Hortas comunitárias resistem à urbanização na maior metrópole do Brasil

Compartilhar

Por Antonio Carlos Quinto, Ivanir Ferreira e Bruna Irala em Jornal da USP Do plantio ao prato, seja em um restaurante ou em qualquer residência na cidade de São Paulo, os legumes e as hortaliças passam por um longo caminho. São produzidos, em grande parte, em municípios próximos à capital, como Mogi das Cruzes, Santa Isabel e Suzano, na região leste, e Ibiúna, Itapetininga, Piedade do Sul e Sorocaba, na região oeste, formando o Cinturão Verde. Essa produção é encaminhada à Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), na Zona Oeste da cidade, que comercializa os alimentos junto a feirantes e comerciantes em geral. Nesse trajeto, os preços vão aumentando a cada etapa, ainda mais se existirem outros atravessadores e intermediários.

Além desta produção, há na capital paulista iniciativas de plantio de legumes e hortaliças nas chamadas “hortas comunitárias”. Nestes casos, o trajeto do plantio ao consumo é mais curto.

A USP vem atuando nesse caminho auxiliando estas iniciativas com pesquisas e estudos que permitem viabilizar novos empreendimentos ou incentivar os já existentes. Estes locais acabam se tornando campos férteis para a Universidade desenvolver estudos e experimentos em educação e segurança alimentar, cultivos de ervas medicinais e geração de conhecimento.

Estas “hortas comunitárias” vão surgindo cada vez mais nesta São Paulo que é a maior metrópole brasileira, com cerca de 12,3 milhões segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2021 – distribuídos numa área de 1.521 quilômetros quadrados (km²). Elas brotam em cantos cinzentos das regiões centrais da cidade ou em pedaços de chão esquecidos nas periferias.

Não se sabe ao certo quantas são, mas já passam de centenas, algumas com um caráter mais social de produzir alimentos saudáveis e gerar renda para quem há muito já foi esquecido pelo mercado de trabalho, ou como mote de sobrevivência contra desigualdades estruturais. E outras, instaladas em bairros de classe média, possuem um valor mais simbólico de resistência à frenética urbanização da cidade e mostram uma nova relação de consumo com o alimento.

De acordo com informações da Secretaria do Verde e Meio Ambiente, da Prefeitura de São Paulo, a plataforma Sampa+rural, que reúne iniciativas de agricultura, turismo e alimentação saudável, registra atualmente 103 hortas urbanas na capital paulista. No site da plataforma é possível visualizar a localização das hortas espalhadas pela cidade.

a USP, grupo de cientistas centraliza estudos sobre agricultura urbana

Dentre as diversas iniciativas da USP junto a hortas urbanas e comunitárias pode-se destacar o Grupo de Estudos em Agricultura Urbana (GEAU) que, em 2016, foi integrado ao Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. Desde então, o grupo traz uma proposta de nuclear debates e estudos sobre a agricultura urbana (AU) e periurbana no município de São Paulo: possibilidades, conexões e contemporaneidade. A coordenadora do grupo é a professora Thais Mauad, pesquisadora do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina (FMUSP) da USP, especialista em saúde urbana e fundadora da horta comunitária da FMUSP.

Desde a sua criação, em 2014, o grupo mantém parcerias com instituições de ensino e pesquisa no Brasil e no exterior, além de congregar pesquisadores de várias unidades da USP – da Faculdade de Medicina, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, do Instituto de Energia e Ambiente e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental -, e também permaneceu ativo, inclusive, durante a pandemia. Um dos artigos mais recentes publicado pelo grupo, em março de 2021, na revista Sustainability, foi The Impact of COVID-19 on Urban Agriculture in São Paulo, Brazil.

O artigo, de autoria de pesquisadores brasileiros e da Université Paris-Saclay, Paris, França, mostrou como os agricultores foram afetados por interrupções na cadeia alimentar durante a pandemia de coronavírus. Os pesquisadores mostraram que 50% dos agricultores urbanos de São Paulo foram afetados pela pandemia, o que resultou em sensível queda nas vendas de seus produtos. Os mais prejudicados foram aqueles que dependiam de intermediários, e mesmo entre os que conseguiram se adaptar aos novos canais de venda, 22% afirmaram que ficou mais difícil obter insumos para a horta. “Houve queda significativa no valor de venda dos produtos e aumento no custo dos insumos entre abril e maio de 2020”, descreve o artigo.

Os pesquisadores observaram também que embora os agricultores não tivessem recebido apoio institucional do governo durante a pandemia e os trabalhos nas hortas tivessem diminuído bastante, nenhuma horta foi fechada permanentemente.

Por fim, com todas as dificuldades, os autores reconhecem o papel estratégico da agricultura local no alívio da insegurança alimentar em grandes cidades como São Paulo e defendem a necessidade da melhoria de políticas públicas para a área. “A AU auxilia na diminuição da dependência de produtos frescos transportados por longas distâncias, especialmente em bairros mais carentes, criando renda e empregos para as pessoas que precisam”, relata o estudo.

Os dados foram obtidos a partir da análise de duas pesquisas governamentais, com 2.100 agricultores do estado de São Paulo e 148 da cidade de São Paulo, além de duas pesquisas qualitativas feitas com voluntários de dez hortas comunitárias e sete agricultores urbanos.

Parceria estuda a produção urbana em São Paulo e Melbourne

Em uma das parcerias estabelecidas no exterior, pesquisadores do GEAU e da Universidade de Melbourne, Austrália, buscam compreender como se estabelecem os sistemas de produção urbana de alimentos nas duas metrópoles – São Paulo e Melbourne.

O projeto visa gerar conhecimento e aumentar a capacidade de resiliência dos sistemas de produção urbana de alimentos; entender e aumentar a governança de agricultura urbana nas duas cidades; aumentar a capacidade técnica para melhorar as práticas de irrigação; e melhorar a seleção de plantas comestíveis apropriadas para os dois ambientes.

O projeto também inclui a realização de seminários e visitas técnicas para trocar conhecimento em permacultura (ciência holística e de cunho socioambiental, que congrega o saber científico com o tradicional popular) e irrigação no contexto urbano, além da promoção de eventos com a participação de autoridades do governo local (SP), com o objetivo de ajudar no avanço de políticas públicas locais para a produção sustentável de comida nas cidades e técnicas de manejo de água em tempos de crise hídrica.

“A parceria com Melbourne rendeu dois artigos e um capítulo de livro, cujo tema foi a agricultura urbana em Melbourne e São Paulo, tendo como pano de fundo a questão da terra”, explica ao Jornal da USP a professora Thais. O GEAU também publicou o dossiê Agricultura urbana no município de São Paulo: considerações sobre produção e comercialização na Revista de número 101, do IEA, em abril de 2021; e contribuiu com um capítulo de e-book sobre a fome, que será lançado em breve pela USP.

Conheça mais sobre os integrantes do grupo GEAU:

Partindo para a prática

Não bastam artigos, estudos e projetos. Para além das pesquisas sobre o tema e dos saberes científicos que resultam em benefício dessa nova demanda social da cidade, a USP parte para projetos concretos como o da “Horta da Faculdade de Medicina”, plantada na laje de um dos edifícios da Faculdade de Medicina.

Além dos benefícios proporcionados pelos alimentos produzidos e colhidos no local de forma orgânica, o espaço também serve de discussão para vários assuntos, como o das práticas integrativas junto à medicina tradicional. Thais Mauad, uma das fundadoras e coordenadora da horta, crê que é importante se pensar nos fatores que estão na gênese das doenças. “O ambiente da horta nos remete a origem do nosso alimento e sua importância para manter uma boa saúde”, diz

Na grade curricular da FMUSP existe a disciplina “Medicina Culinária”. De acordo com a docente, trata-se de uma disciplina optativa que já é ministrada há três anos. “Oferecemos uma vez por ano e, neste 2021, tivemos uma enorme procura, por mais de 100 alunos, e estamos ministrando na forma on-line para os campi de Ribeirão Preto e Bauru, além da capital”, conta. Na matéria, professores da FMUSP, profissionais e chefes gastronômicos ministram aulas e oficinas que abordam o impacto da alimentação na saúde dos pacientes. 

Thais fala dos variados cultivos que existem na horta. “Além das verduras e legumes mais conhecidos pela população, como alface, chuchu, cebolinha e couve, temos também as Pancs (plantas alimentícias não convencionais), que eram os alimentos consumidos por uma geração mais antiga – taioba, caruru, beldroega, ora-pro-nóbis, cambuquira, folha de batata-doce, etc. “Essas hortaliças são de fácil cultivo e cuidado, além de serem altamente nutritivas”, diz.

E para mostrar que essas plantas são saborosas, duas pesquisadoras da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP –  Ana Maria Bertolini e Gabriela Rigote – organizaram um e-book com receitas utilizando as Pancs. Acesse o livro de receitas: https://www.fsp.usp.br/sustentarea/e-books/  

Uma questão de saúde pública: São Paulo e Lisboa

Além de ter um lugar no Instituto de Estudos Avançados (IEA) e experiências práticas como da Faculdade de Medicina, os estudos sobre hortas urbanas e comunitárias na USP avançam. E por que não se comparar experiências de nossa cidade com a capital portuguesa, Lisboa? Esse foi o tema central de uma pesquisa desenvolvida na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.

A pesquisa mostra como acontece a construção da agricultura urbana em regiões de vulnerabilidade social, em bairros localizados na Zona Leste de São Paulo, e em Lisboa, Portugal. A socióloga Laura Martins de Carvalho, autora do estudo, explica ao Jornal da USP que as hortas portuguesas são institucionalizadas e a prefeitura local financia os projetos envolvidos nessa vertente.

Já em São Paulo, as iniciativas são horizontalizadas, democráticas e surgem da base comunitária. Os agricultores urbanos fazem autogestão. Produzem, colhem, vendem e partilham despesas e lucros. Em Portugal, o cultivo de hortaliças, verduras e chás está associado à terapia ocupacional do cultivar e plantar a terra e de garantir a continuidade dos sistemas naturais em territórios urbanos. Por aqui,  a necessidade básica de comida no prato do dia a dia da família é que move os agricultores urbanos a empreender.

A agricultura urbana também é meio de resistência contra desigualdades estruturais na Zona Leste de São Paulo. Dentre os agricultores, as mulheres vem assumindo um protagonismo em suas comunidades que as ajudam na superação de inúmeras violações vividas no âmbito social e familiar.

A tese Agricultura urbana em contextos de vulnerabilidade social na zona leste de São Paulo e em Lisboa, Portugal foi defendida esse ano, 2021, sob a  orientação da professora Cláudia Bógus, da FSP. 

Pesquisa da Escola de Comunicações e Artes amplifica voz de lideranças

Na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, o doutorando Douglas Galan produziu o documentário Cyber-Roça que trata do assunto em profundidade. Com duração de 1h36min, a produção retrata atividades ligadas a hortas urbanas comunitárias espalhadas pela cidade de São Paulo. O trabalho resultou na tese Cyber roças: registros e realizações audiovisuais sobre agricultura urbana em contextos geográficos metropolitanos, midiáticos e tecnológicos, defendida em 2020 no programa Meios e Processos Audiovisuais da ECA, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). 

“De uma certa forma, a tese e o documentário são uma homenagem às minhas raízes e, de forma geral, às raízes do povo brasileiro, que deve muito ao campo em relação a sua formação e à cultura”

O documentário traz o depoimento de lideranças de várias hortas, algumas instaladas em bairros das regiões centrais – Horta do Ciclista, na Paulista; Horta das Corujas, na Vila Mariana; Horta das Nascentes, na Pompeia – e outras de iniciativas periféricas da cidade – as da Zonas Leste e Sul, por exemplo, essas últimas gerando grande impacto positivo para a comunidade do entorno. Onde elas foram instaladas, houve melhora de qualidade de vida, trouxeram renda e os praticantes da agricultura urbana se sentiram mais estimulados no combate às violências estruturais.

O documentário tratou ainda de questões que envolvem a produção de alimentos, a ampliação do espaço físico de cultivo através de meios eletrônicos e digitais, a reconstituição das noções sobre espaço geográfico, e as reorganizações culturais e sociais vinculadas ao contexto da agricultura urbana, dentre outras questões. 

Douglas explica ao Jornal da USP que um dos motivos que o levou a seguir esse tema em seu doutorado foi o fato de se surpreender com a pujança das iniciativas que aconteciam nas cidades e perceber os inúmeros benefícios que essas atividades proporcionavam às pessoas envolvidas. Do ponto de vista pessoal, a motivação veio por ter tido um passado rural. Durante a infância e adolescência, morava em um sítio em Jales, interior de São Paulo. Os pais e os avós trabalharam e viveram em sítios durante boa parte da vida, nem sempre nas melhores condições, já que eram meeiros em terras de outras pessoas. “De uma certa forma, a tese e o documentário são uma homenagem às minhas raízes e, de forma geral, às raízes do povo brasileiro, que deve muito ao campo em relação à sua formação e cultura”, diz. 

Assista ao documentário:

As múltiplas funções da agricultura urbana

Em outra pesquisa sobre as hortas urbanas/comunitárias desenvolvida na USP, a engenheira ambiental Roberta Moraes Curan apresentou na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba, a dissertação de mestrado Multifuncionalidade da agricultura urbana de base agroecológica: um estudo na Zona Leste do município de São Paulo/SP.

O estudo de Roberta envolveu agricultores e agricultoras que atuam na Associação de Agricultores da Zona Leste (AAZL), no município de São Paulo. “Procuramos verificar em que medida a agricultura urbana de base agroecológica desempenha múltiplas funções e de que forma contribui para diferentes dimensões de vida daqueles agricultores”, descreve a pesquisadora, que também integra o Grupo de Estudos em Agricultura Urbana (GEAU) do IEA. “A agricultura urbana não é só produção de alimentos. Há que se destacar os aspectos educacionais, pois estas hortas estimulam a educação alimentar e ambiental”, diz Roberta.

A engenheira ambiental estudou a AAZL com análises baseadas em três dimensões, cada uma contendo diferentes funções. Na dimensão sociocultural – segurança alimentar e nutricional (SAN), saúde e educação alimentar; na dimensão econômica – redução da pobreza e inclusão social, estímulo a novas formas de distribuição e comercialização; na dimensão ambiental – preservação da biodiversidade, ciclagem de resíduos orgânicos, água e nutrientes e microclima favorável. Desta forma, foi possível verificar que as hortas cumprem múltiplos papeis com diferentes intensidades, possuindo, na prática, lugar importante na vida destes agricultores e da comunidade urbana ao seu redor.

Roberta entrevistou 11 agricultores da AAZL e consultou bibliografias sobre o tema para desenvolver sua pesquisa. A AAZL tem cerca de 30 associados e eles atuam em bairros da Zona Leste da cidade, como São Matheus, São Rafael, José Bonifácio, junto a uma das Cohabs, Lajeado e Iguatemi. “Existe uma horta que não está na Zona Leste, mas sim no bairro do Ipiranga”, lembra Roberta. Dentre as regras para participar desta associação, é exigido do agricultor que ele tenha uma produção agroecológica. “As hortas são relativamente pequenas, com cerca de mil metros quadrados (m2). Dentre as estudadas na pesquisa, a maior tinha 6 mil metros quadrados”, lembra Roberta. Segundo ela, a AAZL ainda não congrega todos os agricultores da região leste da cidade. “Certamente, há mais agricultores na região que produzem há muito tempo, mas que ainda não são filiados à AAZL”, afirma. Ela destaca que a Associação possui um certificado emitido pelo Ministério da Agricultura em que os agricultores se autocertificam. É a chamada certificação participativa.

Estimulando o engajamento político

Em outro estudo da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba, o pesquisador André Ruoppolo Biazoti analisou de que forma o envolvimento dos cidadãos nas hortas potencializou o engajamento cívico e ativista frente aos problemas urbanos. O estudo intitulado Engajamento político na agricultura urbana: a potência de agir nas hortas comunitárias de São Paulo mostra que a cidade é o berço de diversas hortas comunitárias, organizadas por meio de redes sociais e que possuem um potencial enorme de articulação política. “A troca de informações e experiências sobre a produção de alimentos estimula o engajamento cívico”, observa Biazoti.

“Espinoza [o filósofo] fala que quanto mais você tem afetos alegres, ou seja, quanto mais as coisas te enchem de alegria, mais você se sente potente para realizar outras coisas e eu percebia isso acontecer nas hortas”

O pesquisador aponta que boa parte das hortas estudadas surgiram a partir de 2010, por articulação de grupos nas redes sociais, que se juntaram para ocupar terrenos antes ociosos. “São hortas pedagógicas, ou seja, que além de existirem para a produção de alimentos, também são espaços terapêuticos, de ativismo e lazer, que conectam as pessoas com a natureza”, explica o pesquisador.

Um dos conceitos dentro dos estudos sobre agricultura, como explica Biazoti, é a sua multifuncionalidade. Isto é, a agricultura cumpre outras funções nos territórios para além da produção. “No caso da agricultura urbana, a horta tem uma função terapêutica, de desenvolvimento comunitário, pois é um espaço onde pessoas de determinado bairro se encontram, conversam, trocam receitas, experiências e defendem o lugar onde vivem.”

Além disso, hortas comunitárias em praças, por exemplo, garantem a qualidade do espaço público, ao transformar um local que antes estava vazio em um local que está sendo, de fato, utilizado pelas pessoas, um refúgio de fauna e flora dentro da cidade. “A presença de hortas comunitárias aumenta a quantidade de áreas verdes permeáveis, diminui o risco de enchentes e garante que a água se infiltre no solo”, aponta Biazoti.

Um caso interessante ocorreu numa praça na região da Pompeia, Zona Oeste de São Paulo. Antes Praça Homero Silva, o local ficou conhecido desde 2013 como Praça da Nascente, por abrigar 13 nascentes que só foram descobertas por conta de uma mobilização de diversos moradores da região. Segundo o pesquisador, após a construção da horta comunitária, houve um processo de revitalização do local, antes abandonado, que levou à construção de um lago usando a água dos afloramentos.

“De acordo com Espinoza, a política surge por meio dos desejos das pessoas, no que ele chama de potência de agir”, afirma o pesquisador. Baruch Espinoza foi um filósofo holândes do século 17, responsável por constituir uma “ciência dos afetos”. O pensador é o referencial teórico de Biazoti.

Por cumprir uma série de funções para além da produção de alimentos e abastecimento alimentar de determinadas famílias, a horta urbana é um espaço que potencializa a ação comum. 

“A partir do momento que as pessoas percebiam que não estavam sozinhas e que a melhora daquele espaço era algo que elas faziam junto com outras pessoas do bairro, era possível representá-las junto à prefeitura ou a algum órgão público. Isso possibilitava um espaço horizontal de decisão sobre aquela área.” Para além de ser um espaço público, o local da horta se torna um espaço comum, não mais de propriedade da prefeitura. “Acaba se tornando um espaço de propriedade das pessoas que estão, de fato, manejando e usufruindo da horta, em nome de uma coletividade mais ampla”, conclui.

Além disso, as pessoas começaram a se engajar politicamente, participando de conselhos municipais e reuniões com a administração municipal. “Eram pessoas que não tinham necessariamente um perfil para isso, ou seja, cidadãos comuns que eram publicitários, jornalistas, médicos, enfim, pessoas de perfis totalmente diferentes, que começaram a se engajar com política”, descreve Biazoti. Tudo isso feito de forma voluntária, pelo simples intuito de se conectar com o espaço, conhecer novas pessoas e cuidar para que aquele espaço seja melhor.

Essas pessoas também se articularam em defesa da agricultura na cidade de São Paulo. “Quando eles participam de uma audiência pública, por exemplo, não é só pra defender a sua horta, o seu território. Elas vão para defender os agricultores da cidade e se colocavam enquanto parte desses agricultores”, aponta o pesquisador.

No entanto, André ressalta que, apesar da participação em hortas comunitárias potencializar uma atuação mais ampla das pessoas, ainda existem muitos desafios para a constituição de um grupo que consiga se articular politicamente de forma decisiva. “Essa participação potencializa para uma micro multidão, mas ainda não é essa multidão que precisa existir para de fato ser uma força política de peso na cidade de São Paulo”, explica.

Hortas urbanas se mantêm pela dedicação de seus gestores e colaboradores

Horta Sabor da Vitória

Dona Terezinha dos Santos Matos, 54 anos, é da horta “Sabor da Vitória”, do bairro de São Matheus, Zona Leste de São Paulo. Ela e o marido, o sr. Nildo, tocam as atividades da horta, de onde tiram o sustento da casa. Semanalmente, eles organizam uma banca para venda de seus produtos, preparam cestas e ainda os levam para serem comercializados em espaços de convivência e economia solidária, como a Feira de Orgânicos de Itaquera e do Tatuapé e algumas lojas como o Instituto Feira Livre e o Instituto Chão.

Dona Terezinha veio de Ribeira de Pombal, Bahia, há 25 anos, e se diz apaixonada pelo que faz em sua horta. Em sua cidade natal, trabalhava na roça com a família, mas dizia que não queria aquela vida para ela no futuro porque era muito sofrido. Ao chegar a São Paulo, depois de trabalhar com vendas de cosméticos e como camelô, o destino a levou a lidar novamente com a terra. Perguntada sobre o que a empolgou a ser uma agricultora em São Paulo, ela diz que o clima é mais estável e, principalmente, há mais garantia, graças à valorização da agricultura urbana, de ter seus produtos comprados pelas pessoas.

Horta da Medicina

Dona Dirlei Ferreira de Oliveira, 65, que mora em Itapecerica da Serra, município da região metropolitana de São Paulo, há seis anos atravessa a cidade para trabalhar como voluntária da Horta da Faculdade de Medicina da USP. Para ela, é prazeroso lidar com a terra. Três vezes por semana, ela faz parte do mutirão que se encontra na faculdade para cuidar da horta – regar, podar, colher e plantar novas mudas.

Dona Dirlei conta que trabalhou com muita coisa na vida, foi empregada doméstica, vendia roupas usadas e costurava, mas precisou parar tudo para cuidar do marido que ficou doente e acamado por muitos anos. Depois que ficou viúva, procurou restabelecer seus contatos sociais e conheceu o pessoal da horta. “A dona Dirlei está sempre aqui conosco ajudando. É uma das voluntárias mais assídua da horta”, diz a professora Thais. “Agora me sinto livre por não ter mais compromissos com a casa e nem com o marido, posso ir e vir a hora que quiser”, diz.

Paulo Zembruski, técnico agrícola e diagramador chefe do Serviço de Documentação Científica da Faculdade de Medicina, também é um dos fundadores da horta da FM. Sua origem é Pato Branco, Paraná, onde viveu sua infância e parte da adolescência com os familiares no sítio de produção de alimentos. Embora seja formado em comunicação social e também aproveita essas habilidades para atualização das redes sociais da horta, sua maior dedicação é mesmo no cultivo de alimentos. Depois que termina seu expediente como diagramador na faculdade, vai para a horta: semeia, rega, limpa canteiros, prepara a terra, colhe e faz mais o que precisar.

Sua formação como técnico agrícola e as lembranças remanescentes do sítio onde morava contribuíram muito para sua vivência na horta, mas foram os desafios do dia a dia que lhe trouxeram muito aprendizado. No curso técnico aprendeu o manejo de plantas na terra, já na horta da FMUSP, inicialmente tudo era cultivado em bombonas de plástico. Houve um tempo em que se perdeu quase tudo em virtude das altas temperaturas da laje onde estavam as bombonas, explica. “Tivemos que buscar alternativas”. Foi aí que surgiu a ideia de utilizar caixas grandes de isopor como vaso para realizar os plantios. Inicialmente, houve uma certa desconfiança de que essa experiência pudesse não dar certo, mas quando se observou que mesmo estando no isopor a terra permanecia saudável, contendo minhocas, este foi o “bioindicativo” para atestar a boa qualidade do solo. Hoje, a horta é composta de vasos de bombonas, colocadas em cima de paletes de madeira e vasos de isopor.

Horta Monte Azul

José Cândido da Silva, 68 anos, é o fundador da “Horta Monte Azul”, que está localizada no Capão Redondo, Zona Sul de São Paulo. Antes da criação da horta, já trabalhava com os moradores da comunidade Monte Azul, dessa mesma região, com atividades educacionais de formação de professores baseado na filosofia antroposófica de Rudolf Steiner e da linha Paulo Freire. Viajou para várias regiões da Europa, inclusive a Alemanha, onde teve contato maior com filosofia de Steiner, considerado o criador da antroposofia, da pedagogia Waldorf, da agricultura biodinâmica e da medicina antroposófica.

Na comunidade Monte Azul, diariamente se deparava com pessoas mais velhas desalentadas (desempregadas ou aposentadas), perambulando na região, sem ter muito o que fazer. Pensou na possibilidade de criar algum projeto que pudesse incluir essas pessoas e desse um sentido de vida para elas. Foi quando surgiu a ideia da horta. Além de ajudar os mais velhos a ter uma ocupação, poderia também atrair jovens daquela região.

No início, Zeca, como é conhecido, conta que não foi fácil. O trabalho na horta é árduo. É necessário pelo menos uns seis meses para se obter os primeiros frutos. Preparar a terra, plantar, cuidar e esperar o tempo de crescer. Muitos desistiram, mas os que ficaram, viram o projeto crescer. Teve época em que fizeram convênio com a Prefeitura de São Paulo e os que trabalhavam na horta recebiam um salário. Puderam comprar equipamentos e até fizeram um banco de sementes a partir da própria produção. Zeca hoje não faz mais parte da horta, ele se mudou com sua companheira, indígena da etnia Tucano, para a reserva do Capivari, extremo sul de São Paulo.

Horta das Flores

No tradicional bairro da Zona Leste da cidade, a Mooca, está localizada a Horta das Flores, à margem de uma das principais avenidas da região, a Alcântara Machado, mais conhecida como Radial Leste. Considerada uma das poucas áreas verdes do bairro, a Horta das Flores ocupa um espaço de cerca de 7 mil metros quadrados na praça Praça Alfredo Di Cunto.

Funcionando no local há 17 anos, a iniciativa foi fundada pelo senhor Pedro de Almeida. Atualmente, a gestão do espaço é feita pelo publicitário José Luiz Fazzio e pela gestora ambiental Maria Regina Grilli. “Estamos na gestão desse projeto há cerca de sete anos, lutando e resistindo a diversas investidas do poder público em transformar essa praça seja em moradia popular ou outros empreendimentos”, conta o publicitário. Além de planos de construção de uma creche no local, como já ocorreu tempos atrás, houve também especulações de um possível empreendimento habitacional. Mas quando Fazzio e Maria Regina assumiram a gestão do local, passaram a atuar fortemente junto à subprefeitura. “E essa luta perdura até hoje”, ressalta o gestor.

No espaço da Horta das Flores não há somente hortaliças e legumes. “Estamos com diversas espécies de árvores da Mata Atlântica, todas devidamente catalogadas com QR code”, conta Fazzio. De acordo com ele, um terço do espaço é ocupado com árvores frutíferas.

Cerca de 30 pessoas atuam na manutenção da Horta das Flores. Eles trabalham em sistema de revezamento durante a semana no trabalho de rega, poda e demais cuidados. E, nos finais de semana, a concentração de pessoas aumenta por conta das degustações das frutas e demais atividades que acontecem no espaço, como troca de sementes e pratos especialmente preparados com produtos da horta. “Aos domingos, das 8 às 14 horas, o espaço chega a concentrar entre 50 e 70 pessoas”, estima Fazzio.

A produção da Horta das Flores não é comercializada. Boa parte é destinada a programas parceiros e entidades e projetos como Verdejando, Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto – BOMPAR, Arsenal da Esperança, Pedra 90 e o projeto OHQUIDEA (que resgatou mais de 10 mil orquídeas desde 2017).

“A horta também tem projetos de parcerias com universidades como a USP e outras particulares, como Uninove, Universidade Anhembi Morumbi e São Judas Tadeu”, destaca o gestor. O foco maior da Horta das Flores, de acordo com Fazzio, é a educação ambiental. E com relação à USP, ele destaca que há consultas frequentes junto a especialistas, principalmente em relação a informações sobre segurança alimentar e manutenção do solo.

Associação dos Agricultores da Zona Leste (AAZL)

Associação dos Agricultores da Zona Leste (AAZL) foi instituída em 2009. “Trata-se de uma estrutura em que todos agricultores filiados participam da organização da entidade”, explica a bióloga e pedagoga Andreia Perez Lopes, que responde pela área administrativa da AAZL. Ao todo, a entidade reúne 40 agricultores e 14 hortas onde, segundo Andreia, cada agricultor é responsável por sua área.

O trabalho da AAZL, como explica Andreia, é organizar os agricultores prestando assistência técnica agroecológica, desenvolvendo projetos e promovendo parcerias para a comercialização dos produtos. “Incentivamos a agricultura urbana aqui na Zona Leste da cidade e também divulgamos os projetos que desenvolvemos por meio das nossas redes sociais”, descreve a bióloga. Os agricultores que participam da associação não utilizam em suas áreas agrícolas adubos químicos, agrotóxicos ou qualquer outro produto que contamine a terra.

Outra vantagem da AAZL é que a organização possibilita que os agricultores pratiquem preços menores que os de mercado. “Os preços são muito menores até do que os produtos que são encontrados nas feiras convencionais e supermercados”, garante Andreia, lembrando que 90% da produção é de verduras e alguns legumes. Não há forte produção de frutas, segundo Andreia, porque grande parte das áreas das hortas pertencem às concessionárias de águas. “Em algumas áreas particulares que permitem o plantio de árvores temos algumas frutas, como abacate, banana, acerola, jabuticaba, amora e limão”, destaca.

Horta da Saúde

Desde 2013, no bairro da Saúde, na Zona Sul da cidade, funciona a Horta da Saúde. O que antes era um ponto inerte num espaço público, que gerava problemas socioambientais por descarte de lixo e entulhos, e também ponto de drogas, há oito anos abriga a horta.

“A Horta da Saúde nasceu da vontade de criar naquele local um espaço de convivência sustentável e regenerativa, onde compartilharíamos conceitos de permacultura, conexão à natureza e com um olhar especial para as pessoas”, conta Sergio Shigeeda, que atua como voluntário e é cocriador da horta. “Além do cultivo de convencionais e pancs, a preocupação com a água, os resíduos, as abelhas e as pessoas fazem parte do nosso eixo de vida sustentável”, descreve Sérgio, que é bacharel em Ciências da Computação pela USP, e também ambientalista e ativista sócio ambiental.

Localizada nas proximidades da estação do Metrô Saúde, o espaço de 420 m2 se mantém pelo trabalho de voluntários que consomem, moderadamente, o que é produzido. “Doamos mudas, sementes e estacas para a criação de novas hortas até para moradores do entorno”, diz Sérgio. Ele conta que na cerca da horta há plantas como ora-pró-nóbis, moringa oelífera, cidreiras e aguaco. Tudo disponível à comunidade.

Mas a produção maior da Horta das Flores é de plantas tradicionais, como alface, almeirão, rúcula, rabanete, couve, repolho, mandioca, salsinha, cebolinha, mostarda, beterraba, inhame, alecrim, manjericão, hortelão, capim limão, banana nanica, prata e ouro, limão, amora, e outros. “Há ainda plantas que trouxemos de fora, como almeirão roxo, moringa oleífera, capuchinha, peixinho, taioba, cúrcuma, mitsubá, dente de leão, picão, serralha, tanchagem, chaya, erva baleeira, melissa, etc”, contabiliza. Mas, além disso os voluntários da Horta da Saúde também atuam como cuidadores e divulgadores de abelhas sem ferrão. “Por isso temos que ter flores em todos os estratos para as nossas polinizadoras, para compartilhar que sem abelhas não teremos alimentos”, enfatiza Sérgio.

“E como ‘Horta Comunitária’, não realizamos comércio”, avisa o colaborador. Junto ao conselho do meio ambiente da região da Saúde, os colaboradores da Horta da Saúde conseguiram trazer ao local a feira orgânica da Saúde, que funciona às quartas-feiras, das 7 às 15 horas, na praça da José Maria Withacker. “Incentivamos a criação de outros pontos de vendas menores para que todos tenham acesso à alimentação saudável e sustentável”, destaca Sérgio. Mas as atividades da iniciativa também englobam plantios arbóreos pela cidade. “Recebemos estudantes de todo o Brasil e de outros países para colaborar com trabalhos de conclusão de cursos, mestrandos e doutorandos”, lembra. Há também o fornecimento de alimentos da horta a duas comunidades locais.

Equipe eCycle

Você já percebeu que tudo o que você consome deixa um rastro no planeta? Por uma pegada mais leve, conteúdos e soluções em consumo sustentável.

Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.

Saiba mais