Por Laura Scofield em Agência Pública – Até hoje, somente dois indígenas ocuparam um gabinete na Câmara e nenhum foi eleito para o Senado. O primeiro foi o xavante Mário Juruna, que se elegeu pelo Rio de Janeiro no PDT em 1982; a segunda foi Joenia Wapichana, primeira mulher indígena a se tornar deputada federal, eleita no pleito de 2018 pela Rede de Roraima. Entre o término do mandato de Juruna — que quase foi cassado por bater de frente com os militares — e o começo da gestão de Wapichana, o Congresso brasileiro passou 30 anos sem nenhum representante dos povos originários.
Para não permitir que a situação se repita, entidades como a Associação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib) e o Parlamento Indígena do Brasil (ParlaÍndio), fundado em 2018 por lideranças históricas, como Raoni Metuktire, Almir Suruí e Davi Kopenawa, se preparam desde a última eleição para lançar e eleger seus candidatos. A Apib tem representação em todos os estados brasileiros, já o ParlaÍndio compreende cerca de 30 povos e mais de 50 lideranças indígenas de todo o Brasil.
A estratégia, explica Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Apib e pré-candidata à deputada federal pelo PSOL em São Paulo, é focar em um número pequeno, porém competitivo de candidaturas que resultem em uma bancada indígena de fato. “A ideia não só lançar candidaturas para ter visibilidade, mas lançar candidaturas para ganhar.”
Enquanto em 2018 a entidade lançou 130 candidaturas indígenas, com uma deputada eleita, e, em 2020, mais de 2.000 candidaturas com 200 representantes eleitos — entre eles 10 prefeitos e 44 vereadoras –, segundo Guajajara, as lideranças dos diversos povos indígenas têm articulado para chegar a candidaturas de consenso. “A APIB fez o chamado para as candidaturas indígenas, mas diferente dos anos anteriores, a gente não está considerando muito a quantidade. A gente não quer [um grande número]. A gente quer candidaturas pelo movimento que sejam consensuais em cada estado”, diz.
A estimativa é que o movimento indígena encabeçado pela Apib lance cerca de 30 candidaturas indígenas às câmaras estaduais e nacional, das quais 17 são mulheres. Os números serão oficializados em um evento nesta terça (12) no Acampamento Terra Livre, onde os presidentes dos partidos — PT, Psol, PCdoB, PSB, Rede, PDT e PCB — serão convidados a “participarem e assumirem compromisso com as demandas do movimento indígena e com apoio às candidaturas indígenas”.
Há candidaturas planejadas em todas as regiões do país. Entre os estados que terão candidatos ou candidatas à Câmara Federal estão Amazonas, Minas Gerais, Santa Catarina, São Paulo, Rondônia, Roraima e Mato Grosso. Já nos parlamentos estaduais serão lançados nomes indígenas ao menos no Amazonas, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Acre, Ceará e Bahia. Até então, a movimentação no Senado tem focado na pré-candidatura de Arildo Alcantara Terena, pelo PSOL no Mato Grosso do Sul.
“A gente está pensando em fortalecer menos candidaturas para que a gente consiga alcançar o nosso objetivo de chegar no Congresso Nacional. Não é que a Apib não vá apoiar as candidaturas indígenas, a Apib está apoiando todas as candidaturas indígenas, mas a gente tem algumas pessoas estratégicas para estar assumindo essas funções”, diz Kerexu Yxapyry, do Povo Mbya Guarani, pré-candidata a deputada federal pela Rede em Santa Catarina.
Para decidir quais nomes teriam suas campanhas encabeçadas pela articulação, a entidade criou um ranking de prioridades. Serão preferidos, segundo Guajajara, os candidatos indígenas que sejam indicados pelo movimento por meio das associações regionais, estejam em partidos progressistas e tenham maior potencial e viabilidade eleitoral. Parte da estratégia foi delimitada entre 20 a 26 de fevereiro de 2022 , no Fórum Nacional de Lideranças Indígenas, na Baía da Traição, no estado da Paraíba.
De acordo com apuração da Pública, as regionais já confirmaram ao menos 10 nomes indígenas como pré-candidatos para as eleições deste ano, com outros a serem definidos. Desses, 3 indicações vieram da Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (Arpinsudeste); 2 da Aty Guasu, Grande Assembleia Guarani Kaiowá; 2 do Conselho Terena; ao menos 3 da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) e ao menos 1 da Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpinsul).
Já o ParlaÍndio definiu cinco critérios para escolher seus candidatos. De acordo com documento de estratégia eleitoral elaborado pelo grupo, a seleção foi feita com base no histórico de luta no movimento indígena, liderança e legitimidade na comunidade, qualificação pessoal para exercer o mandato, legitimidade no próprio povo e popularidade, e capacidade de articulação política dos interessados.
“Eu viro madrugada. Nós estamos em planejamento político, fazendo os estudos mais aprofundados, mapeando temas que são importantes para eu ter mais conhecimento, estou mergulhada em todos esses universos”, explicou Vanda Witoto, pré-candidata a deputada federal pela Rede no Amazonas.
De acordo com o Censo de 2010, existem 274 línguas indígenas no Brasil e 17,5% dos indígenas não falam português, o que coloca mais um entrave à articulação de uma bancada indígena nacional. Segundo Guajajara, o momento atual foi alcançado devido a uma visão comum da necessidade de “dar um basta nesse desmonte da política indigenista” e também a percepção de que a estratégia de anos anteriores, de cada povo lançar seus candidatos, não deu certo.
O povo Guarani Kaiowá e o povo Terena, os dois do Mato Grosso do Sul, formam um dos exemplos da articulação para além da etnia. “Tivemos que ter diálogo para colocar os nomes estratégicos para nos representar [e decidimos por indicar] dois Guarani, um [pré-candidato a deputado] estadual e outro [a deputado] federal; e um Terena [como pré-candidato a] senador”, explicou Eliel Benites, do povo Guarani Kaiowá e membro da regional Aty Guasu.
A articulação foi importante “para canalizar os apoios, as informações e inclusive para ganhar votos internamente nas aldeias”, diz Benites. “É uma estratégia nova de construir essa unidade e esse diálogo entre as organizações. Em outras eleições passadas cada aldeia saia por si e não ganhava votos [o suficiente para eleger os candidatos]”.
O cacique Almir Suruí, líder do povo Paiter-Suruí desde seus 17 anos, coordenador executivo do ParlaÍndio e pré-candidato a deputado federal pelo PDT em Rondônia, considera que mobilizações nacionais como o Acampamento Terra Livre — que em 2022 chegou a sua 18º edição — e a mobilização contra o Marco Temporal, em junho de 2021, também ajudaram. “[A união] ocorreu através de reuniões e debates. Claro que tem muitas lideranças que têm pensamentos diferentes, mas unidos analisando o desafio que o Brasil está enfrentando, [chegamos a uma conclusão sobre] como nós indígenas pré-candidatos podemos estar apoiando essas questões para avançar no diálogo”.
As eleições não são o único exemplo de povos distintos unidos em prol de um mesmo tema. Recentemente os Yanomami, Munduruku e Kayapó formaram uma aliança inédita anti-garimpo na Amazônia.
O processo de organização das candidaturas também envolve encontros de formação política para os indígenas. Em 4 de fevereiro deste ano, o ParlaÍndio convidou cientistas políticos para explicar o funcionamento da democracia e as eleições brasileiras. Os cientistas falaram na 4ª assembleia virtual do grupo, que reuniu lideranças de diversos estados do Brasil. Entre os temas debatidos estava a importância de escolher partidos competitivos dentro do campo progressista, conhecer as regras e calcular os coeficientes eleitorais, já que nem sempre os mais votados são eleitos.
“Estamos nos mobilizando para fazer uma bancada indígena para defender o Brasil. Como líderes tradicionais, nós sabemos [o que fazer] e queremos representar outra opinião pública brasileira, [o que] é de grande responsabilidade. É necessário construir políticas públicas e inserir todo mundo, isso tem que ser feito com muita consciência, muita responsabilidade e visão de longo prazo”, disse o cacique Almir Suruí à reportagem.
“Não é nosso trabalho, não é nossa cultura, é uma cultura do outro, mas por conta dos problemas que nós viemos enfrentando, nós precisamos se apropriar dessas culturas, e uma delas é a política partidária”, acrescentou na assembleia Joaquim Maná Kaxinawá , o primeiro indígena a receber o título de doutor em linguística pela UnB, no evento virtual do Parlaíndio.
Val Eloy, liderança do povo Terena na aldeia Ipegue, da TI Taunay-Ipegue, no Mato Grosso do Sul, conta que fugiu da política partidária tanto quanto pôde, mas decidiu seguir o desejo do seu povo, que a escolheu como representante. Hoje Val Eloy é pré-candidata à deputada estadual pelo PSOL no Mato Grosso do Sul.
“A gente está buscando um espaço para que a gente possa somar em uma única voz e buscar sempre levar o nosso carro-chefe: demarcação dos nossos territórios, porque a gente tem passado muito aperto. A sociedade brasileira toda vive esse retrocesso de direitos, mas nós como povos indígenas temos sofrido muito mais, porque somos nós que cuidamos desse planeta”, diz Val Eloy.
“Se a gente não faz, alguém faz, e nem sempre são os nossos amigos e aliados”, explicou o professor e escritor Daniel Munduruku à Pública. Ele é pré-candidato a deputado federal pelo PDT em São Paulo e considera que os povos indígenas não têm outra alternativa além de “tentar forçar, no sentido positivo, a entrada de agentes indígenas que possam representar as nossas pautas”. “Temos nos obrigado a participar desse mundo, por mais estranho, esquisito, caótico, indefinido e impessado, que seja o mundo da política.”.
Outra questão é a escolha do partido, que envolve tanto a negociação por espaço quanto por financiamento, já que cabe às legendas decidirem como irão gastar o fundo eleitoral. “Tivemos um grande desafio, que foi os partidos, até mesmo de esquerda, aceitarem nossas candidaturas como prioridade. Querem nossa luta enquanto mulheres indígenas, querem nossas pautas, mas não querem priorizar essas mulheres para serem eleitas”, diz a pré-candidata Vanda Witoto.
Os partidos, diz, já têm sua estrutura e suas prioridades, o que dificulta a chegada de novos nomes, em especial os indígenas. “Eu fui muito convidada para apoiar esses candidatos e não para ser apoiada”, exemplifica. As candidaturas indígenas estarão focadas em sete legendas dentro do campo da esquerda e centro-esquerda —PT, Psol, PCdoB, PSB, Rede, PDT e PCB.
Kerexu Yxapyry também lembra que só pôde contar com o apoio real do seu partido, o PSOL, depois que obteve uma “votação expressiva” nas eleições de 2018 para o mesmo cargo — com mais de 10 mil votos, ela foi a segunda candidata mais votada pela legenda em Santa Catarina. “[Antes] ninguém dava nada”, afirmou.
Assim como outros candidatos indígenas ouvidos pela reportagem, ela conta que só decidiu se candidatar depois de presenciar ataques ao seu território – sua mãe, Ivete de Souza, à época com 59 anos, teve a mão esquerda decepada em um ataque à aldeia. “Naquele momento, eu não tive outra escolha a não ser me expor mais para conseguir levar essas denúncias. Além de eu levar toda essa questão indígena, eu também usei isso como uma proteção para mim, para minha família, para minha comunidade”.
Aruã Pataxó, cacique da terra indígena Coroa Vermelha, do povo Pataxó, no extremo-sul da Bahia, lembra a dificuldade de competir financeiramente com os demais candidatos. “Nós não somos empresários, sempre fomos pessoas de família mesmo, de viver com o que tem na nossa alçada, no nosso dia a dia”, apontou. Pela terceira vez, ele é pré-candidato a deputado estadual pela Bahia pelo PCdoB, partido onde se filiou em 2011, e já foi eleito vereador no município de Santa Cruz Cabrália.
Ele frisa que não existe no Brasil um partido cuja “pauta principal” seja a “defesa dos direitos indígenas”. Dessa forma, age no PCdoB por dentro: “Só nós mesmo, enquanto indígenas, para fazer a defesa dos nossos direitos.”
Para o cacique, é necessário primeiro filiar mais indígenas aos partidos para posteriormente ter força política e representatividade dentro das legendas. “O PCdoB aqui da Bahia agora está mudando de comportamento, porque, depois da minha pessoa, já indicamos mais nomes e hoje temos seis indígenas no Comitê Estadual, que é onde a gente faz as modificações”.
No último ano, Aruã Pataxó promoveu, por meio do partido, um curso virtual de formação para os indígenas sobre o “funcionamento do partido, a questão das disputas eleitorais, as candidaturas e a legislação indígena mais específica, como o Estatuto do Índio, a Convenção 169 e os decretos de demarcação de terras”. De acordo com ele, 140 indígenas de toda a Bahia se inscreveram. “Quando você está municiado de informações, você pode orientar os seus”, resume.
Daniel Munduruku, que decidiu tentar se eleger pelo PDT de São Paulo, conta que agora age dentro do partido para convencer a legenda de que seu nome é interessante para somar nas pautas do próprio partido e garantir a estrutura necessária à sua campanha. “O PDT tem mais de 40 anos, então ele já tem os seus nomes consagrados que vão disputar as eleições”, diz. [Quero] mostrar que vale a pena investir no meu nome, não somente ceder a legenda para eu concorrer, mas que possam colocar algum recurso financeiro”, explicou.
Em retorno à reportagem, a Apib afirmou que a entidade não tem recursos para contribuir de maneira direta com as campanhas. “A partir de maio os candidatos podem abrir seus financiamentos coletivos e a Apib vai colaborar para que as candidaturas próximas ao movimento recebam visibilidade para conseguir recursos”. A organização afirmou que vai “estimular que as pessoas colaborem” e que “os partidos aliados à causa coloquem os candidatos indígenas como prioridade”.
O ParlaÍndio também afirmou que buscará conseguir recursos com os partidos, já que é uma “organização 100% voluntária que não dispõe de recursos financeiros nem tem patrocinadores”. A entidade teme que conseguir recursos será difícil, já que “historicamente os recursos ficam com os ‘puxadores de votos’ dos partidos”. “Vamos pressionar os partidos, como já estamos tentando fazer no diretório nacional do PDT, onde estão os candidatos Almir Suruí e Daniel Munduruku”.
Destoando dos colegas, Telma Taurepang, liderança da comunidade Mangueira, da Terra Indígena Araçá, no estado de Roraima, decidiu junto à sua comunidade disputar uma vaga na Câmara pelo PSD, um partido do “centrão”, por questões estratégicas. “Hoje a gente não sai por um partido de esquerda porque as condições [de eleição] dentro do estado de Roraima para um partido de esquerda são pequenas”, explica. Em 2018, Taurepang foi candidata ao Senado pelo PCB e conseguiu mais de 13 mil votos, mas não foi eleita. Joenia Wapichana, por exemplo, que concorreu pela Rede, foi eleita deputada federal pelo mesmo estado com 8 mil votos.
Em retorno aos questionamentos da reportagem, Juliano Medeiros, presidente nacional do PSOL, afirmou que o partido quer “assegurar todas as condições para que as candidaturas indígenas do PSOL sejam competitivas”, mas que “isso será debatido no momento certo”. Também ressaltou que o PSOL “é o único partido que definiu critérios que garantem financiamento de 30% a mais de candidaturas indígenas em relação às demais”. Já a assessoria de comunicação do PT disse que o partido criou “um setorial indígena para tratar de questões indígenas”. O partido também afirmou que promoverá cursos de formação política para os candidatos.
PCdoB, PSB, Rede, PCB, e PDT não responderam até a publicação desta reportagem.
Quatro anos depois de ser eleita por Roraima com 8.491 votos, Joenia Wapichana serve como inspiração para outras mulheres e homens indígenas que buscam representar seus povos e foi citada por diversas lideranças. “Quando Joenia foi eleita, ela abriu um caminho que a gente não conseguia enxergar da possibilidade de ocuparmos [a política]”, diz Vanda Witoto. “A gente era desencorajado o tempo todo para não estar nesses espaços.”
Para Daniel Munduruku, “ela quebrou uma bolha, quebrou uma lógica, um paradigma que vinha se arrastando no Brasil há 500 anos”, disse. “A eleição da deputada Joenia demonstrou como é possível você fazer política com responsabilidade, inserindo todos e respeitando as opiniões, e tentando fazer o melhor para o Brasil”, acrescentou Almir Suruí.
Pré-candidato a deputado estadual pelo PSB no Acre e primeiro prefeito indígena do estado, Isaac Piyãko, do povo Ashaninka, diz que “ela levou a mensagem de que o indígena também é capaz e pode estar lá no Congresso”. Ele acredita que, como Joenia, mudou a vida de seu povo ao ser eleito representante. “Hoje ser indígena no nosso município não é mais ser desacreditado e incapaz de fazer uma gestão”, explica.
Desde o início do ATL, é possível encontrar uma tenda próxima ao palco principal com jovens indígenas reunidos atrás de uma faixa em papel pardo pintada com letras vermelhas: “Tire seu título de eleitor aqui”. Munidos apenas do RG, os jovens indígenas presentes na mobilização — para a qual o público estimado foi de 8 mil pessoas — poderiam se registrar para votar nas eleições de 2022. A iniciativa faz parte da campanha ‘Parente vota em parente’, criada nas últimas eleições municipais. De acordo com lideranças ouvidas pela reportagem, o mesmo processo de convencimento e mobilização também tem ocorrido nas aldeias.
Convencer as comunidades da importância de votar, explica Vanda Witoto, é outro desafio da campanha. Ela conta que os indígenas sempre foram marginalizados do processo de decisão, o que desincentiva a participação na política partidária. “É um desafio compreender realmente que somos capazes, porque a gente ainda [ouve] que o indígena é incapaz. Estamos tentando desconstruir aquilo que disseram sobre nós”. Por isso, “esse ano a gente vem ainda com esse incentivo para que os parentes votem em parentes e que tragam outros votos de fora para os parentes também”, finalizou Kerexu Yxapyry.
Este texto foi originalmente publicado por Agência Pública de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.
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