Por Sarah Brown, traduzido por Carol De Marchi e André Cherri, para a Mongabay.
- Os incêndios em 2020 devastaram uma área maior que o estado de Alagoas no Pantanal brasileiro, matando pelo menos 17 milhões de animais e deixando a população local sem água.
- Várias iniciativas de ONGs locais estão assumindo o desafio de proteger a região que é o maior pântano tropical do mundo, educando moradores sobre os riscos de incêndio e treinando pecuaristas pantaneiros como bombeiros voluntários.
- A maior parte dos incêndios de 2020 no Pantanal começou em fazendas privadas, segundo um estudo que também ressalta a importância de treinar os fazendeiros para suprimir as chamas antes que elas se transformem em incêndios florestais.
- Especialistas dizem que os alertas de incêndio no Pantanal caíram 91% este ano em comparação com o mesmo período em 2020, graças ao clima mais úmido e ao aumento dos esforços do governo estadual e dos programas voluntários.
Moisés Oliveira de Carmo relata um dia em 2020, quando viu uma cadeia de chamas se espalhar lateralmente nas bordas de sua fazenda, unindo-se para então criar uma enorme parede de fogo.
Para ele, o vento foi o maior problema, pois alimentou as chamas em diversas direções, deixando ele e sua família ansiosos enquanto olhavam para onde o fogo iria em seguida, rezando para que não se aproximasse ainda mais de sua propriedade na comunidade Furna Dois em Poconé, no meio-oeste de Mato Grosso. Eles estavam armados com galhos grossos e baldes de água para apagar as chamas, mas sabiam que isso seria inútil contra o fogo que se elevava a 4 metros de altura.
Oliveira foi um entre as centenas de agricultores afetados pelos incêndios recordes de 2020 no Pantanal. Ele foi um dos poucos que tiveram sorte: as chamas contornaram a pequena propriedade da família e acabaram sendo apagadas por alguns dos poucos bombeiros estaduais que estavam espalhados por milhões de hectares combatendo os incêndios.
Os danos ao Pantanal foram devastadores. Em 2020, cerca de 4 milhões de hectares foram destruídos por incêndios – quase o tamanho do estado do Rio de Janeiro. As chamas mataram pelo menos 17 milhões de vertebrados e devastaram a vida de milhares de habitantes. “Na maior planície alagada do mundo, as pessoas da região não tinham água para beber”, diz Vinicius Silgueiro, coordenador do Instituto Centro de Vida, uma organização sem fins lucrativos para a conservação da terra.
Para evitar que um desastre semelhante aconteça novamente, equipes de ONGs estão colaborando com as comunidades pantaneiras para educar os habitantes sobre os riscos de incêndio e treinar os pecuaristas como bombeiros voluntários.
“Brigadas comunitárias e privadas, com o apoio de fazendeiros e ecobrigadas locais, podem diminuir o tempo de resposta ao fogo”, disse Silgueiro à Mongabay. “Quanto mais rápido você chegar para combater o fogo, maior o controle e maiores as chances de reduzir os impactos negativos.”
Em 2009, a Aliança da Terra tornou-se o primeiro programa de treinamento de bombeiros voluntários do Brasil. A organização sem fins lucrativos educou e treinou moradores do Cerrado em parceria com o Serviço Florestal dos Estados Unidos (USFS), antes de distribuir as equipes pelo Pantanal no ano passado em resposta aos incêndios que ali ocorriam. Na última década, a Aliança já combateu mais de 500 incêndios e treinou mais de 930 pessoas, incluindo agricultores, pecuaristas e comunidades indígenas.
A combinação do treinamento do USFS com um conhecimento profundo das condições locais tornou as brigadas altamente eficazes no treinamento e no combate aos incêndios, disse Caroline Nóbrega, gerente geral da Aliança da Terra. “As equipes realmente entendem o que chamamos de ciência do fogo”, disse ela à Mongabay.
A Aliança da Terra tem atualmente 168 fazendas registradas em seu programa, ajudando a proteger 2,2 milhões de hectares de vegetação nativa em todo o Pantanal e Cerrado. As brigadas visitam as fazendas para avaliar com precisão qualquer risco de incêndio e fornecer soluções sob medida para tornar a propriedade menos vulnerável a queimadas.
Uma das regiões onde operam é Poconé, conhecida como a porta de entrada para o Pantanal Norte. O município abrange uma área de 1,7 milhões de hectares; mais da metade desta área foi queimada nos incêndios de 2020. De acordo com um estudo de 2021, quase 80% dos incêndios ocorreram em terras agropecuárias, ressaltando a importância de treinar os fazendeiros no combate a incêndios para suprimir as pequenas chamas antes que elas se transformem em queimadas. “A Aliança da Terra foi projetada especificamente para áreas privadas”, disse Nóbrega. “É um sistema onde você tem uma equipe altamente capacitada que está dando apoio a grupos de produtores rurais.”
A equipe de cinco bombeiros que opera em Poconé monitora uma região de mais de 400 mil hectares, usando drones para sondar o terreno em busca de sinais de fumaça ou incêndio, além de dados via satélite que geram alertas de fogo em tempo real, enviados para seus celulares. Se um alerta aparecer dentro de sua propriedade, eles correrão para o local para investigá-lo. Quando não há alertas, a brigada usa o tempo para falar com a comunidade sobre os riscos de queimada e verificar se as medidas preventivas estão em vigor.
“Felizmente, não tivemos muitos incêndios este ano em Poconé”, disse Eusimar Araújo, o líder da brigada no município, à Mongabay. “No ano passado, combatemos 23 incêndios, sendo que um deles durou 17 dias. Este ano, apagamos apenas um até agora.”
Os alertas de incêndio em toda a região do Pantanal caíram nos últimos dois anos. De janeiro a agosto deste ano, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) registrou 907 alertas em todo o Pantanal, uma queda de 62% em relação ao mesmo período do ano anterior (2.384 alertas) e 91% do mesmo período em 2020 (10.153 alertas). Na Floresta Amazônica, que faz divisa com parte do Pantanal, os alertas de incêndio dispararam este ano, atingindo uma alta de dez anos.
Especialistas atribuem a redução das queimadas no Pantanal a uma combinação de maior reforço dos governos estaduais, dias mais úmidos e brigadas locais de voluntários trabalhando em conjunto para combater rapidamente os incêndios. “Isso mostra que essas iniciativas são úteis para evitar incêndios e oferecem uma resposta rápida enquanto eles estão pequenos”, disse Silgueiro.
Espírito comunitário para combater os incêndios
A van da Aliança faz barulho quando o líder de brigada Araújo a guia por um curto caminho de terra. Ele está em uma de suas viagens de rotina para conhecer os fazendeiros locais, desta vez fazendo uma visita a Oliveira.
No período que antecede a temporada de incêndios, de março a maio, Araújo e sua equipe visitam fazendas e ecolodges para treinar os moradores em prevenção e combate ao fogo com segurança. Eles ensinam a usar sopradores para remover o oxigênio e tanques de água que atiram jatos direcionados às chamas, bem como a fazer queimadas controladas e aceiros.
“Antes, eles [Oliveira e fazendeiros vizinhos] não sabiam como administrar ou combater os incêndios”, disse Araújo. “Eles não sabiam como evitar o perigo em suas terras.”
Eles também não trabalhavam juntos quando se tratava de combater incêndios, segundo Araújo. Se uma propriedade vizinha tinha um incêndio, consideravam que era responsabilidade do fazendeiro em particular apagá-lo. Hoje, os fazendeiros agem em conjunto para apagar quaisquer chamas próximas, domando o fogo antes que ele se descontrole.
Desde o ano passado, a equipe já treinou 30 bombeiros voluntários locais em Poconé. Oliveira é um deles. Ele ajudou a brigada a extinguir um grande incêndio no ano passado e agora pode ser convocado pela comunidade para ajudar no caso de um incêndio.
Dois cães correm e latem enquanto Araújo se dirige para a casa térrea da fazenda de Moisés Oliveira. A terra ao redor tem faixas de cultivo de mandioca e rebanhos de gado Nelore. Enquanto Araújo e sua equipe saltam da van, Oliveira e sua família os recebem com café, queijo local e bolo caseiro.
“Araújo nos salvou”, disse Joel Oliveira de Carmo, pai de Moisés. “Tem sido tão bom ter ele e sua equipe nos ajudando. Agora sabemos o que fazer se houver um incêndio. Estamos muito mais seguros.”
Não foi fácil conseguir a adesão dos moradores de imediato, e a equipe teve que conquistar confiança da comunidade. “Fomos de porta em porta nos apresentando. No início, as pessoas estavam cautelosas e inseguras”, disse Araújo. Os agricultores estavam preocupados com o fato de que a brigada pudesse fazer parte do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], e que estaria lá para multá-los por qualquer incêndio não autorizado. “Mas quando um incêndio chegou, eles nos chamaram e viram que estávamos lá apenas para ajudar”, disse Araújo. “A palavra se espalhou assim.”
O envolvimento da comunidade no combate ao fogo reduz o tempo de resposta e o impacto dos incêndios na subsistência e na vida selvagem, disse Leonardo Gomes, coordenador da SOS Pantanal, uma organização de conservação sem fins lucrativos. O grupo também tem um programa voluntário de combate a queimadas que opera no Pantanal. “Além da unidade comunitária, os programas voluntários acabam realmente melhorando o diálogo entre agricultores, bombeiros e o Ibama”, disse Gomes à Mongabay. “Estamos todos falando a mesma língua agora”.
“Também percebemos que só a presença dessas brigadas no Pantanal – pessoas de uniforme e participando da educação ambiental – cria um cenário de maior vigilância e dissuade as pessoas de queimar terra”, acrescentou Gomes.
Mudanças climáticas e ação humana
Os incêndios no Pantanal são normais na estação seca, normalmente nos meses do meio do ano, quando a terra fica seca. Porém, o crescente número e gravidade das queimadas nos últimos anos está ligado à complexa interação entre a mudança climática e a atividade humana.
Silgueiro disse que quase todos os incêndios podem ser rastreados até uma fonte humana. Em 2020, nove pontos de origem estavam ligados a 67,5% de tudo o que havia sido queimado no Pantanal de Mato Grosso até meados de agosto – oito desses nove pontos estavam dentro de propriedades rurais privadas. “Há uma relação entre a incidência de incêndios e o uso agrícola”, disse Silgueiro.
A queima é uma prática comum entre agricultores e pecuaristas para limpar a terra e renovar os pastos. A Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema) autoriza a queima controlada mediante solicitação e supervisiona a queima entre novembro e junho. Para fazer um pedido, a fazenda deve estar registrada no Cadastro Ambiental Rural (CAR), mas nem todas estão, o que significa que algumas das queimadas não são autorizadas, disse Silgueiro.
Entre julho e outubro, é estritamente proibido queimar terras, exceto para os povos indígenas, por razões culturais, iniciativas de pesquisa ou queimadas prescritas para o manejo de incêndios. A queima por qualquer outro motivo durante este período pode incorrer em multa do Ibama Entretanto, o enfraquecimento dos poderes do órgão sob a administração do presidente Jair Bolsonaro, e cortes no orçamento de 58% para o combate a incêndios, têm dificultado o monitoramento e a vigilância desde que Bolsonaro tomou posse no início de 2019.
“O que vimos das pessoas, especialmente nos últimos quatro anos, é a crença de que elas podem desmatar ou queimar terra, e nada vai acontecer”, disse Silgueiro. “É por isso que o retorno do Ibama é importante. Tem sido totalmente enfraquecido sob a atual administração federal”. Ele acrescenta que, embora as autoridades do estado de Mato Grosso tenham aumentado as ações de fiscalização, “não é o suficiente para enfrentar um problema desta magnitude”.
“O estado é enorme”, disse Silgueiro. Mato Grosso cobre uma área de mais de 90 milhões de hectares. “Portanto, a presença de agências federais é essencial, combinada e coordenada com os esforços das brigadas privadas e comunitárias para reduzir o tempo de resposta.”
Mas enquanto a maioria dos incêndios é iniciada por fazendeiros, alguns também se acendem por acidentes com cabos elétricos, acidentes de carro e faíscas de tratores, explica Nóbrega, a gerente da brigada da Aliança da Terra. “No ano passado, tivemos muitos problemas com os cabos elétricos como uma possível causa de incêndio”, disse ela. “Às vezes, os forasteiros começam a criar uma imagem de que aqueles que ateiam fogo deliberadamente no Pantanal são os pantaneiros. Mas essa nem sempre é a realidade.”
Incêndios começando mais cedo
A temporada de incêndios no Pantanal de Mato Grosso está mais longa, o que os especialistas dizem estar se tornando a nova norma na região. “Os incêndios começaram super cedo este ano, e ficamos realmente surpresos e preocupados”, disse Nóbrega, acrescentando que o fogo já começa a aparecer em maio. “Isso simplesmente não acontecia antes,”
“Em julho, já tínhamos alguns incêndios de tamanho considerável”, disse ela. “Não enormes, mas se não fossem apagados tão rapidamente, eles teriam tido o potencial de se tornarem muito maiores.”
A estação chuvosa no Pantanal vai de novembro a abril, quando 40% do terreno está inundado. As várzeas são geralmente submersas durante oito meses do ano, até 2 metros de profundidade. Entretanto, isto mudou nos últimos anos, especialmente desde 2019, quando ocorreu a pior seca na região nos últimos 50 anos.
“Para aqueles lá [no Pantanal], estas mudanças são óbvias”, disse Nóbrega. “Nessas áreas inundadas, você chega em abril e a área é seca.”
“Não sabemos quanto tempo este fenômeno vai durar”, acrescentou ela. “O Pantanal hoje está em uma situação absolutamente atípica de seca.”
O Pantanal perdeu 29% de sua superfície de água entre 1988 e 2018, de acordo com MapBiomas. Um estudo publicado em 2016 concluiu que, até o final do século, o Pantanal pode experimentar um possível aumento na temperatura média de 4 a 7 °C e até 30% a mais de perda de água na região.
“A mudança climática é real e infelizmente veremos provavelmente cenas [como aquelas em 2020] novamente”, disse Silgueiro. “É essencial que os fundos sejam estabelecidos para fornecer apoio emergencial à população de lá rapidamente. O Pantanal é rico em biodiversidade, mas também precisamos proteger a cultura local e garantir sua sobrevivência.”
Conforme o Pantanal sucumbe aos impactos climáticos das secas cada vez mais intensas e da diminuição da superfície da água, as ações de monitoramento e prevenção de incêndios antes da estação seca são cada vez mais importantes para se adaptar a esta nova realidade, disse Silgueiro.
Este ano, felizmente, houve um aumento da precipitação, trazendo algum alívio para o bioma. Nos meses de setembro e outubro, geralmente os de maior pico de incêndios, o número de alertas foi, respectivamente, de 242 e 48 segundo o Inpe. Os mesmos meses registraram, em 2020, 8.106 e 2.856 alertas de incêndio.
Araújo, o líder dos bombeiros de Poconé, aponta para um vasto pântano escondido sob trechos de canaviais, onde dezenas de jacarés descansam ao sol e cegonhas e colhereiros pisam na água turva. “Tudo isso ficou seco, como se cozido nesta época no ano passado”, diz ele. “Este ano tem sido muito mais úmido.”
“Por quanto tempo mais, ninguém sabe”, acrescenta ele, olhando para a previsão meteorológica de 10 dias com altas temperaturas e sol.
Citações:
Marengo, J. A., Alves, L. M., & Torres, R. R. (2016). Cenários regionais de mudança climática na bacia hidrográfica do Pantanal brasileiro. Climate Research, 68(2-3), 201-213. doi:10.3354/cr01324
Silgueiro, V. F., Souza, C. O., Muller, E. O., & Silva, C. J. (2021). Dimensões da catástrofe do incêndio de 2020 no pântano do Pantanal: O caso do município de Poconé, Mato Grosso, Brasil. Pesquisa, Sociedade e Desenvolvimento, 10(15). doi:10.33448/rsd-v10i15.22619
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