Metrópoles brasileiras se mobilizam com planos climáticos que priorizam a restauração florestal nas ações de resiliência para adaptação aos impactos já em curso no planeta
Por Sérgio Adeodato em Página 22 – A Floresta da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro, foi palco de uma das maiores iniciativas de restauração florestal já empreendidas no mundo. Isso no século XIX, a partir de 1862, quando Dom Pedro II ordenou o plantio massivo de árvores porque o desmatamento para lavouras de café secava fontes e fazia a capital do Império sofrer com a falta de água potável. A história de contínua degradação vinha de muito antes, pela retirada intensiva de madeira para construção, lenha e carvão destinado ao consumo dos engenhos de açúcar, olarias e residências. E encontrou naquela primeira grande crise hídrica brasileira um ponto de inflexão – e um desafio para o conhecimento científico que ainda engatinhava, mas já demonstrava empiricamente a importância das florestas para as cidades.
Em consequência da empreitada imperial, o atual Parque Nacional da Tijuca, com 4 mil hectares de vegetação replantada, é a quarta maior área verde urbana do País, atrás do Parque Estadual da Cantareira (8 mil hectares), em São Paulo; da Reserva Adolfo Ducke (10 mil hectares), em Manaus; e do Parque Estadual da Pedra Branca (12,5 mil hectares), no Rio de Janeiro – capital que hoje possui um terço do território em área de proteção ambiental.
Lá se foram 160 anos e a ameaça hídrica de outrora, motivo maior da política de reflorestamento no Império, permanece latente. Agora, por impactos muito além do sagrado cafezinho. A emergência bate à porta da agenda pública e privada com riscos que não ficam somente nas torneiras, mas afetam o abastecimento de energia e a economia em geral. E chegam, de forma mais complexa, com uma nova roupagem: a da mudança climática. Tanto assim, que o plano carioca neste tema incorpora a restauração florestal como destaque:
“O objetivo é zerar emissões de carbono até 2050 e, no curto prazo, até 2024, pretendemos criar quatro florestas com total de 380 hectares, priorizando a conexão de remanescentes e a redução de ilhas de calor”
O Plano de Desenvolvimento Sustentável e Ação Climática, adotado pela cidade no âmbito da iniciativa internacional C40 Cities, prevê o desenho de 45 “corredores de sustentabilidade” para intervenções em cinco objetivos transversais, entre os quais o das áreas verdes. São 13 áreas prioritárias para reflorestamento, arborização, agricultura urbana e criação, proteção e conexão de unidades de conservação. Um dos itens previstos é o avanço na instituição do Mosaico Carioca com a integração das demais esferas governamentais para a ligação entre maciços. Além disso, pretende-se criar o Corredor Verde Pedra Branca-Tijuca, conectando parques e viabilizando trechos da Trilha Transcarioca, projetada com 180 km entre a Barra de Guaratiba e o Morro da Urca.
Além das heranças do Império, o momento atual é marcado pelos aprendizados dos mutirões de reflorestamento que nasceram em comunidades nos morros do Rio de Janeiro, na década de 1990, como iniciativa inédita em cidades brasileiras. Ao longo de 35 anos, a política pública tem resistido às mudanças de gestão municipal e hoje abrange 67 favelas, liderada localmente por moradores que recebem bolsa-auxílio de R$ 1 mil mensais para o trabalho de capina, plantio e articulação com as comunidades. Entre as áreas prioritárias, estão os morros dos Dois Irmãos, Rocinha, Vidigal, Salgueiro e São José Operário, onde os mutirões surgiram, no intuito principal de evitar desmoronamento de terra.
Em paralelo, no programa Refloresta Rio, novas frentes expandem o plantio de árvores com recursos vindos de compensação ambiental prevista na licença de empreendimentos. É o caso da Floresta dos Atletas, com 8 hectares, que deverá receber mudas para compor o corredor verde Carboatá-Jericinó por meio de recursos de compensação das obras da Olimpíadas que deveriam ter sido aplicados em reflorestamento na época, mas o projeto ficou na gaveta. Foram oportunidades perdidas, a exemplo das que poderiam ampliar a restauração florestal devido aos impactos da Copa do Mundo da Fifa, em 2014, porém permaneceram esquecidas.
No total, com apoio de cinco viveiros municipais, 2,7 mil hectares foram recuperados via compensação ambiental até o momento. “É nítido o ganho com o enriquecimento das áreas, fruto de um longo aprendizado de erros e acertos que envolveu substituição de espécies exóticas, educação ambiental junto a agentes locais e ações contra incêndios e perda de áreas devido a ocupações irregulares”, ressalta Barros. Segundo ela, além do retorno da fauna, melhorou o microclima e nascentes foram recuperadas. Agora, há perspectiva de benefício também econômico, por meio de projetos de Sistema Agroflorestal (SAF) e Pagamento por Serviço Ambiental (PSA), que aguardam regulamentação municipal.
O papel das cidades na infraestrutura verde
As cidades contribuem com 70% das emissões totais de gases de efeito estufa e abrigam a maior parte da população global, sob risco de severos impactos da mudança climática já em curso, conforme reforça o novo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC).
“Os alertas tornam ainda mais evidentes a necessidade de olhares não somente para a Amazônia, com para o contexto urbano e a urgência da adaptação, indo além da mitigação”
No mundo, a iniciativa conecta 97 grandes cidades em ações climáticas na liderança de caminhos compatíveis ao Acordo de Paris, no total de 700 milhões de cidadãos e um quarto da economia global. Além da captura de carbono da atmosfera no crescimento das árvores, a restauração florestal é tida como chave na adaptação climática ao favorecer a permeabilidade do solo e o sistema de drenagem urbana contra enchentes, a redução da poluição do ar e das ilhas de calor, a contenção de encostas e a prevenção à saúde pelo contato com a natureza, sem falar da segurança hídrica.
“Os planos de clima elaborados pelas cidades contribuem com a revisão de planos diretores, ao definir áreas prioritárias de ação”, aponta Cuperstein. No Brasil, destaca-se o pioneirismo de Extrema, no Sul de Minas Gerais, ao adotar uma lei municipal para o repasse de uma parte do orçamento a proprietários rurais que protegem e restauram a floresta, evitando impactos a mananciais estratégicos ao município e região de entorno, incluindo a metrópole de São Paulo. Apoiado pela população como vetor de desenvolvimento, o programa Conservador das Águas ganhou impulso em 2018, com a criação da Política Municipal de Mudança Climática. A nova lei regulamentou a receita com a neutralização de carbono, por meio da restauração florestal, junto a empreendimentos privados.
Além das empresas, com base no inventário municipal de gases de efeito estufa, também os cidadãos disponibilizam recursos ao plantio de árvores, via tributos. Os 20 mil veículos da cidade, por exemplo, geram R$ 4 milhões em IPVA dos quais 20% vão para a restauração florestal como forma de neutralizar emissões. O programa é alimentado ainda por 25% do IPTU pago pelas residências e um percentual do ISS, demonstrando que o modelo de restaurar o ambiente natural consolidou-se como um projeto da sociedade. Em 2020, a iniciativa repassou cerca de R$ 5 milhões, beneficiando 5 mil hectares de conservação e restauração em áreas privadas e municipais.
Diante do sucesso, o objetivo é aumentar escala e replicar os aprendizados no programa Conservador da Mantiqueira, apoiado por ONGs e instituições parceiras, como a The Nature Conservancy (TNC) cujos recursos para as ações são em parte mobilizados pela plataforma Restaura Brasil.
Dados da ONU indicam que as Soluções baseadas na Natureza (SbN), entre elas a recuperação de ecossistemas para provisão de água e outros recursos, pode entregar 37% dos esforços de mitigação climática, marcando a retomada de investimentos em infraestrutura e produção no mundo pandêmico. Segundo o WWF, cerca de US$ 44 trilhões, ou pouco mais da metade do PIB global, depende diretamente do que a natureza fornece.
Em Niterói, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o projeto Parque Orla de Piratininga, principal lagoa da cidade, prevê a revitalização dos rios que desaguam nela e a construção de jardins de chuva para infiltração de água no solo, com reflorestamento da borda para reter sedimentos. Os recursos, via financiamento externo, são R$ 80 milhões.
“A ideia é associar a identidade de Niterói às soluções da natureza, o que não é um luxo ou um arroubo acadêmico, mas questão de qualidade de vida”
Restauração contra desigualdades sociais
No País, Salvador saiu na frente entre as capitais com o plano climático, também uma bandeira de visibilidade política. A antiga Secretaria Municipal de Meio Ambiente trocou de nome para Secretaria Municipal de Sustentabilidade e Resiliência, dando o tom do espaço que a agenda climática passa a ocupar na gestão. A primeira capital do Brasil cresceu de forma desordenada por séculos e agora tenta consertar os efeitos, associando-se aos compromissos internacionais da Cities Race Resilience, após já ter integrado a Race to Zero pelas metas adotadas com a C40 Ciites já mais de dois anos. A cidade assumiu compromissos até 2049, marco de seus 500 anos de fundação – data-limite para ter 100% das emissões de carbono neutralizadas por intervenções capazes de tornar a vida urbana mais limpa, verde e inclusiva.
Além de reflorestar a beira de rios e expandir as áreas verdes de 30 para 36 metros quadrados por habitante no período, os preparativos de adaptação à mudança climática, desenhados para cada bairro com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e apoio da agência de cooperação alemã GIZ, incluem o aumento de 50% da capacidade de alertas de desastres ambientais e redução em 30% dos deslizamentos de terra até 2032. Uma iniciativa incorporada pelo plano foi o serviço de “disque muda” para delivery nas residências, com 5 mil entregas em dois anos.
Há o desafio da desigualdade social, que potencializa os danos de eventos climáticos extremos no meio urbano. “Neste ano, plantamos 3,3 mil árvores e o objetivo é avançar com parques lineares e a requalificação do Jardim Botânico e áreas do subúrbio”, informa João Resch, diretor do sistema de áreas de valor ambiental e cultural de Salvador. Como exemplo destaca-se a conexão entre o Parque de Xangô e o Pitanga I, abrangendo espaços naturais associados a religiões afro-brasileiras.
Ao mesmo tempo, segundo Resch, a prefeitura está finalizando o Plano Municipal de Mata Atlântica, com foco na recuperação de áreas degradadas e estudos para criação de novos parques. Conceitualmente, em todo o País, esses planos se destinam a criar mecanismos para a aplicação da Lei nº 11.428/2006, sobre a conservação, proteção, regeneração e utilização do bioma. Desta forma, abrem espaços para mecanismos de governança e políticas públicas de incentivo para investimentos, como PSA, ICMS Ecológico e outros em que a restauração florestal é um componente estratégico.
No Brasil há 138 planos elaborados. “São poucos, diante da existência de cerca de 3 mil municípios da região, mas a tendência tem sido de maior preocupação e articulação das cidades, inclusive com apoio da iniciativa privada, diante da ameaça hídrica”, ressalta Malu Ribeiro, diretora de políticas públicas da SOS Mata Atlântica.
No entanto, há riscos de retrocesso com a alteração do Código Florestal, em tramitação no Congresso Nacional, que transfere aos municípios a decisão sobre as Áreas de Preservação Permanentes (APP) urbanas, como a beira de rios e encostas de morros. Se o projeto passar, diz Ribeiro, o Plano de Mata Atlântica será o único instrumento – transparente e participativo – para garantia de vegetação nativa nessas áreas, essenciais à segurança hídrica e à adaptação climática.
Nova York, Amazônia e Bangladesh
Entre as capitais, de acordo com ela, São Paulo é referência brasileira por adotar instrumentos econômicos que estimulam a proteção de mananciais, e tem restauração florestal como um dos cinco eixos principais do plano climático, a cargo da Secretaria Executiva de Mudanças Climáticas (Seclima), criada para fazer frente ao desafio. “A cidade é uma mistura de Nova York, Amazônia e Bangladesh”, compara Antonio Fernando Pinheiro Pedro, secretário da pasta. Segundo ele, a ênfase inicial do plano climático paulistano é a fiscalização contra ocupações irregulares de áreas estratégicas ao abastecimento hídrico, com o desmonte de loteamentos clandestinos.
Apesar do cinza estampado pelo concreto dos edifícios, São Paulo tem o verde em 48,3% do território municipal, coberto por árvores, segundo dados da secretaria. A meta é aumentar para 50% até 2024. “A questão maior é disciplinar o plano de arborização urbana, em fase de revisão”, afirma Pinheiro Pedro.
No plano de adaptação climática, integrado ao C40 Cities, a conservação e recuperação de florestas integram uma parte dos 60 objetivos, que abrangem 13 secretarias de governo, ao lado das medidas para substituição de matriz energética e gestão de resíduo urbano.
“Pegada climática é a bota no barro para defender a floresta que resistiu”, ilustra o secretário, para quem o atual processo de regulamentação da Lei Municipal de Recursos Hídricos“ permitirá o casamento entre proteção da água e restauração florestal, com monitoramento antes feito sem coordenação integrada”.
No curto prazo, diz Pinheiro Pedro, o plano de resiliência climática olha contra os impactos das chuvas de verão, com a construção de 1 mil jardins de chuva para aumentar a permeabilidade do solo. Em florestas das áreas periféricas, como na Zona Sul, deverá ser incentivado o uso econômico via produção orgânica de alimentos, com árvores de pé. E a expectativa é de novos projetos, diante dos alertas da ciência e da COP-26, em novembro: “É cada vez maior o número de fundos financeiros, organismos internacionais, ONGs, grandes empresas e até estados estrangeiros que nos procuram dispostos a parcerias”, revela Pedro. “O enfrentamento da mudança climática começa nas ações locais nas cidades e temos grande responsabilidade como quarta maior capital do mundo, que tem um dos maiores orçamentos públicos do País e importantes remanescentes de Mata Atlântica.”