura, Tânia conta que uma ave adulta alcança 200 ou 300 metros em duas batidas de asas.
A espécie topo de cadeia, que pode chegar a 9 quilos, tem especial importância na manutenção da saúde do ecossistema, mas apresenta exigência peculiar: carnívora, precisa de cerca de 800 gramas de alimento por dia. Serpentes, lagartos e pássaros são bons petiscos, mas macacos, cotias e preguiças são as iguarias mais apreciadas.
Pesquisa, monitoramento, fotografia, turismo e educação ambiental têm sido ferramentas para proteger a maior ave de rapina do Brasil contra a perda de habitat e os desafios que emergem da devastação: a proximidade com comunidades humanas aumenta perseguições, caça e colisões com fios de alta tensão.
O início do monitoramento de gaviões no Brasil se deu na década de 1980, quando pesquisadores do Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF), centro de pesquisas fundado pelo biólogo Thomas Lovejoy, começaram a monitorar ninhos de gavião-de-penacho (Spizaetus ornatus) e de uiraçu-falso (Morphnus guianensis) nas reservas do projeto, no Amazonas. Em 2011, o primeiro ninho de harpia foi encontrado e atualmente são dois os ninhos da espécie monitorados dentro de uma das unidades, em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e o Projeto Harpia.
O Projeto Harpia começou em 1997 na Amazônia. “A gente fez cartazes e colocou em barcos em várias rotas”, conta Tânia sobre o início, quando buscavam os primeiros ninhos para pesquisa, proteção e monitoramento. “Todo mundo sabia que tinha um grupo de pessoas estudando gaviões.”
Hoje são mais de 60 ninhos monitorados na Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica, contando com o apoio de pesquisadores parceiros, voluntários e estudantes que coletam dados, promovem atividades de educação ambiental e divulgam informações para proteger o entorno dos ninhos.
Além das pesquisas e atividades feitas em campo, o Projeto Harpia criou recentemente o Programa Ex-Situ. Como estratégia para trabalhar a conservação de forma integrada, o programa estuda a situação das aves em cativeiro que foram removidas da natureza por captura ilegal, destruição de árvores com ninhos ou outros conflitos. A maior população de harpias fora de seu ambiente natural está no Brasil, com 139 indivíduos em 40 instituições.
Segundo a pesquisadora do Inpa, a reprodução da espécie em cativeiro para reintrodução na natureza como estratégia de conservação precisa ainda ser analisada com cuidado e não é prioridade do Projeto Harpia.
“Uma das vertentes do projeto é devolver para a natureza tudo que tem condições de não ir para cativeiro permanente. Essa é uma das bandeiras”, explica Tânia. “É muito sofrido para nós a hora que dizem que tem um bicho baleado. Quando você descobre a curva do rio em que ele está, já sabe que não vai chegar socorro em 24 horas. Se não atendeu em 24 horas, o tipo da lesão é quase irreversível. Muitas vezes o tratamento fica prejudicado pela imensidão e pela forma da rede hidrográfica da Amazônia.”
“Aqui neva floresta incinerada todo mês de agosto. Eu moro no Arco do Desmatamento, não moro num lugar fácil para um biólogo”, diz o pesquisador Everton Miranda, que hoje reside no norte de Mato Grosso. “As pessoas me perguntam como é que eu continuo tendo esperança. O que me recarrega a esperança é quando aparecem fotos de ovos [de harpia] nos ninhos nas armadilhas fotográficas. Eu sempre fico muito feliz. Eu acho que tem uma chance de ir adiante”.
Com a perda de habitat e a o agravamento das mudanças climáticas, a harpia tem tido a sua distribuição constantemente reduzida. “No cenário atual de mudanças climáticas, a tendência é de que essas populações ao longo do Arco do Desmatamento venham a desaparecer”, alerta Everton.
A proximidade com comunidades humanas também faz da harpia uma vítima da caça, de perseguições e de choques nas linhas de transmissão com mortes já registradas.
“As pessoas matam esses bichos aqui no Arco do Desmatamento sobretudo por curiosidade, como eles dizem: ‘para ver com as mãos’”, conta Everton. “Esse tipo de abate representa uma taxa de 2.6 indivíduos mortos a cada 100 km² por ano aqui no sul da Amazônia. Oras, se a gente está falando de uma espécie que conta apenas com 9.7 indivíduos a cada 100 km², essa é uma taxa de mortalidade extremamente alta.”
Ao entrevistar proprietários de terra numa área de 3 mil km² dentro do chamado Arco do Desmatamento, no norte de Mato Grosso, Everton concluiu que 80% dos 181 abates de harpias na região ocorreram por curiosidade. Apenas 20% das aves foram mortas como retaliação por predarem animais de criação, como galinhas, cabras, porcos ou ovelhas.
Everton é também autor de um estudo que monitorou 16 ninhos ativos de harpia numa área de 429 mil km² no norte de Mato Grosso. Três harpias jovens morreram de fome em paisagens que perderam de 50 a 70% da floresta, mostrando que as extinções de predadores de topo ocorrem, em grande parte, pela ausência de presas. O estudo concluiu que, no Arco do Desmatamento, é necessária uma cobertura florestal de pelo menos 50% para possibilitar a sobrevivência das aves. Um terço da região não tem condições para dar suporte à reprodução da espécie.
Desde 2017, o biólogo vem contando com o ecoturismo como estratégia de conservação da harpia e da floresta por meio da colaboração com uma empresa de turismo que instala torres de observação perto dos ninhos das águias. Ter a harpia como espécie-bandeira para a conservação da floresta tem sido uma estratégia para mudar a mentalidade e trazer fonte de renda adicional aos moradores.
Os ninhos da região passaram a ser mapeados com a ajuda dos moradores locais, mediante oferta de dinheiro por ninho localizado. As propriedades com ninhos de harpia recebem torres de observação.
“A gente oferece ao dono da terra um contrato em que ele recebe 20 dólares por turista por dia de visita na propriedade dele. Ele não conta com nenhum tipo de custo”, explica Everton. “Por outro lado, ele tem que cumprir com uma série de obrigações relacionadas à conservação daquela propriedade.”
Além dos proprietários de terra receberem uma renda, a população local também é beneficiada por meio da prestação de serviços como a construção das torres, a limpeza de trilhas e alimentação para turistas e funcionários, entre outros.
“O que encanta mais o proprietário rural não é o dinheiro. Quando ele vê uma pessoa que cruzou o mundo, deu a volta na face da Terra para ver uma coisa que ele tem no quintal dele, aí é que acontece a mudança no coração, porque é como se ele tivesse a Torre Eiffel no quintal dele”, diz o biólogo. “Ele passa a dar muita importância e esse senso de orgulho que o proprietário passa a ter em relação à floresta é muito importante.”
“É como uma rede de metrô. Ela vai numa linha e volta, vai em outra linha e volta”, conta Tânia sobre o itinerário da harpia pelos céus de Rondônia. “Tem harpia vivendo em tirinhas de mata ao longo de um rio, em fragmentos bem pequenos, de um hectare às vezes. Então, ela tem que se deslocar muitas vezes sobre as pastagens para chegar numa outra matinha. Quanto mais fragmentada a mata, mais a espécie se expõe ao risco — tanto do tiro, quanto do choque com rede elétrica”.
Rondônia é um dos estados mais desafiadores para a sobrevivência da harpia na Amazônia. “A harpia desaparece numa proporção até maior do que a taxa de desmatamento. Alguns ninhos que a gente vai acompanhando há 10 ou 12 anos vão desaparecendo da região”, diz Carlos Tuyama, coordenador do Projeto Harpia em Rondônia. “A região em que eu vivo [o município de Rolim de Moura] tem hoje 10% da cobertura florestal. O resto foi transformado em pastagem, em áreas de agricultura. E, logicamente, toda a fauna que existia nessa região foi afetada”.
A expansão da ocupação e a consequente supressão da floresta, que ocorreu a partir da década de 1980 na região, se repete em outras cidades amazônicas, como Paragominas e Altamira, ambas no Pará. Com a fragmentação da mata, muitas vezes a ave fica restrita às áreas de Reserva Legal e de Preservação Permanente. “A gente já viu em Reservas Legais ninhos de harpias em castanheiras que foram pro chão”, diz Tânia.
Desde 2015 o empresário e fotógrafo Carlos Tuyama trabalha como voluntário do Projeto Harpia e encontrou na fotografia uma ferramenta para coleta de dados científicos e educação ambiental.
“A fotografia e o vídeo obtidos por camera traps [armadilhas fotográficas] têm uma importância enorme porque você obtém informações e conhecimentos que, se você estiver lá o dia todo presente, você provavelmente não vai conseguir”, conta Carlos. “Como divulgação, é muito importante também para você criar uma empatia das pessoas. Nem todo mundo conhece um bicho desses e é importante ter um material para trabalhar com educação ambiental, principalmente nas comunidades próximas a esses ninhos.”
Salvar os ninhos é um dos principais objetivos dos pesquisadores que protegem a espécie. “Deveria ser uma lei, na hora preliminar de levantamento num plano de manejo, assinalar quais árvores têm ninhos”, diz Tânia Sanaiotti, ao mencionar as concessões florestais feitas pelo Serviço Florestal Brasileiro. “Quem está autorizando o corte tem ferramentas na mão que podem minimizar o impacto sobre essa espécie. Esse é um desafio para 2023.”
Este texto foi originalmente publicado pela Mongabay Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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