Elaine Grolla comenta reportagem do jornal português “Diário de Notícias”, que sugere que as crianças portuguesas, influenciadas por youtubers, estão falando “brasileiro”
Por Rodrigo Tammaro em Jornal da USP – Uma reportagem do jornal português Diário de Notícias chama atenção para as “crianças portuguesas que só falam ‘brasileiro’”. Em vez de relva, dizem grama, autocarro vira ônibus e o frigorífico passa a ser chamado de geladeira. Em alguns casos, até há dificuldade para pronunciar as letras L e R da maneira usual.
O motivo, segundo a reportagem, é o consumo de conteúdos produzidos por youtubers brasileiros. Com a pandemia de covid-19 e os meses de confinamento, o tempo passado diante das telas aumentou, assim como a popularidade desses influenciadores digitais em Portugal.
Alguns pais e mães veem essa situação apenas como uma fase, como aconteceu com gerações anteriores em meio à popularização de novelas e gibis. Outros são mais receosos e questionam as possíveis interferências no desenvolvimento linguístico das crianças.
Segundo Elaine Grolla, professora do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, não há motivo para preocupação. Ela explica que o processo de aquisição da primeira língua acontece de forma natural, sem instrução explícita. “Os adultos simplesmente falam o que eles precisam veicular e as crianças, a partir dessa experiência com os adultos, aprendem.”
Dessa forma, a exposição ao português brasileiro em vídeos da internet pode ocasionar mudanças superficiais na linguagem, mas não é capaz de modificar as estruturas do português europeu.
“A criança vai ter essa influência no léxico, palavras isoladas, elas podem usar expressões linguísticas brasileiras”, afirma Elaine. “Mas mudar a língua como um todo seria uma coisa muito mais profunda, que eu não acho que assistir a vídeos no YouTube teria força para fazer. Teria que ser uma mudança muito sistemática em coisas intrínsecas da língua”, acrescenta.
A professora também vê esse fato como uma oportunidade para trabalhar a interculturalidade e o contato entre os dialetos. “É um meio de experimentar a cultura de outro indivíduo, as crianças podem entender que existem outros modos de falar o português”, comenta. Diante dessa possibilidade e das discussões sobre xenofobia e intolerância, o Ministério da Educação de Portugal anunciou que vai promover a conscientização de professores sobre a diversidade linguística.
Algumas famílias chegaram a buscar atendimento fonoaudiológico. De acordo com Elaine, essa medida não é necessária. Em relação à preocupação sobre a mudança da língua, a professora explica que, conforme as crianças pararem de consumir esses conteúdos, elas devem esquecer o português brasileiro, porque continuarão expostas ao europeu.
Entretanto, Elaine destaca que a preocupação não deve ser a questão linguística, mas sim o tempo que as crianças passam em frente às telas de equipamentos como TVs, celulares, computadores e tablets. Ela ressalta que é importante regular o acesso a esses meios eletrônicos, que são prejudiciais ao desenvolvimento infantil.
“Elas [crianças] devem ser estimuladas de outras formas, no mundo real. Isso é extremamente importante para a aquisição da linguagem e outros aspectos da cognição”, diz. “Que os pais prestem atenção nisso, a primeira infância é um momento em que tanta coisa importante está sendo formada no cérebro das crianças, elas não devem ser deixadas na frente de uma tela tanto tempo assim”, conclui.