Ministro Alexandre de Moraes pediu vistas dos autos. O placar está em 1 x 1, mas não há data definida para a retomada das discussões no STF
O julgamento mais importante das últimas décadas para as populações originárias de todo o Brasil foi suspenso, na quarta-feira (15/9). O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), pediu vistas dos autos. Não há data prevista para a retomada das discussões. Moraes justificou que o ministro que antecedeu sua fala, Kassio Nunes Marques, levantou aspectos que mereciam “análise mais detalhada”. O coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Eloy Terena, considerou a falta de prazo para continuação desta pauta “um aspecto muito duro”, pois a indecisão sobre o tema tem gerado não apenas sofrimento para os povos indígenas como também pode estimular invasões.
O STF está julgando o Recurso Extraordinário 1.017.365, que trata do marco temporal, tese segundo a qual só teriam direito a terras os povos que as ocupavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Nunes Marques, nomeado ministro em outubro passado pelo presidente Jair Bolsonaro, votou a favor da tese do marco temporal . “Posses posteriores à promulgação da Constituição Federal não podem ser consideradas tradicionais, porque isso implicaria o direito de as expandir ilimitadamente para novas áreas já definitivamente incorporadas ao mercado imobiliário nacional”, argumentou o ministro.
A tese ignora por completo as situações de expulsões de populações e invasões de aldeias por grileiros e madeireiros. “Um voto bastante retrógrado, expressão máxima do interesse do agronegócio. Extremamente alinhado com o governo e com o agronegócio”, enfatizou Eloy Terena.
A advogada Samara Pataxó, que fez uma das 21 sustentações orais contra o marco temporal no STF, disse que o voto de Nunes Marques já era esperado. Ela acentuou a divergência com o voto do relator, Edson Fachin, que reafirmou o caráter originário dos direitos constitucionais indígenas, considerando-os como “cláusulas pétreas”, ou seja, que somente poderiam ser alteradas com por uma nova Constituição. O julgamento foi interrompido com 1 x 1 no placar.
Samara foi enfática durante sua sustentação oral no STF, em 1º de setembro, data de início do julgamento: “Já não basta historicamente nos terem imposto uma língua, uma fé, uma civilização? Ainda querem nos impor um padrão de sociedade, um padrão de desenvolvimento, um padrão de progresso, e querem também limitar, interferir, ditar os moldes do nosso usufruto, e o gozo e efetivação dos nossos direitos territoriais, mesmo estando esses direitos consagrados na Carta Constitucional, inclusive como cláusula pétrea”.
A advogada ressaltou que o voto de Nunes Marques “desconsiderou o indigenato” e o encarou como “instituto defasado, como algo que traz insegurança jurídica”. A teoria do indigenato, consagrada pela Constituição de 1988 e questionada pela atual bancada ruralista no Congresso, é do ministro do STF João Mendes Junior, que, no início do século 20, considerou as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas como direito congênito, anterior à própria criação do Estado brasileiro, devendo este apenas demarcar e declarar os limites espaciais desses territórios.
Em seu voto, o ministro Fachin salientou que o procedimento demarcatório realizado pelo Estado não cria terras indígenas. “A demarcação não constitui a terra indígena, mas a declara: declara que a área é de ocupação pelo modo de viver indígena. Portanto, a posse permanente das terras de ocupação tradicional indígena independe, para esse fim, da conclusão ou mesmo realização da demarcação administrativa dessas terras, pois é direito originário das comunidades indígenas”, enfatizou.
Desde a campanha que o elegeu presidente da República, Jair Bolsonaro deixou clara sua posição em relação às questões indígenas. “Não haverá nem um centímetro a mais para demarcação”, costumava repetir Bolsonaro. E está cumprindo a promessa. Desde que assumiu, todos os processos demarcatórios pararam. Há raras exceções, por ordem judicial.
Mobilização indígena
Os povos indígenas se mantêm mobilizados contra o marco temporal e uma centena de projetos de lei que tramitam no Congresso, que ameaçam as demarcações e abrem os territórios para empreendimentos econômicos. As manifestações não se restringiram à capital federal, ocorreram também em estradas e municípios de todas as regiões do país.
Entre os povos que estiveram presentes em Brasília há os Munduruku, do Pará, um dos mais afetados pelo garimpo na Amazônia Legal. “Os garimpeiros arrasam tudo. Hoje em dia, os índios não bebem mais água limpa. As crianças bebem água suja. As crianças não sabem nem como era a água limpa de antigamente. A destruição começa na água do rio, fazendo barulho, espantando os peixes, fazendo zoada no fundo do rio. Eles quebram o sagrado do rio, a mãe d’água do peixe, a mãe d’água do tracajá, que são os protetores do rio”, relata o cacique Geilson Karo, da aldeia Karowaxetbu, localizada na margem do rio Tapajós.
Um estudo realizado pela Fiocruz e WWF-Brasil avaliou os impactos da contaminação por mercúrio, que é usado largamente em atividade de garimpo, em 200 habitantes de três aldeias na Terra Indígena (TI) Sawré Muybu, que é de ocupação tradicional do povo Munduruku, no médio rio Tapajós. Os resultados indicaram que todos os participantes da pesquisa estão afetados por este contaminante. De cada 10 participantes, 6 apresentaram níveis de mercúrio acima de limites seguros: cerca de 57,9% apresentaram níveis de mercúrio acima de 6µg.g-1 – que é o limite máximo de segurança estabelecido por agências de saúde.
A contaminação é maior em áreas mais impactadas pelo garimpo, nas aldeias que ficam às margens dos rios afetados. Nessas localidades, 9 em cada 10 participantes apresentaram alto nível de contaminação. As crianças também são impactadas: cerca de 15,8% delas apresentaram problemas nos testes de neurodesenvolvimento.
O garimpo é uma das maiores ameaças aos indígenas atualmente, mas não é a única. Tanto que, na semana passada, pelo menos 5 mil mulheres de 185 povos participaram da II Marcha das Mulheres Indígenas, em uma das mobilizações mais potentes que a capital federal já assistiu. Elas ampliaram as reivindicações de outros dois acampamentos indígenas: Levante Pela Terra, que ocorreu em junho, e Luta Pela Vida, iniciado em agosto, ambos para acompanhar a tramitação de projetos de lei que ameaçam seus direitos no Congresso e o julgamento do marco temporal pelo STF.
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