Por Gilberto Stam em Revista Pesquisa FAPESP – Experimentos feitos nas últimas décadas com a planta Arabidopsis thaliana sugeriram que, assim como pessoas respondem melhor a remédios em determinados horários, o respeito ao ritmo biológico, quando possível, poderia aumentar a produtividade das lavouras e economizar insumos. Como o relógio interno de Arabidopsis – uma erva da família da mostarda de até 25 centímetros de altura e um modelo para estudos de fisiologia e genética de plantas – é muito parecido com o das culturas comerciais, pesquisadores propõem que essas descobertas podem ser aplicadas na agricultura.
“Tecnologias baratas, como computadores simples de placa única, já estão disponíveis e poderiam ser usadas para monitorar a temperatura das folhas 24 horas por dia e decidir, por meio de algoritmos, qual o melhor momento para irrigar, aplicar fertilizantes ou herbicidas”, sugere o biólogo Alex Webb, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, que assina artigo de revisão publicado na revista Science em abril deste ano, defendendo a criação de uma nova disciplina: a cronocultura, ou agricultura circadiana.
O biólogo Carlos Hotta, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) e que foi orientado por Webb no doutorado, defendeu proposta semelhante em agosto deste ano na revista Journal of Experimental Botany, antes de saber do artigo do ex-orientador.
Um exemplo de insumo que pode ser mais produtivo quando se leva em conta o relógio biológico é o glifosato, herbicida mais usado no mundo, com um custo anual de US$ 11 bilhões. “No final da tarde, o produto foi 50% mais eficiente em Arabidopsis do que ao alvorecer”, informa o botânico Antony Dodd, do John Innes Centre, no Reino Unido, que fez estágio de pós-doutorado com Webb. Ele descreveu o resultado em 2019 na Nature Communications, e também mencionou, sem aprofundar o assunto, a necessidade de criar uma agricultura do tempo das plantas.
Os três pesquisadores inferem que ganhos de produtividade ou de economia possam ser obtidos mudando o horário de aplicação de insumos, usando novas tecnologias ou ajustando o próprio relógio das plantas por meio de engenharia genética. Para garantir que seja de fato produtivo, o efeito ainda precisa ser mais estudado nas espécies comerciais.
Hotta coordenou um estudo que ilustra algumas das dificuldades de aplicar no campo o conhecimento do laboratório. Ele verificou que o sombreamento de cada cana-de-açúcar sobre as outras faz com que partes diferentes do campo sigam horários diversos. Mais sombreadas ao amanhecer, as plantas do lado oeste do campo têm duas horas de atraso no metabolismo em relação às folhas do lado leste, segundo artigo publicado este mês na revista New Phytologist.
À moda antiga
O conhecimento está agora sendo formalizado, mas não é novidade para pequenos agricultores atentos ao ritmo diário da plantação. “Faço a aplicação de inseticida durante a noite, quando a praga está mais ativa”, conta o técnico em agropecuária Marcos Perondi, que planta soja, milho e feijão em Planaltina, no Distrito Federal. O biólogo José Wellington dos Santos, que cultiva hortaliças orgânicas, como tomate italiano, pepino japonês e pimentão colorido, evita irrigar ou aplicar inseticida natural em horários de sol forte ou temperatura alta. “São culturas sensíveis e caras que exigem cuidado diário.”
“A cronocultura talvez possa vir a fornecer a esses produtores protocolos mais detalhados para aumentar a produtividade de acordo com o ritmo das plantas”, diz o engenheiro florestal Luis Eduardo Camargo, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, que não participou dos estudos de Webb, Hotta e Dodd. Ao analisar as publicações recentes, o pesquisador, que estuda patógenos de plantas, afirma que as possibilidades são maiores do que imaginava.
A função do relógio biológico – uma sequência de reações químicas que ocorre de forma cíclica e com tempo definido, próximo de 24 horas – é similar à do relógio de pulso. Ele permite antecipar eventos, como sair de casa para chegar ao ponto de ônibus na hora certa. As folhas se preparam para a fotossíntese antes do amanhecer, aproveitando ao máximo a luz solar. Além disso, ajuda o organismo a interpretar acontecimentos de acordo com o horário. “Uma queda brusca de temperatura durante o dia é mais significativa do que à noite, pois indica frio intenso, assim como receber uma ligação às 3h da madrugada é mais preocupante do que outra às 15h”, exemplifica Hotta.
Ajuste fino
O relógio biológico pode ser alterado com engenharia genética na tentativa de ajustar o metabolismo de uma planta para condições específicas – algo feito de forma intuitiva há milênios por agricultores que selecionaram novas variedades de culturas para os climas frios. Diante das mudanças climáticas, a disponibilidade hídrica se torna um desafio cada vez mais relevante, e hoje a agricultura consome cerca de 70% da água potável usada no mundo, segundo dados do Banco Mundial. Uma ideia para reduzir esse consumo é diminuir as perdas por transpiração, por meio da regulação de estômatos, poros por onde sai cerca de 97% da água absorvida. “Estamos engatinhando nessa área. Atualmente, nem sequer sabemos se é mais econômico irrigar durante o dia ou à noite”, revela Webb.
Os estômatos também servem de porta de entrada para fungos patogênicos que penetram na planta ao raiar do dia, quando os poros acabaram de abrir, mas ainda não há luz solar suficiente para matar os microrganismos. “Se fosse possível mudar o relógio e deixar os estômatos fechados até um pouco mais tarde, o sol mataria os esporos dos fungos, reduzindo a infecção”, sugere Camargo, com base em uma hipótese de que variedades de trigo mais resistentes ao fungo da ferrugem apresentam esse tipo de atraso.
Outra possibilidade seria modificar o relógio das plantas de modo a permitir que elas suportem períodos mais longos de claridade, aumentando a produtividade de fazendas verticais. “A alface cresce bem em dias de até 18 horas com período escuro de seis horas, mas mais do que isso o ganho de produtividade não compensa o gasto com energia elétrica”, conta o engenheiro-agrônomo Ítalo Guedes, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Hortaliças), em Brasília. Plantas modificadas que tolerassem dias mais longos produziriam mais, possivelmente compensando o investimento alto nesse tipo de fazenda. Se der certo, pode facilitar o cultivo de alface sem agrotóxicos em grandes cidades – uma hortaliça exigente quanto ao período luminoso, o que torna um desafio a sua produção a baixo custo.
Sinais do tempo
Webb, Hotta e Dodd ressaltam que não se trata de uma revolução, mas de práticas que podem diminuir os gastos e a quantidade de agrotóxicos, além de melhorar a qualidade do alimento. “O objetivo é atrair mais pesquisadores para a área e fazer descobertas que possam ser usadas por agricultores para enfrentar as mudanças climáticas”, anuncia Dodd. “Assim como a cronoterapia está descobrindo que medicamentos podem ser mais eficientes em horários específicos, poderemos descobrir práticas de agricultura mais econômicas e menos danosas ao ambiente”, argumenta.
Antes mesmo de chegar à agricultura, um exemplo de aplicação da cronocultura surgiu na Europa. Uma das marcas de eletrodomésticos mais vendidas no continente aplicou o conceito em um novo modelo de geladeira. Na gaveta para legumes e verduras, luzes internas se acendem durante 12 horas mudando de cor – azul, verde e vermelho representariam, respectivamente, o alvorecer, o meio-dia e o pôr do sol – e depois se apagam, reproduzindo o ciclo de luz do dia. Segundo a empresa, frutas e legumes ficam frescas e nutritivas por mais tempo. “O produto não foi testado cientificamente, mas há evidências de que manter espinafre e repolho sob iluminação que simula o ciclo do dia e da noite ajuda a preservar os nutrientes e aumenta a resistência às pragas”, afirma Webb.
“Até 2050 precisaremos aumentar a oferta de alimentos devido ao crescimento populacional”, diz Camargo, da Esalq. “É possível que a cronocultura ajude nesse sentido.”
Projetos
1. Desenvolvimento de modelos biológicos alternativos para o estudo de redes de regulação em cana-de-açúcar (nº 11/00818-8); Modalidade Jovem Pesquisador; Programa Bioen; Pesquisador responsável Carlos Takeshi Hotta (USP); Investimento R$ 1.408.266,64.
2. Relógios biológicos específicos em órgãos e tecidos de gramíneas C4 (nº 15/06260-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Programa Bioen; Pesquisador responsável Carlos Takeshi Hotta (USP); Investimento R$ 185.329,40.
3. Diurnal regulation of carbon metabolism in plants (nº 17/50326-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Regular; Programa Sprint; Convênio Sociedade Max Planck, Potsdam, Alemanha; Pesquisador responsável Carlos Takeshi Hotta (USP); Investimento R$ 10.186,10.
4. Caracterização do relógio biológico de genótipos de cana-de-açúcar contrastantes para sacarose e fibra (nº 19/08534-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Programa Bioen; Pesquisador responsável Carlos Takeshi Hotta (USP); Investimento R$ 171.403,96.
Artigos científicos
DANTAS, L. L. B. et al. Field microenvironments regulate crop diel transcript and metabolite rhythms. New Phytologist. v. 232, n.. 4, p. 1738-49. nov. 2021.
BELBIN, F. E. et al. Plant circadian rhythms regulate the effectiveness of a glyphosate-based herbicide. Nature Communications. v. 10, 3704. 16 ago. 2019.
HOTTA, C. T. From crops to shops: How agriculture can use circadian clocks. Journal of Experimental Botany. erab371. on-line. 7 ago. 2021.
STEED, G. et al. Chronoculture, harnessing the circadian clock to improve crop yield and sustainability. Science. v. 372, n. 6541. on-line. 30 abr. 2021.
Este texto foi originalmente publicado por Revista Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.
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