O Rio Negro teve a maior cheia já registrada na História. No dia 1o de junho, o nível das águas bateu o recorde de 2012, ano da cheia mais extrema desde que o comportamento do rio começou a ser monitorado, há 119 anos. Chuvas de intensidade muito acima do normal atingiram toda a Bacia do Rio Negro nesta temporada, contribuindo para que as águas subissem mais rapidamente – e muito mais cedo, em comparação a outros anos.
As consequências sociais e econômicas têm sido graves para as populações de diversas localidades do Amazonas, que ainda vêm sofrendo os impactos da pandemia de Covid-19 de forma especialmente severa. Na capital, Manaus, as inundações atingiram diversos bairros e áreas do centro, incluindo pontos históricos, como a Praça do Relógio e o prédio da Alfândega, e áreas comerciais como a Feira Manaus Moderna. Casas foram inundadas em pelo menos 15 bairros, afetando mais de 24 mil famílias.
Em 1o de junho, o nível do rio chegou a 29,98 metros – um centímetro além da maior marca da História. No dia 5, a cheia alcançou a marca inédita de 30 metros e se mantinha nesse nível até o dia 9. A previsão dos especialistas é que o nível comece a baixar a partir daí – o que levará ainda várias semanas.
No início de junho, 58 dos 62 municípios amazonenses já estavam alagados e 20 estavam em situação de emergência – incluindo a capital. De acordo com dados da Defesa Civil, mais de 455 mil pessoas já haviam sido afetadas. Em algumas localidades os impactos foram especialmente graves. Um exemplo é o distrito de Cacau Pirêra, no município de Iranduba, na Região Metropolitana de Manaus, onde mais de 17 mil pessoas foram afetadas até o fim de maio. Ali, uma feira que diariamente recebe mais de cinco mil pessoas estava completamente debaixo d’água.
Embora o aumento do nível das águas seja um processo natural nas bacias dos grandes rios, os números mostram que as cheias extremas estão ficando cada vez mais frequentes na Amazônia. Especialistas alertam que pressões ambientais, como o aquecimento global e o desmatamento em larga escala, tornarão ainda mais comuns esses eventos climáticos extremos.
As cheias acima do esperado têm sido mais constantes na bacia Rio Negro, destaca o meteorologista Renato Senna, do Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam). “Analisando toda a série histórica, vemos que o intervalo entre os eventos de cheia extrema são cada vez menores”, frisa.
Os registros de quase 120 anos do nível da água no porto de Manaus – onde o Instituto Geológico (CPRM) faz as medições -, mostram que, das dez maiores cheias, oito ocorreram nos últimos 45 anos, sendo seis delas a partir de 2009. Essas cheias extremas, segundo Senna, estão sempre associadas a chuvas mais fortes que o normal. “Fizemos um levantamento das maiores cheias de 1970 em diante e constatamos que elas coincidiam com grandes anomalias nas chuvas observadas na Bacia do Rio Negro. Nos últimos anos, temos visto um aumento de frequência desse processo como um todo”, afirma.
Senna explica que a subida anual do rio varia normalmente entre 16 e 29 metros no porto de Manaus. “O grande problema é que as chuvas nessa época do ano – entre o fim de maio e começo de junho – caem em forma de pancadas fortes, muito concentradas. No caso de Manaus, como muitos igarapés foram transformados ou enterrados (devido à expansão urbana), essas águas se concentram nas partes baixas da cidade, provocando inundações.”
Senna afirma que a anomalia nas chuvas não abrange toda a Bacia Amazônica da mesma forma. Ela se concentra na parte da Amazônia ocidental e em parte da Colômbia, onde se formam os rios Negro e Solimões, que se juntam na região de Manaus, formando o rio Amazonas. “O Rio Madeira, que também faz parte da Bacia Amazônica, não está sendo tão afetado. Mesmo o Rio Solimões não foi tão afetado neste ano como o Rio Negro. Os rios Juruá e Purus, da bacia do Solimões, porém, foram muito afetados. Já na Amazônia oriental, incluindo o Pará, parte do Tocantins e do Maranhão, estamos com chuvas abaixo do normal”, afirma Senna.
De acordo com Senna, o que se pode afirmar com certeza é que o aumento das chuvas tem relação com o resfriamento das águas do Oceano Pacífico produzido neste ano pelo fenômeno La Ninã. “Tanto no Pacífico como no Atlântico, tivemos uma redução de meio grau centígrado na superfície do mar em relação ao ano anterior. Essa variação da temperatura sobre o oceano é um dos principais fatores que determinam as chuvas na Amazônia. Entretanto, La Niña é um fenômeno natural que já existia antes da revolução industrial – e por isso é temerário associar essas cheias diretamente à crise climática”, diz.
Mas Senna complementa: “É muito difícil afirmar que esses fenômenos sejam produzidos por mudanças climáticas causadas pelo homem, embora alguns pesquisadores digam isso categoricamente. Por outro lado, também não há provas que nos permitam negar essa relação.”
O aumento da frequência das cheias anômalas na Amazônia ocidental, no entanto, é coerente com as previsões dos climatologistas de mais de 100 países que compõem o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, da sigla em inglês), que atribuem a maior frequência e intensidade dos fenômenos extremos ao aquecimento global.
O físico Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo (USP), destaca que “há indícios suficientes para associar o fenômeno no Rio Negro às mudanças climáticas globais. A atual cheia recorde do Rio Negro é fruto do aumento dos eventos climáticos extremos que temos observado na Amazônia, causado pelo aquecimento global. O número de secas seguidas – em 2005, 2010 e 2015 – e o número de cheias extremas como essa de 2021 não param de aumentar”, diz Artaxo, que também é membro do IPCC.
As secas exacerbadas pelas mudanças climáticas têm favorecido o agravamento das queimadas na Amazônia. Por outro lado, o cientista salienta que as cheias cada vez mais frequentes são um exemplo dos fenômenos extremos na Amazônia que têm impactos alarmantes em diversas partes do país, afetando fortemente outros biomas e a economia.
“Esses recordes de cheias cada vez mais frequentes mostram claramente os impactos das mudanças climáticas na Amazônia. Em uma floresta que depende, para seu funcionamento básico, de temperaturas e chuvas constantes, isso é muito preocupante. Esses extremos podem comprometer a saúde da floresta e os serviços ecossistêmicos que ela realiza para o nosso país, e em particular para a agricultura no Cerrado e no Brasil central”, afirma.
Os especialistas ouvidos pela reportagem concordam que esses fenômenos vão se tornar mais frequentes e severos se a floresta continuar sendo desmatada e queimada e se os processos de mudança do uso do solo, como a transformação de áreas naturais em pastos, avançar por regiões ainda preservadas da Amazônia.
“No caso dos rios Negro e Solimões, a floresta na região de suas cabeceiras está bastante preservada e não podemos relacionar essas cheias com o desmatamento. Mas não há dúvida de que um aumento do desmatamento em larga escala iria agravar ainda mais esses eventos”, diz o pesquisador Jochen Schöngart, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Segundo Schöngart, diversos estudos mostram que o desmatamento em larga escala pode modificar os regimes hidrológicos, especialmente em bacias menores. No rio Tocantins, por exemplo, cientistas compararam as cheias de dois períodos: quando o desmatamento era limitado e após o desmatamento em larga escala. Os resultados mostraram que, embora a quantidade de chuvas fosse semelhante nos dois períodos, após o desmatamento o nível máximo de cheias foi 28% maior e o pico das cheias foi antecipado.
“Isso acontece porque, após o desmatamento em larga escala, a água não é mais absorvida pelo solo, nem volta para a atmosfera pela respiração da floresta. Assim, temos uma quantidade maior de água voltando ao leito do rio”, explica Schöngart.
Com um grupo de cientistas brasileiros, chilenos e britânicos, Schöngart publicou em 2018, na revista Science Advances, um estudo que procurou desvendar os mecanismos por trás do aumento de cheias extremas. “A análise dos 119 anos de registros constatou, em primeiro lugar, que há um inequívoco aumento desses fenômenos. Nos primeiros 70 anos dos registros, esses eventos tinham, na média, o tempo de retorno de 20 anos. Nas últimas décadas, esse tempo médio de retorno é de apenas quatro anos – e, aparentemente, continua diminuindo”, diz.
De acordo com Schöngart, o mecanismo por trás disso é extremamente complexo, com variações entre interanuais e interdecadais influenciando todo o regime de chuvas. E, por isso, é tão difícil descartar a hipótese de que se trate de um fenômeno natural. “Sabemos que o principal elemento no regime de chuvas sobre a Amazônia são as oscilações climáticas provenientes dos oceanos ao redor – do Pacífico equatorial, na forma de eventos como El Niño e La Niña, mas também do Atlântico tropical”, afirma.
Segundo o estudo de 2018, no período entre 1990 e 2015, o Atlântico tropical teve um forte aquecimento de suas águas superficiais, produzindo muita evaporação. Os ventos alísios levam essa massa úmida para dentro da Amazônia, especialmente na época de chuvas, o que resulta no aumento das cheias.
“Como o Atlântico tropical estava aquecido e o Pacífico equatorial esfriou, por causa de diferenças na pressão atmosférica sobre os dois oceanos, essas alterações levaram a uma maior convecção (processo de formação de nuvens por meio da transferência de calor da superfície para a atmosfera) na Amazônia. Podemos, no entanto, associar essa dinâmica a uma variabilidade natural, porque a cada três ou quatro décadas temos uma combinação com essa oscilação decadal, que é mais frequente no Pacífico e mais prolongada no Atlântico”, explica Schöngart.
Por outro lado, pelo menos um componente desse processo pode ser associado aos impactos causados pelo ser humano no clima, conforme o pesquisador. “O cinturão de ventos do Hemisfério Sul entrou mais em direção à Antártica nas últimas décadas, o que provavelmente está relacionado ao buraco na camada de ozônio naquele continente. Com essa mudança, o ar quente do Oceano Índico acaba passando por cima da África e aquecendo ainda mais o Oceano Atlântico”.
Segundo o professor, as anomalias observadas na bacia do rio Negro são resultado de complexas interações climáticas entre a floresta e os oceanos – e a modificação nos ventos do Hemisfério Sul mostram que há pelo menos um componente ligado à atividade humana. “Temos os três grandes oceanos contribuindo para essa modificação no ciclo hidrológico. Essas mudanças dos ventos no Hemisfério Sul estão fortemente associadas ao buraco na camada de ozônio e ao efeito estufa”, diz.
Apesar da enorme complexidade dos fenômenos climáticos que afetam as cheias dos rios amazônicos, suas consequências são bem concretas para as populações da região. Schöngart pontua que esses impactos são diferentes nas zonas urbanas e nas áreas rurais.
“Nas regiões rurais, em geral, as pessoas têm moradias adaptadas a esses fenômenos, como casas flutuantes. O grande impacto para elas é econômico. Essa população vive em várzeas e, durante a seca, com os peixes estão concentrados nos lagos, dedicam-se à pesca. Nas cheias, quando começa a vazante dos rios, preparam a terra para a agricultura. O problema é que, quando vem uma cheia muito grande, as águas invadem muito cedo as roças e pastos e o ciclo de pesca, plantio e a colheita são dramaticamente afetados”, afirma.
Já nas áreas urbanas, o maior impacto é na moradia e nas condições sanitárias das populações que vivem ao longo dos igarapés. “Com o rio muito cheio, os igarapés não têm para onde escoar sua água ao serem atingidos pela chuva. Essa água fica represada e se mistura ao esgoto e ao lixo doméstico e industrial, invadindo as casas. O acúmulo de água também afeta os poços artesianos e não se consegue obter água limpa para consumo. Além de perder seus bens e ficar exposta a problemas de saúde, os moradores dessas áreas também podem ter suas casas alagadas invadidas por animais perigosos”, diz.
Muitas vezes é preciso abandonar as casas, o que é preocupante, para o pesquisador, em período de pandemia de Covid-19. “Há risco de que as pessoas se desloquem, saindo das áreas afetadas e se mudando para casas de parentes que moram em outros locais. Isso pode levar a um aumento do número de infectados”, afirma.
Luna Gripp Simões Alves, pesquisadora em Geociências da CPRM que é responsável pelo Sistema de Alerta Hidrológico do Amazonas (Sipam), explica que muito antes do nível do Rio Negro chegar próximo ao recorde histórico, os impactos sobre a população amazonense já eram altos.
“Analisar as medidas dos níveis dos rios, registrar suas cotas máximas e a magnitude das cheias é algo extremamente importante para traçar políticas públicas voltadas para as populações impactadas. Porém, bem antes de chegarmos a esse recorde histórico os impactos já eram sentidos. Em alguns bairros de Manaus, por exemplo, quando a água passa de 27,5 metros, já há casas inundadas”, afirma Luna.
De acordo com ela, a prefeitura de Manaus tem um plano de contingência, que inclui um cadastro de famílias afetadas para que elas possam obter os recursos do Aluguel Social. Porém, na difícil situação em que a cidade se encontra por causa da Covid-19, essa medida está sendo prejudicada. “Mesmo o pessoal que ia de casa em casa passou a ser deslocado para atender as vítimas da pandemia”, disse.
Há outras medidas que são postas em prática, como a construção de pontes de madeira, as chamadas marombas. No mês de maio, pelo menos 9 mil marombas foram construídas em Manaus. Em algumas regiões, a população só consegue transitar em canoas. No Centro de Manaus, a área onde acontece a principal feira da cidade foi inundada e foi preciso transferir os feirantes para uma balsa.
“Existe uma certa resiliência por parte da população ribeirinha, que inclui subir o nível das casas em certos bairros que são afetados muito intensamente. Mas tudo tem um limite. Dependendo da velocidade da subida da água não dá tempo de construir essas adaptações. A demanda por madeira fica muito alta e os moradores, em geral, não têm condições de comprar.”
Luna afirma ainda que os impactos ambientais da ocupação humana na região de Manaus agravam localmente os efeitos negativos das cheias.
“Essas cheias que chegam a Manaus são resultado das chuvas nas cabeceiras do rio, na região da Cabeça do Cachorro e na Colômbia. Temos grandes áreas impermeabilizadas na cidade e o problema do lixo nos igarapés. Tudo isso piora a situação, porque no momento da cheia extrema, a água se acumula”, diz Luna.
“Na região onde o aumento das chuvas está produzindo as cheias, não temos estradas e o deslocamento é feito por rios. Ainda não há efeitos antrópicos significativos. No entanto, esses eventos sem dúvida podem ser agravados se aquelas regiões forem desmatadas. É o que ocorre no rio Xingu, onde os efeitos do desmatamento são muito nítidos”, acrescenta.
Segundo Luna, ainda não é possível saber se as alterações hidrológicas na bacia do Rio Negro têm relação com algum efeito da ação humana, mas é certo que há uma relação com os fenômenos climáticos. “A temperatura global realmente está aumentando nos últimos anos e, quanto maior a temperatura sobre o oceano, maiores são os níveis de vapor d’água e, consequentemente, de chuvas”, explica ela.
Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.
Saiba mais