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Com a necessidade de prestar contas sobre os recursos investidos na produção acadêmica e medir seu alcance, instituições têm buscado formas alternativas de avaliação

Por Elstor Hanzen, do Jornal da Universidade – UFRGS | Professores e pesquisadores de diferentes instituições do país apontam que a intensificação da avaliação quantitativa na produção do conhecimento com base no ideário neoliberal tem feito que as universidades e instituições de pesquisa públicas adotem também as formas de administração das empresas privadas. Ou seja, minimizar os custos e maximizar o lucro. Com a lógica de mercado tomando conta, inclusive, da educação, surgiu a necessidade de se medir e quantificar a ciência.

Na avaliação acadêmica, o viés quantitativo surgiu nos Estados Unidos na década de 1950 e se intensificou desde o final daquele século. O professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) Marcos Barbosa de Oliveira explica que, com a implementação da administração análoga à das empresas, foi necessário achar um substituto para o papel do lucro. A solução foi a produtividade: a razão entre os bens produzidos e os recursos gastos na sua produção. “Para medir a produtividade é necessário medir a produção – e esse é o papel da avaliação neoliberal que, para cumpri-lo, precisa ser quantitativa.” O livre-docente pela USP desde 1997 resume as consequências desse modelo.

“Essas avaliações são uma faceta da transformação da universidade em simulacro de empresa, daquilo que é produzido (em especial, os artigos científicos) em simulacros de mercadoria, dotados de simulacros de valor de troca”

Marcos Barbosa de Oliveira

Para o professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) Artur Henrique Franco Barcelos – autor do texto “Ponta do iceberg” –, o conceito de produção acadêmica foi tão naturalizado que se transformou no jargão “produtivismo”. Segundo ele, há um esquecimento generalizado de como era o cotidiano acadêmico antes do currículo Lattes, lançado em 1999. “Ele [o Lattes] permite saber ‘quem é quem’. Havia chegado, então, o momento de definir ‘quem é mais quem’, ou melhor, o que é o ‘quem’ almejado”, lembra. O uso de métricas assentadas em pontuações, então, foi o caminho escolhido. “Em 20 anos, chegamos ao Qualis Periódicos (que antecede o Lattes) e ao Qualis Livros, mecanismo de classificação de revistas e livros com base em critérios que definem conceitos A1, A2, B1, B2, B3, B4, B5 e C”, explica.

A crítica ao sistema de avaliação atual se dá muito pela razão de esta atribuir maior valor à quantidade de publicações do que à qualidade. Os pesquisadores, assim, são submetidos a metas de produção para progredir na carreira, conseguir financiamento, alimentar currículo e obter visibilidade acadêmica com base em número de artigos e citações, por exemplo, sem, muitas vezes, se levar em conta a relevância social do conhecimento divulgado nem o tempo necessário para produzi-lo.

Essa lógica, inclusive, tem impactado mulheres e pessoas negras, privilegiando determinados grupos, segundo a pesquisa da bacharel em Biblioteconomia pela UFRGS Letícia Pereira de Souza, em artigo publicado recentemente no JU. Levando em conta as desigualdades econômica, racial e de gênero no Brasil, Letícia realizou levantamento com pesquisadores da Ciência da Informação – mestrandos, doutorandos e docentes dos programas de pós-graduação – a fim de saber como eles se percebem em relação à busca pelo reconhecimento no produtivismo. Na conclusão, Letícia afirma que “o atual sistema de avaliação na ciência privilegia determinado grupo de cientistas que domina o campo científico e dita as regras do meio acadêmico, preservando certas tradições na ciência”.

O pró-reitor de pós-graduação da UFRGS, Júlio Barcellos, avalia que a valorização de aspectos quantitativos no desempenho acadêmico, com base em publicação de artigos em revistas de alto impacto, foi muito fomentado de 2000 a 2017. Mas, depois disso, conforme o professor, pontos como o impacto social da pesquisa passaram a ganhar maior relevância. “A própria Capes começou a ver a produção dos programa de pós-graduação com o olhar para o potencial social que o trabalho seria capaz de gerar. E isso é um fator de avaliação qualitativo da produção acadêmica, muito além dos índices de produção”, pondera.

Sobre a administração das universidades sob a mesma lógica das empresas privadas, Barcellos diz se tratar de uma questão pragmática – o mais importante, segundo ele, é que o conhecimento chegue à sociedade em forma de resultados, mesmo em áreas como as ciências sociais. “As regras do jogo estão postas e estabelecidas e, se conseguirmos avançar no aspecto social, estamos indo bem”, avalia.

Conforme o professor da USP, o método quantitativo tende a receber mais questionamentos em momentos de instabilidade do capital, como a crise financeira e econômica ocorrida em 2008. Oliveira também publicou, recentemente, um artigo sobre a polaridade quantitativo/qualitativo. O texto está disponível na plataforma Outras Palavras em duas partes, publicadas nos dias 13 e 20 de julho.

Além do produtivismo

As duas primeiras décadas do século XXI têm sido marcadas pelo avanço da ideologia neoliberal. Artur Barcelos aponta que os autores Pierre Dardot e Christian Laval apresentam uma análise consistente desse fenômeno em A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. “Para os autores, o neoliberalismo não é uma corrente de pensamento econômico ou uma ideologia política restrita. Trata-se de uma nova racionalidade, no sentido de ser uma maneira de conceber a própria natureza humana. Com base na biopolítica de Foucault, os autores demonstram como indivíduos convencidos de que somos naturalmente competitivos podem criar, pôr em prática, defender e ampliar mecanismos de controle social independentes de ações estatais. Esse controle se dá pela mercantilização, precificação, medição e atribuição de valor a tudo, absolutamente tudo”, analisa o docente da FURG.

O movimento se reflete, inclusive, no léxico.

“Os programas não são ‘fechados’, são ‘descontinuados’. Apenas a linguagem já oferece uma pletora de termos que invadiram as universidades: inovação, eficiência, indicadores, empreendedorismo, métricas, startups, tech como sufixo de instituições e projetos”

Artur Barcelos

Demétrio Luís Guadagnin, professor do Instituto de Biociências da UFRGS e estudioso dos modelos de avaliação acadêmica, entende que há várias formas de olhar para o sistema de produção da ciência. Para ele, a avaliação com base em publicações permite otimizar a aplicação de recursos escassos e potencializar a produção acadêmica. “Aceitando essa condição, é defensável usar como critério de avaliação a produção acadêmica, auferida, principalmente – mas não exclusivamente –, pelas publicações”, cita. O docente identifica na lógica do “publique ou pereça” uma disfunção do sistema, uma cooptação da ciência pelo produtivismo neoliberal, estimulando “o carreirismo, a ciência normativa, a submissão a corporações, temas de pesquisa e editoras que têm interesses diferentes dos do público. Nesse caso, os desvios e a corrupção são interpretados como sinais de disfunção”, argumenta.

A disfuncionalidade do sistema, de acordo com Marcos de Oliveira, é reforçada pelos indicadores fator de impacto de revistas e índice-h – referente à produtividade de pesquisadores. “O primeiro decorre da precariedade dos indicadores, que solapa a meritocracia alegada como vantagem da avaliação quantitativa. O outro é o das consequências nefastas, não intencionais, dos sistemas, entre as quais: a queda na qualidade de vida dos pesquisadores-professores; a incompatibilidade com o exercício da responsabilidade social da ciência; a proliferação de más condutas; a erosão da ideia de autoria; o desvirtuamento das citações; o declínio na qualidade da produção; os periódicos predatórios; o fetichismo dos rankings universitários”, argumenta o professor da USP.

Para fugir da concepção de que só há uma única forma possível de medir o conhecimento – ao espírito do princípio de Margaret Thatcher “There is no alternative” (Não há alternativa) –, Oliveira propõe, em artigo publicado em 2014, a lógica da “dádiva como princípio organizador da ciência”. Nele, o pesquisador traz um entendimento com base nas ideias do sociólogo da ciência norte-americano Warren Hagstrom, de que as contribuições dos cientistas, incluindo artigos e livros, funcionam como dádivas, não como mercadorias, nem como simulacros de mercadoria. “A troca de dádivas também envolve direitos e obrigações, que são, porém, de natureza moral, não contratual: pode-se processar o comerciante que não entregou a mercadoria pela qual pagamos; pode-se censurar, mas não levar à Justiça, o amigo que não retribuiu o presente de aniversário que lhe demos”, exemplifica.

Oliveira aponta alternativas para se fazer uma transição do método quantitativo para o qualitativo. O ponto central seria o do princípio republicano, o de dar satisfação e mostrar que os recursos foram utilizados de maneira honesta e eficiente. As reflexões sobre o significado social do próprio trabalho do pesquisador podem resultar em publicações, porque tomam tempo e energia do trabalho e têm impacto social, mas não contam como publicação no sistema de avaliação quantitativa.

“A ideia é a de que o prestar esclarecimentos não é limitado pelo viés quantitativo. Sendo assim, pode-se esperar do pesquisador que, ao descrever suas atividades para fins de avaliação, em relatórios e no curriculum vitae, exponha também sua concepção sobre o significado social de seu trabalho, isto é, a maneira como pensa que seu trabalho pode resultar em benefício para a sociedade”

Marcos Barbosa de Oliveira

Revolução digital na universidade  

A profundidade da transformação do ensino a distância e o impacto do mundo digital na ciência, segundo Barcelos, é comparável ao lascamento de pedras há três milhões de anos ou ao controle do fogo há aproximadamente 1,5 milhão de anos. “A tecnologia digital não é apenas uma tecnologia a mais, que gradualmente vai se expandido pela sociedade, como foram a roda, os metais, a pólvora, a escrita ou até mesmo a energia nuclear. Pela primeira vez, temos uma tecnologia que está modificando todas as formas de relações entre os seres humanos, desde o trabalho, passando pelo ensino, a política, o lazer, o afeto, o amor, o sexo, as crenças religiosas”, salienta.

Se a questão sempre foi ‘o que se aprende’, agora ganha importância ‘o modo pelo qual se aprende’. Assim, há em curso uma mudança estrutural com a virtualização de tudo. “Universidades grandes, baseadas no ensino presencial, com bibliotecas, laboratórios, veículos, planetários, museus, estão fadadas a se reconfigurar, desaparecer ou optar claramente por atender a um público personalité”, exemplifica Barcelos. Com isso, cada vez mais haverá pressão por instituições enxutas, ultratecnológicas, baratas, com cursos em conexão com o mercado. “Deveríamos discutir isso de forma intensa nas universidades, pois a sociedade nos atribuiu o lugar de produção do conhecimento científico, e temos um fenômeno inédito diante dos olhos. Mas estamos preenchendo formulários, redigindo relatórios, calculando indicadores e escrevendo artigos”, reflete.

Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da Universidade de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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