Guia orienta sobre cnidários, animais marinhos comuns no litoral brasileiro, e explica por que o contato com algumas espécies traz sensação de queimadura
Por Tabita Said em Jornal da USP – A alta temporada tem levado a um aumento do número de casos de acidentes envolvendo banhistas e águas-vivas nos litorais brasileiros. O fenômeno teve um crescimento nas praias da região Sul do Brasil, de acordo com estudo publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Um levantamento do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio Grande do Sul utilizado no estudo contabilizou mais de 254 mil envenenamentos em dois verões consecutivos, em todo o Estado.
De acordo com Renato Nagata, biólogo marinho da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), o aumento se dá pelo pico populacional desses animais coincidir com o período de verão na região. “Em outras regiões do Brasil, algumas dessas espécies ocorrem em outras épocas do ano, e por isso não geram essa quantidade de acidentes”, explica. O pesquisador, que também realizou pesquisas no Centro de Biologia Marinha (Cebimar) da USP, avalia que o grande número de registros também se deve “à boa coleta de dados realizada pelos salva-vidas”.
Ainda assim, Nagata afirma que a maioria das espécies encontradas nas praias é inofensiva. São cerca de 2 mil tipos conhecidos pelos pesquisadores, dos quais apenas 70 são peçonhentos. Motivado a divulgar as principais características desses animais aquáticos, o biólogo da Furg, em parceria com pesquisadores da USP e da Universidade Estadual Paulista (Unesp), elaborou o Guia sobre mães-d’água e caravelas no litoral gaúcho. O material carrega o conhecimento dos cientistas sobre animais marinhos e as pesquisas de Nagata voltadas para o sul do Brasil. No entanto, o guia apresenta fotos e indica tamanho, toxicidade e abundância das espécies por local no Brasil e países vizinhos.
“Sabemos muito sobre organismos terrestres, algumas pessoas conseguem diferenciar um pardal de um quero-quero, mas falta na cultura brasileira esse conhecimento sobre os animais marinhos”, afirma. Para ele, embora algumas espécies sejam conhecidas de pescadores, comunidades ribeirinhas e surfistas, ainda falta base de reconhecimento para diferenciá-las.
Olindias sambaquiensis
Tamanho máx.: 10 cm
Toxicidade: Intoxicações moderadas
Abundância: frequente no verão. A principal causadora de acidentes no Estado, deixa dolorosas marcas vermelhas na pele. Complicações como alergias são raras. Possui inúmeros tentáculos finos alaranjados ou lilases saindo de sua borda. Suas gônadas alaranjadas formam um “X” no centro do animal.
Physalia physalis (caravela portuguesa)
Tamanho máx.: 20 cm (flutuador), 30 m (tentáculos)
Toxicidade: Intoxicações podem ser graves
Abundância: rara, porém encalhes massivos podem ocorrer. Não é uma água-viva, mas também é um cnidário. Possui um flutuador roxo-azulado com formato de bexiga e tentáculos muito longos. É mais comum no Nordeste e Sudeste do Brasil, porém há grandes encalhes no verão em praias do Rio Grande do Sul. Suas lesões causam linhas vermelhas bem características.
Chrysaora lactea
Tamanho máx.: 20 cm
Toxicidade: Intoxicações leves a moderadas
Abundância:comum no início do verão em Santa Catarina e no Uruguai, mas eventualmente ocorre no litoral gaúcho. Uma das principais espécies causadoras de acidentes na costa brasileira. Pode ter coloração diversa, rosada, roxa, leitosa ou com polígonos vermelhos. Possui longos e finos tentáculos saindo de sua borda e extensões foliáceas saindo do centro do seu corpo.
O guia é uma demonstração da ciência sem fronteiras, ligando o conhecimento de pesquisadores de diferentes litorais. A parceria entre os autores é de longa data: um médico dermatologista, biólogos marinhos, zoólogos e fotógrafos. Cada um com uma especialidade diferente para tornar acessível a informação sobre animais marinhos – Fotos: Reprodução / Guia sobre mães-d’água e caravelas no litoral gaúcho
A publicação também reforça a tradição de quase 20 anos do Cebimar na colaboração e na criação de materiais educativos. Imprescindíveis para a correta identificação de cada espécie, as fotos que ilustram o guia contam com a participação do centro. Localizado em São Sebastião, o Cebimar acumula uma série de folhetos e e-books sobre algas, animais perigosos, plânctons, peixes recifais, entre outros.
“Um dos focos do nosso trabalho são as águas-vivas, pois muitas delas e das caravelas – os cnidários – são urticantes para os seres humanos; elas causam o que chamamos popularmente de ‘queimaduras’. Então unimos nossas especialidades neste material para orientar as pessoas”, explica Alvaro Migotto, professor do Cebimar, que, assim como Nagata, reforça a contribuição do professor e médico dermatologista Vidal Haddad Junior. O médico auxilia o grupo a demonstrar os efeitos dos acidentes com animais marinhos no organismo humano.
Quem é a mãe-d’água?
Água-viva, medusa, alforreca ou mãe-d’água fazem referência a um conjunto de animais marinhos, que podem ser cnidários, ctenóforos e taliáceos. De corpos transparentes e aspecto gelatinoso, estes animais são invertebrados e seu corpo é constituído 95% de água.
Alvaro Migotto explica que as medusas, bem como as caravelas, são organismos oceânicos e “ocasionalmente chegam próximos da costa, causando esses eventos de saúde pública”. Não se sabe o motivo, mas alguns pesquisadores acreditam que a degradação dos oceanos pode ter levado a um aumento da incidência de mães-d’água no litoral. De acordo com o guia, o aumento da temperatura nos oceanos, em decorrência das mudanças climáticas, tende a favorecer a reprodução desses organismos. “Dada a extensão do nosso território, há características ecológicas distintas nas praias, o que muda a composição e o período de ocorrência das espécies”, acrescenta Nagata.
Ao chegarem ao litoral, a maioria desses animais encalha na praia e morre desidratada ou por insolação. “Faz parte do ciclo de vida deles”, reforçam Migotto e Nagata. Mas lembram que, antes disso, eles tentam se reproduzir e se alimentar. “O que causa a sensação de queimadura é, na verdade, um envenenamento quando os tocamos. Esse veneno é uma estratégia para captura de pequenos animais”, diz Migotto, defendendo que se trata de uma resposta natural.
Segundo os pesquisadores, outra característica muito confundida pelas pessoas é acreditar que águas-vivas “perseguem” suas presas. Elas possuem tentáculos de grande aderência e neles há minúsculas cápsulas que acondicionam poderosas toxinas, capazes de paralisar um pequeno peixe ou crustáceo. “São as cnidas, que atuam de forma muito parecida com a agulha hipodérmica. Quando a gente chega perto dos tentáculos, há um estímulo químico e mecânico, disparando essas cápsulas”, detalha Migotto. O professor da USP conta que os tentáculos se assemelham a um arpão, cujas pontas disparam o veneno. “Elas injetam abaixo da derme e, por serem muito pequenas, geralmente são várias centenas de cnidas disparadas em quem encostar nelas.”
O professor explica que todas as águas-vivas têm veneno, mas nem todos nos afetam. No caso de acidentes com um desses animais, Migotto orienta: “É preciso tirar com muito cuidado os tentáculos, sem esfregar, pois muitas vezes algumas dessas cápsulas ainda não foram disparadas”. Essa medida, assim como utilizar água salgada para lavar o local, pode evitar espalhar ainda mais veneno.
Saiba mais no Guia sobre mães-d’água e caravelas no litoral gaúcho.