Por Paula Pimenta, da Agência Senado | Por décadas tido como verídico, o mito da democracia racial pela pressuposta harmonia entre os três povos que perfazem a base da população brasileira mascarou a impositiva hegemonia social, política e econômica da raça branca sobre a negra e a indígena. Somente décadas após o surgimento das ações afirmativas — políticas públicas voltadas a minorar as desigualdades — em várias regiões do mundo, o Brasil teve as primeiras manifestações proferidas a partir de discursos e projetos de lei que remontam a década de 1980. O resultado de todo o complexo e longo debate foi a Lei de Cotas (Lei 12.711, de 2012) que, ao completar dez anos em 2022, personifica um novo perfil nas universidades brasileiras.
A Índia foi uma das nações precursoras nas ações afirmativas. Nos anos 1930, o país dava os primeiros passos rumo a um sistema de cota racial para promover a inserção dos dálites, a casta mais baixa indiana, na educação e no campo do trabalho. Em 1949, as cotas foram inseridas na Constituição do país e permanecem até hoje obrigatórias na educação e no serviço público.
No Ocidente, os Estados Unidos assumiram a dianteira com a aprovação pelo Senado, em 1964, de projeto de lei de autoria do presidente John Kennedy para a erradicação do preconceito social e para garantir o respeito absoluto aos direitos civis dos negros no país.
Conforme registros do Arquivo do Senado, o senador capixaba Eurico Rezende destacou à época em Plenário a ação norte-americana. Para o parlamentar, esse foi um marco histórico e decisivo em favor da democracia e das liberdades públicas e privadas, não só para os Estados Unidos, mas para toda a humanidade.
— O Senado americano, através de maioria maciça, interpretou bem e fielmente o pensamento americano, votando mensagem de autoria do grande estadista sacrificado, outorgando o admirável espetáculo da dignificação da pessoa humana, dando aos negros americanos a igualdade de direitos e de condições competitivas para a conquista dos cargos públicos e da frequência dos mesmos lugares onde tem acesso a população branca — afirmou Rezende.
Professor sênior do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e autor de obras como Modernidades Negras, Antônio Sérgio Guimarães confirma a significativa influência da luta dos negros americanos pelos direitos civis e por uma série de ações afirmativas nos anos 1960, que ao longo dos anos seguintes refletiram no Brasil e em outras nações.
Uma década depois já era significativa a ação de algumas universidades americanas que mudaram seus critérios de seleção para admitir maior número de estudantes negros, até mesmo com reserva de bolsas para os negros pobres.
— Em pouco mais de 20 anos, 30 anos, a situação dos negros americanos era bem melhor. Isso passou a mostrar um caminho que reforçou a luta dos negros brasileiros, mostrando que não valia à pena ter apenas igualdade formal, mas que alguma coisa precisava ser feita. Algum tipo de ação afirmativa, para reverter essa situação difícil nos anos 1970 e 1980, quando as universidades brasileiras estavam totalmente tomadas por uma elite econômica e financeira que podia dar uma boa educação privada de ensino — diz Guimarães.
Sem envolver nenhuma questão racial, o primeiro rascunho de cotas no Brasil foi visualizado a partir da Lei do Boi (Lei 5.465, de 1968), que perdurou até 1985.
A norma, de autoria do deputado federal Último de Carvalho (MG), determinou que os estabelecimentos de ensino médio agrícola e as escolas superiores de agricultura e veterinária, mantidos pela União, reservassem de preferência 50% de suas vagas a candidatos agricultores ou a seus filhos que residissem na zona rural, e 30% para os que residissem nas cidades ou vilas que possuíssem unidades de ensino médio.
Na justificativa, Carvalho alertava para o fato de que na disputa das vagas os candidatos da zona rural concorriam com os da zona urbana.
“Os primeiros, por sua formação deficiente, são preteridos pelos segundos, que frequentam melhores escolas, possuem melhores professores, assistem a cinema e televisão, participam de outras atividades, estimulam e aperfeiçoam a formação intelectual”, afirmava o deputado.
Foi apenas em 1983 que o então deputado federal Abdias Nascimento (RJ) — um dos parlamentares que mais lutaram pelo combate ao racismo nos quase 200 anos de instituição do Congresso Nacional — propôs projeto que previa ação compensatória visando à implementação do princípio da isonomia social do negro, especialmente quanto à oportunidade de trabalho, remuneração, educação e tratamento policial.
Pela proposta, nos órgãos públicos, assim como na iniciativa privada, a participação negra seria de ao menos 20% para homens e 20% para mulheres, em todos os escalões de trabalho e direção, particularmente naquelas funções que exigiam melhor qualificação e eram mais bem remuneradas. O projeto trazia previsão específica de vagas para negros nas Forças Armadas e no concurso do Instituto Rio Branco, para ingresso no Itamaray.
A proposição ainda destinava a estudantes negros 40% das bolsas de estudo — do primário à pós-graduação — concedidas pelo Ministério da Educação, assim como pelas secretarias estaduais e municipais de educação.
Na justificativa, Nascimento afirmava que os africanos não vieram para o Brasil livremente, como resultado de sua própria decisão ou opção e que era tempo da nação brasileira saldar essa dívida.
“Vieram acorrentados, sob toda sorte de violências físicas e morais; eles e seus descendentes trabalharam mais de quatro séculos construindo este país. Não tiveram, no entanto, a mínima compensação por esse gigantesco trabalho realizado”, expôs.
O princípio da isonomia na compensação do trabalho tornava moral e juridicamente imperativa uma ação compensatória da sociedade e do Estado, segundo Nascimento. Essa ação seria “destinada a indenizar, embora tardiamente, o trabalho não remunerado do negro escravizado e o trabalho sub-remunerado do negro supostamente libertado a 13 de maio de 1888”.
O deputado federal Moacir Franco (SP) também postulou em 1983 proposição que assegurava 20% das vagas nos estabelecimentos oficiais de ensino superior aos estudantes de cor negra que tivessem obtido médias altas de aprovação nos cursos de segundo grau, hoje correspondentes ao ensino médio.
“A ascensão social e a elevação do nível de renda do negro brasileiro serão propiciadas pelas oportunidades educacionais oferecidas aos mais aptos, que são encontrados, também entre os mais carentes. O problema da ignorância e da pobreza tem sido um fator negativo para o desenvolvimento socioeconômico da população negra e tem constituído um preconceito de classe mais aparente do que o preconceito de origem racial”, justificou o deputado.
Dez anos mais tarde, a deputada Benedita da Silva (RJ) reforçou o coro para a instituição de cota mínima, mas no percentual de 10% das vagas existentes em instituições de ensino superior para “os setores étnico-raciais socialmente discriminados”, que o projeto definia como estudantes negros e indígenas. Em 1995, já como senadora, Benedita postulou novamente a matéria, que destinava também 20% das vagas existentes no ensino superior para alunos carentes.
Ao ponderar que os setores étnico-raciais representavam parcela significativa da sociedade brasileira, Benedita defendeu que a garantia de uma cota mínima não resolveria o problema social, mas criaria um precedente para “minimizar esta injustiça e a atenuar a exclusão que desfaz, na prática, todas as garantias constitucionais de igual acesso ao ensino, conforme determina o artigo 206 da Constituição”.
Em um dos seus muitos discursos em Plenário contra a barreira racial, Benedita afirmou que as universidades públicas não expressavam a pluralidade existente na sociedade.
— Nas faculdades da iniciativa privada, encontraremos um contingente enorme de negros, porque, no Brasil, existe uma elite, um segmento intelectual negro, que não é visível.
Sem ter alcançado êxito na proposta apresentada à Câmara, Abdias Nascimento relançou sua proposta em 1997, agora como senador, na defesa das cotas. O parlamentar mantinha sempre presente em Plenário a luta por ações afirmativas que restabelecessem os direitos há séculos extirpados da população negra.
Para o senador, sempre foi clara a caracterização da desigualdade de oportunidade e de remuneração do trabalho entre negros e brancos no Brasil.
— Esse quadro de desigualdade não poderia existir se se tivesse efetivado a implementação do direito à isonomia garantido pela Constituição — assegurou Nascimento, para quem seria absurdo esperar que tal discriminação desaparecesse espontaneamente.
Até que a Lei de Cotas fosse aprovada em 2012, não foram poucos os projetos propostos nas duas Casas legislativas que lardearam a questão. No Senado, as cotas universitárias e assuntos correlatos foram tratados em diversas proposições apresentadas por senadores como José Sarney (MA), Tião Viana (AC), Ideli Salvatti (SC), Íris de Araújo (GO), Mozarildo Cavalcanti (RO), Antero Paes de Barros (MT), José Jorge (PE), Álvaro Dias (PR) e Paulo Paim (RS).
A questão acendeu numerosos discursos e debates no Plenário do Senado. O senador Lúcio Alcântara (CE), em discurso que lembrou o Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, salientou que pesquisas do IBGE sobre desemprego e violência na vida da população negra brasileira apontavam “o significativo preconceito contra os negros no mercado de trabalho brasileiro”.
À época (1999) representando 45% dos brasileiros, os negros eram no mínimo 50% dos desempregados, segundo o senador:
— Para ter mais direto, os trabalhadores negros recebem salários menores do que os dos brancos, ocupam postos de trabalho precários, convivem mais de perto com o fenômeno do desemprego, têm menor estabilidade em suas vagas e, evidentemente, estão mais distantes dos cargos de chefia — expôs Alcântara.
Também em Plenário, Sarney defendeu sua proposta de cotas reservadas a negros em cargos e empregos públicos, universidades e em contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies). O parlamentar enfatizou que “um dos problemas que nasceram” foi a ideia, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), de que a questão era inconstitucional “porque se tratava de uma discriminação”.
— O meu argumento era justamente de que já existem os problemas de discriminação positivos — como no caso das pequenas e das médias empresas, dos deficientes e dos idosos —, e não havia porque não avançarmos no problema relativo aos negros. Tenho repetido muito que a escravidão é a maior mancha da história brasileira. É inacreditável que tenhamos chegado quase ao fim do século [19] com a escravidão no Brasil nos termos em que se processou. Jamais resgataremos da nossa história, jamais explicaremos como foi possível a este país chegar ao fim do século naquela situação de escravidão.
O senador Mozarildo Cavalcanti (RR) foi autor de projeto de lei que reservava 5% das vagas nas universidades federais e nos concursos públicos para os indígenas.
— Está em discussão no Senado um projeto que visa estabelecer cotas para os negros, para os afrodescendentes. Então, nada mais justo que, se estamos discriminando, no bom sentido, de maneira positiva, para ajudar a eliminar a verdadeira discriminação racial, então que também discriminemos a favor dos índios, e não apenas na questão de demarcar terras, mas no sentido de fazer com que o índio efetivamente possua condições de evoluir socialmente.
As primeiras ações afirmativas no Brasil, na área educacional, aconteceram no fim do segundo mandato (1999-2003) do presidente Fernando Henrique Cardoso, segundo o professor Antônio Sérgio Guimarães.
— Isso aconteceu após a participação do governo brasileiro na Conferência de Doha. O Ministério da Educação possibilitou que cada universidade flexibilizasse a forma de ingresso, não sendo exigido mais apenas o vestibular. A primeira foi a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), no vestibular de 2003, e daí em diante todos os conselhos universitários começaram a discutir isso.
Também a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou em 2000 uma lei que reservou 50% das vagas para estudantes egressos de escolas públicas nas universidades estaduais fluminenses. No ano seguinte, a Alerj acatou outra norma que destinou 40% de vagas para candidatos autodeclarados negros e pardos. Ambas foram substituídas por uma terceira legislação em 2003.
Na esfera federal, a Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira a inserir as cotas no vestibular de 2004. A reserva de vagas nas universidades públicas dividiu a sociedade. Acadêmicos, estudantes, intelectuais, parlamentares, entre outros, dissidiram por muito tempo sobre o tema.
No primeiro ano do vestibular da Uerj com reserva de vagas, o senador Jefferson Péres (AM) apontou em discurso sua discordância em relação à instituição de cotas raciais nas universidades e no serviço público em geral.
Dizendo-se “vacinado contra o racismo desde criança” e após criticar a experiência na instituição estadual fluminense, Péres afirmou que “a questão traz à baila dilemas éticos que não podem ser negligenciados sem sérios prejuízos para a sociedade”.
— Creio sinceramente que as melhores políticas de ação afirmativa são aquelas baseadas em providências emergenciais e de largo prazo, com foco na renda como diferencial de oportunidades educacionais — afirmou, ao citar a relevância de propostas como bolsas para cursinhos pré-vestibular destinados a estudantes comprovadamente pobres.
Para o senador amazonense, o transplante mecânico e acrítico da política americana para uma sociedade como a brasileira, “habituada a funcionar segundo pressupostos quase sempre diametralmente inversos”, não deixaria de produzir consequências paradoxais e indesejáveis.
— É sempre muito bom aprender com os acertos e, sobretudo, com os erros dos outros, desde que estejamos dispostos a aplicar a essas experiências estrangeiras o princípio da “redução sociológica” às condições nacionais… Caso contrário, marcaremos rumo a um doloroso fiasco de política pública, se, por exemplo, ignorarmos que as ações afirmativas norte-americanas têm por pressuposto costumes refletidos em antiga decisão da Suprema Corte segundo a qual a existência de um sessenta e quatro avos de ascendentes negros basta para definir alguém como negro.
O senador Gerson Camata (ES) também foi um crítico da política de cotas. Em discurso, o parlamentar afirmou que “nunca houve bons resultados quando se tentou avaliar as pessoas pela cor da sua pele”, o que ele definiu como um “critério arriscado que já serviu para justificar atrocidades e loucuras, algumas delas bem recentes na história da humanidade”.
— Parece que pouco aprendemos com os erros que outros cometeram no passado. Em nome de boas intenções, mais especificamente a de conferir oportunidades aos excluídos, estamos criando um sistema de “cotas raciais” nas universidades, oficializando assim a discriminação no país, sob a alegação de que, da forma como será praticada, seus efeitos serão positivos — disse Camata em Plenário.
As discussões sobre o assunto mantiveram-se ao longo dos anos. O senador Cristovam Buarque (DF) foi um dos parlamentares que proferiu por diversas vezes defesas à reserva de vagas:
— Continuo defendendo que, como forma de mudarmos a cor da cara da elite brasileira — que, depois de 120 anos da Abolição da Escravatura, continua branca em um país onde há negros —, se justifica sim a cota para estudantes negros que passem no vestibular. Muitos acham que a cota é para aluno que não passa no vestibular, mas não: a cota é para aluno que passa no vestibular e não se classifica — assegurou Cristovam.
Para o senador, essas pessoas entrariam na universidade graças a um aumento no número de vagas para absorver esses alunos.
— Sou favorável, porque acho que temos de pagar essa dívida com a raça negra, mas também temos de, por uma questão de dignidade de todos nós, negros e não negros, mostrar ao Brasil que neste país não há mais escravidão e que aqui os negros fazem parte da elite intelectual. Sou favorável também às cotas para as escolas públicas, porque elas vão provocar uma melhoria na qualidade dessas escolas. Isso porque, com a cota, muitos alunos da escola pública que jamais pensariam em universidade começam a pensar nessa possibilidade e estudam mais.
Também foram muitos os pronunciamentos do senador Paulo Paim (PT-RS) quanto à bandeira da reserva de cotas. Em um dos seus discursos, ele destacou o caso bem-sucedido da UnB, que adotou as cotas para o vestibular de 2004.
— Havia sempre a história de que o sistema de cotas iria diminuir a qualidade dos formandos. Pois bem, dos formandos da UnB muitos são de famílias pobres e ficaram com as melhores notas, demonstrando que precisavam somente de oportunidade para mostrar toda a sua capacidade. Isso comprova que não é por ser negro, branco, índio, asiático, dando alguns exemplos, que se tem um potencial maior ou menor. Ou seja, os alunos que entraram pelo sistema de cotas, que já é adotado em 73 instituições do Brasil, estão se destacando entre os melhores. Não estou dizendo que eles são os melhores dos melhores, mas que estão entre os melhores. É a prova de que brancos, negros, índios, todos têm o mesmo potencial, desde que a eles seja dada oportunidade.
Um manifesto contra a política de cotas nas universidades, assinado em 2006 por 114 intelectuais, artistas e alguns poucos integrantes de movimento negro, polemizou ainda mais o debate. O grupo foi rebatido pouco tempo depois por outro manifesto com pelo menos 330 signatários defensores da reserva de vagas nas universidades.
Muitos dos que compuseram o primeiro grupo mudaram de opinião ao longo da vigência de lei. É o caso da pesquisadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa, Isabel Lustosa, que inicialmente era desfavorável a essa política, mas hoje tem outra opinião.
— Quando o manifesto surgiu, em 2006, havia uma discussão no ar, principalmente entre os acadêmicos, do que representaria uma política de cotas na sociedade brasileira. Eu, na época, me posicionei contra porque levava em conta a questão do pardo. Eu me incluo no contingente da população miscigenada, que é a maior parte dos brasileiros. Achava que uma política de cotas voltada para negros poderia ser excludente de uma parte da população pobre brasileira, uma grande parte nordestina, que não é necessariamente negra. É um mestiço de várias gerações de índios, negros e brancos.
Isabel lembra que até então não tinha um conhecimento profundo de como a questão evoluíra no mundo e também tinha a ideia, que hoje considera equivocada, de que as cotas acentuariam uma divisão na sociedade brasileira.
— Na verdade a gente, e eu me incluo nisso, acabava legitimando um racismo estrutural que já havia na sociedade brasileira. A gente não se dava conta que estava marcada essa divisão que tinha se dado historicamente pela exclusão dos negros e que foi piorada na República.
As desigualdades raciais no Brasil remontam à época do Império, quando a escravização de negros africanos escancarou muito além das assimetrias nos direitos humanos.
O Decreto imperial 1.331-A, de 1854, que regulamentava a reforma do ensino primário e secundário no Rio de Janeiro, expunha em claras palavras a segregação racial na educação. Em seu artigo 69, a norma definia que não seriam admitidos à matrícula e nem poderiam frequentar as escolas “os meninos que padeciam de moléstias contagiosas, os que não tiverem sido vacinados e os escravos”.
Mas, segundo a pesquisadora Universidade Nova de Lisboa, no período do Império e da escravização, ainda havia uma passagem de ascensão para negros com formação, como ocorreu com o escritor Machado de Assis, o farmacêutico, jornalista e abolicionista José do Patrocínio e os irmãos engenheiros Antônio e André Rebouças — os dois últimos também tiveram papel atuante na luta pelo fim da escravatura.
— Não estou fazendo a defesa do Império, mas havia um racismo menos estrutural, que foi se constituindo na sociedade brasileira a partir do século XIX, com as ideias racistas difundidas aqui no Brasil e que se acentuam ainda mais nas antes-vésperas da Segunda Guerra Mundial — diz Isabel.
Para Isabel, houve um período de ilusão sobre a questão da prática de uma democracia racial.
— Eu não tinha uma reflexão crítica a essa tese da democracia racial, que não é verdadeira na prática, e que se torna mais evidente quando vemos o lugar do negro na sociedade brasileira hoje.
Toda essa campanha que dividiu o país foi reflexo de uma forte resistência às ações afirmativas.
— Existia uma resistência muito grande às ações afirmativas, às cotas, a qualquer coisa que fugisse do mérito. O problema do mérito é que estava totalmente enviesado. O fato de que não tivéssemos uma linha de cor rígida e de que as pessoas pudessem inclusive mudar de cor durante a vida, se mostrou como se fosse impossível ter ações afirmativas para negros, porque não se sabia quem era negro ou não — afirma o professor Guimarães
Houve um longo e árduo processo para que a lei de cotas fosse aprovada e aceita.
— Foi muito difícil convencer de que era uma ação necessária. Foi uma luta de convencimento da população brasileira. Quando a lei foi aprovada, a grande imprensa brasileira e boa parte dos intelectuais brasileiros ainda eram contra — lembra-se o sociólogo.
Entre as dezenas de projetos postulados por senadores e deputados ao longo de pelo menos 30 anos, foi a proposta apresentada pela deputada Nice Lobão (MA), em 1999 — a partir da aprovação de substitutivo pelas duas Casas — que que deu origem à atual Lei de Cotas.
O texto original reservava 50% das vagas das universidades públicas para serem preenchidas mediante seleção de alunos nos cursos de ensino médio, tendo como base o coeficiente de rendimento. Mas não havia menção às questões raciais, inseridas no substitutivo a partir de outras propostas que tramitaram apensadas.
— A partir da década de 1960, o ensino educacional brasileiro entrou em declínio. No que tange às universidades, a qualidade do ensino deteriorou-se proliferando instituições de nível superior privadas, cujo objetivo não era a conquista da excelência acadêmica mas a mercantilização do ensino, sem qualquer preocupação com a qualidade. Como sempre dizia o professor-senador Darcy Ribeiro, passou a regra segundo a qual “os professores fingem que ensinam e os alunos fazem de conta que aprendem” — ponderou Nice, ao propor a reverão desse quadro.
A proposição só virou norma 13 anos mais tarde, com a sanção, em 29 de agosto, da Lei 12.711, de 2012. Aprovada pelo Congresso, a matéria definiu que as instituições federais de educação superior deveriam reservar em cada concurso seletivo no mínimo 50% suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Desse montante, 50% foram reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita.
Os parlamentares também inseriram no texto a questão racial. A distribuição das vagas da cota racial e deficiência foi estabelecida a partir da proporção de negros, pardos, indígenas e pessoas com deficiência da unidade da Federação onde está situada a instituição federal, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A norma prevê que no prazo de dez anos, ou seja, em 2022, seja promovida a revisão do programa especial para o acesso às instituições de educação superior de estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Antes mesmo de ser publicada a lei, em agosto de 2012, a constitucionalidade da questão foi deliberada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que por unanimidade confirmou que as políticas de ações afirmativas baseadas em critérios étnicos eram necessárias para corrigir as distorções existentes.
Ao classificar a data da confirmação pela Corte como um “dia simbólico”, o senador Paulo Paim lembrou que nas décadas de 1950 e 1960, a Suprema Corte norte-americana tomou a mesma decisão, garantindo a inclusão de negros nas universidades.
— Nós, aqui, décadas e décadas depois, chegamos à mesma linha. É um momento de unificação. Todos somos Zumbi dos Palmares, todos somos Lanceiros Negros, todos passamos pelos abolicionistas, até o maior líder falecido recentemente Abdias do Nascimento — expôs Paim.
Em 2014 foi sancionada a Lei 12.990, de 2014, que assegurou aos negros a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para cargos efetivos e empregos públicos nos órgãos federais pelo período de dez anos.
Em recente comemoração no Senado pelos 10 anos de vigência da Lei de Cotas, o senador Paulo Paim destacou o fato de que entre 2010 e 2019 o número de negros no ensino superior cresceu 400%, “provando que a política foi bem-sucedida”.
— A USP, por exemplo, foi uma das universidades que quadruplicaram o número de pretos e indígenas. E o Insper [instituição de ensino superior de São Paulo] constatou, baseado no Enem e no Censo da Educação Superior, que as universidades federais não tiveram redução no padrão acadêmico. Aqueles que diziam que ia diminuir a qualidade dos nossos formandos quebraram a cara — comemorou Paim.
Para a professora Isabel Lustosa, a reserva de cotas foi extremamente positiva e associada a grandes políticas de democratização das instituições superiores de ensino acabou dando uma nova cara a universidade.
— No Rio de Janeiro, por exemplo, essa democratização fica evidente, onde a presença negra é muito forte, a universidade adquiriu um colorido que ela não tinha. No meu tempo de faculdade, o número de alunos negros era extremamente restrito e hoje se vê que uma boa parte dessa população acadêmica é formada por jovens negros. E é muito bom que isso tenha acontecido, porque traz mais vozes de pessoas que falam a partir de um Brasil que tem sido excluído. Só a democratização do ensino vai propiciar que esses jovens que conseguiram seu espaço a partir da política de cotas venham ocupar os seus espaços também no mundo do trabalho que tem privilegiado as elites.
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