Indígenas acessam diretamente só 7% dos recursos doados para que preservem florestas

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Por Anna Beatriz Anjos, da Agência Pública | Embora desempenhem papel fundamental na preservação das florestas e da biodiversidade, os povos indígenas ainda quase não acessam diretamente o financiamento climático endereçado às suas próprias comunidades por governos e entidades filantrópicas. Na 27​​ª Conferência do Clima da ONU, a COP27, que acontece em Sharm el-Sheikh, no Egito, o movimento indígena mais uma vez demanda que essa arquitetura desigual de distribuição de recursos seja corrigida.

Em 2021, na COP26, os governos do Reino Unido, EUA, Alemanha, Noruega e Países Baixos, junto a 17 fundações, anunciaram o Indigenous Peoples and Local Communities’ Forest Tenure Pledge, uma promessa de doação de US$ 1,7 bilhão de 2021 a 2025 para que os povos originários e comunidades locais – entre as quais estão populações tradicionais como ribeirinhos e quilombolas, por exemplo – sigam protegendo seus territórios e desempenhando sua função fundamental na luta contra a crise climática. O último relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre mudanças climáticas) mostra que territórios indígenas têm menor desmatamento e menos incêndios.

No entanto, relatório divulgado na semana passada mostra que apenas 17 milhões dólares ou 7% dos recursos disponibilizados pelo grupo de doadores durante 2021 se encaixam na modalidade “apoio direto” – ou seja, verba direcionada às organizações indígenas sem a existência de intermediários, como organizações sem fins lucrativos ou governos.

Segundo o levantamento elaborado pelos próprios financiadores, metade (51%) dessa quantia foi canalizada para grandes ONGs internacionais que operam projetos com povos indígenas. Apesar dessas organizações serem aliadas da causa, lideranças brasileiras e estrangeiras dizem que, ao passar por elas, o dinheiro acaba se dispersando em custos operacionais ou sendo investido em outras iniciativas dentro de ações maiores e não chega efetivamente às comunidades. Depois das ONGs internacionais, os governos foram os que mais receberam recursos doados em 2021 (17%), seguidos por agência ou fundo multilateral (10%), mecanismo internacional de regranting ou fundo regional (8%) e só então as próprias entidades indígenas.

“Há um problema muito sério”, diz o equatoriano Juan Carlos Jintiach, secretário executivo da Aliança Global de Comunidades Territoriais, formada por federações indígenas da América Latina, África e Indonésia. “Agradecemos o compromisso anunciado [na COP26] e reconhecemos que é uma contribuição única para o movimento, mas não é tudo, não é o suficiente”, pontua. Ele afirma que é preciso que as ONGs internacionais sejam transparentes sobre onde estão aplicando os recursos recebidos “em nome do processo e da luta indígena”. “Se temos uma relação de confiança, eles precisam dizer porque não estão canalizando o dinheiro”, destaca.

A desigualdade geográfica na distribuição das verbas também é encarada como um problema. Do dinheiro disponibilizado em 2021, 38% foram destinados para ações voltadas a povos indígenas e comunidades locais da América Latina; 38% para ações globais; 16% para a África e apenas 7% à Ásia.

Juan Carlos Jintiach, secretário executivo da Aliança Global de Comunidades Territoriais, na COP27

Falta de transparência 

No relatório, o grupo de doadores reconhece a necessidade de “aumentar o financiamento e o apoio direto” aos povos indígenas e comunidades locais, investindo em mecanismos “liderados ou governados” por eles. Isso significaria uma mudança radical do cenário dos últimos anos, já que, entre 2011 e 2020, apenas 17% dos recursos direcionados à garantia da posse territorial e manejo florestal pelos povos indígenas e comunidades locais envolvia organizações indígenas, como indicou um estudo lançado em setembro pela Fundação Rainforest da Noruega.

Casey Box, diretor de estratégia global do Christensen Fund, uma das 17 entidades signatárias do compromisso, concorda que é urgente corrigir essa falha até 2025, quando a promessa de doação deve ser cumprida. “Isso é descolonizar a riqueza. É colocar o processo de tomada de decisão nas mãos dos povos indígenas com seus próprios sistemas e formas de apoiar suas comunidades”, afirma.

Além disso, lideranças indígenas apontam falhas de transparência e comunicação com os governos e entidades filantrópicas desde novembro de 2021, quando a promessa de doação foi anunciada na COP26. Segundo Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), foi só durante a primeira semana da COP27, com o lançamento do relatório, que as organizações que participam do processo conheceram os valores já desembolsados como parte do compromisso e informações sobre sua aplicação. No documento, os próprios doadores admitem que esse é um problema e colocam como prioridade para os próximos anos aperfeiçoar a prestação de contas e o diálogo com os povos indígenas e comunidades locais. 

Desde o início da COP27, lideranças da Aliança Global de Comunidades Territoriais têm se reunido com Zac Goldsmith, ministro dos Territórios Ultramarinos, Commonwealth, Energia, Clima e Ambiente do Reino Unido, para tratar do compromisso. “Nós gostaríamos de fazer parte de todo esse processo, foi uma das coisas que mais cobramos”, relata Tuxá. “As coisas acontecem nessa pirâmide invertida, em cima tem muitos recursos, e quando chega nas pontas a gente não vê o reflexo do que foi anunciado.”

Reunião entre lideranças da Aliança Global de Comunidades Territoriais e ministro do Reino Unido Zac Goldsmith na COP27

Fundos indígenas como alternativa

Como alternativa para reverter o problema da falta de acesso direto a financiamento climático, os povos indígenas têm apresentado na COP27 fundos criados e geridos por eles próprios. 

Já existem vários desses fundos espalhados pelo mundo, diversos entre si, mas que compartilham o fato de serem guiados “pelas visões de mundo indígenas e liderados por e para essas populações”, segundo estudo de 2021 da organização Internacional Funders for Indigenous Peoples (IFIP). O levantamento, realizado com 17 fundos indígenas de diferentes lugares do planeta e sete entidades financiadoras, aponta que essas iniciativas, por serem próximas às comunidades e terem conhecimento profundo dos problemas que enfrentam, entendem as medidas que melhor se adequam às suas realidades.

A Aliança Global de Comunidades Territoriais trouxe para a conferência a Plataforma Shadia, lançada em setembro com a missão de “garantir o acesso sustentável e oportuno” ao financiamento direto para ações de combate às mudanças climáticas desempenhadas por povos indígenas e comunidades locais. A ideia é que a plataforma facilite a interlocução entre os financiadores e essas populações, privilegiando o apoio a seus mecanismos de financiamento regionais e nacionais já existentes.

Um desses mecanismos é o Podáali, primeiro fundo indígena a atuar em toda a Amazônia brasileira, criado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Propagandeado na COP27, o Podáali já havia sido apresentado no ano passado em Glasgow. No Brasil há ainda o exemplo do Fundo Indígena do Rio Negro (FIRN), que atende  aldeias na região da tríplice fronteira com Venezuela e Colômbia e já está direcionando aproximadamente R$ 980 mil a quinze projetos selecionados em seu primeiro edital, cujo resultado foi divulgado em fevereiro.

A Platafroma Shandia já foi apresentada como alternativa de apoio direto aos povos indígenas para o grupo de doadores da promessa de doação feita em Glasgow e também à Forests and Climate Leaders’ Partnership (Parceria de Líderes Florestais e Climáticos, ou FCLP, na sigla em inglês), anunciada por 26 países e a União Europeia no início da COP27 para manter viva a promessa de zerar o desmatamento em todo o mundo até 2030, feito também na COP26. Um dos eixos de trabalho da FCLP é justamente o suporte a iniciativas lideradas por povos indígenas e comunidades locais.


Este texto foi originalmente publicado pela Agência Pública de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Carolina Hisatomi

Graduanda em Gestão Ambiental pela Universidade de São Paulo e protetora de abelhas nas horas vagas.

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