Estudo sugere que áreas de proteção integral abrigam mais espécies de mamíferos do que áreas de uso misto
Resumo
- Estudo rastreou 21 espécies de mamíferos em reservas no norte de Minais Gerais, comparando suas populações em áreas de proteção integral, como parques nacionais, e aquelas de uso misto, que abrigam atividade humana;
- Nas reservas de proteção integral, a probabilidade de encontrar espécies grandes e ameaçadas de extinção – como onças-pardas, antas, tamanduás-bandeira, lobos-guará, queixadas e catetos – de foi cinco a dez vezes maior do que nas áreas de uso misto;
- O Cerrado tem apenas 3% de sua extensão abrigados em áreas de proteção integral. Os autores do estudo detectaram que essas áreas são cruciais para a sobrevivência de grandes mamíferos e de seu papel na preservação do bioma.
Ao longo de seis anos, Guilherme Braga Ferreira e outros três pesquisadores fizeram expedições ao Cerrado mineiro para instalar armadilhas fotográficas. Seu objetivo: fotografar lobos-guará, tamanduás-bandeira, onças, antas e outros mamíferos neotropicais que vivem na savana mais biodiversa do mundo. Os dados mostrariam onde esses animais vivem e como é sua sobrevivência perto dos seres humanos.
Ferreira e sua equipe – ecologistas do Instituto Biotrópicos – instalaram no total 517 armadilhas fotográficas em sete das 25 unidades de conservação que formam o Mosaico Sertão Veredas-Peruaçu, conjunto que se espalha por 18 mil quilômetros quadrados no norte de Minas Gerais. Localizada próxima à divisa com a Bahia, trata-se de uma região isolada, com poucas rodovias e baixa densidade humana.
Para efeitos de comparação, o estudo incluiu unidades de proteção integral – entre elas parques nacionais como o das Cavernas do Peruaçu e o Grande Sertão Veredas – e Áreas de Proteção Ambiental (APAs), de uso misto. Nestas, a lei exige que 20% da área de terra sejam preservados, enquanto o restante pode ser usado em diversas atividades de subsistência. O objetivo do estudo era entender como a população de mamíferos sobrevivia nos dois tipos de reserva.
Das cerca de 200 espécies conhecidas de mamíferos do Cerrado, os pesquisadores se concentraram em 21 — aquelas com tamanho suficiente para serem captadas pelas armadilhas fotográficas. As câmeras documentaram esses animais durante uma média de 50 dias por ano, de 2012 a 2017, durante a estação seca, de abril a outubro. Ao todo, as câmeras registraram o que ocorreu em 26.367 dias de pesquisa, cujos resultados foram publicados na revista Biological Conservation.
A descoberta mais importante do estudo é que os mamíferos maiores estavam ausentes nas APAs. Onças-pardas (Puma concolor), antas (Tapirus terrestris), tamanduás-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), lobos-guará (Chrysocyon brachyurus), queixadas (Tayassu pecari) e catetos (Pecari tajacu), todos se mostraram presentes apenas nos parques nacionais e estaduais, mas não nas áreas de uso misto.
Embora as APAs tenham muita vegetação natural e relativamente baixa população, “a probabilidade de encontrar essas espécies grandes e ameaçadas em reservas de proteção integral foi de cinco a dez vezes maior”, diz Ferreira, autor principal do estudo. Apenas uma espécie vulnerável, a raposa-do-campo (Lycalopex vetulus), estava presente em áreas de ocupação humana.
Quase todas as 12 espécies que viviam tanto nos parques quanto nas áreas semidesenvolvidas eram de pequenos animais, com exceção do veado-catingueiro (Mazama gouazoubira). Alguns, incluindo gambás e raposas, são espécies oportunistas que prosperam entre os seres humanos em muitas partes do mundo, aproveitando-se das criações de animais domésticos.
Outros pequenos predadores, como jaguatiricas (Leopardus pardalis) e jaguarundis (Herpailurus yagouaroundi), estavam em boas condições nas APAs por uma razão diferente: conseguiam ocupar nichos que haviam sido de concorrentes maiores — entre eles onças-pintadas e pardas, agora ausentes.
Um bioma desprotegido
Muitas espécies de animais estão em declínio no Cerrado. Nos últimos 40 anos, metade do bioma foi devastado e convertido em fazendas de gado e grandes lavouras destinadas à exportação. “Primeiro eles derrubavam árvores valiosas e depois queimavam o resto para limpar a terra”, diz Mercedes M. C. Bustamante, professora do departamento de Ecologia da Universidade de Brasília. “Foi gado, depois soja, cana-de-açúcar e agora é conversão direta em soja, que é um uso mais intenso da terra.” Os sojicultores aplicam grandes quantidades de agrotóxicos, enquanto a irrigação nas grandes plantações está drenando os aquíferos e os transformando em uma paisagem árida.
Esse desenvolvimento em grande escala fez da perda de habitats a maior ameaça à vida selvagem do Cerrado, e o que resta hoje é uma colcha de retalhos cada vez mais desconectada. Vale lembrar que apenas 3% do Cerrado estão sob proteção integral, enquanto outros 5% se encontram em áreas de uso misto. A fragmentação ameaça desproporcionalmente as espécies maiores, como as documentadas no estudo, que precisam de um espaço considerável para circular.
Existem outras ameaças. O desmatamento, por exemplo, faz com que queixadas e catetos desapareçam. Nenhum indivíduo dessas espécies foi encontrado pelas armadilhas fotográficas instaladas em APAs. Assim como tatus, cutias e outros mamíferos, esses animais também são alvo de caçadores em busca de sua carne. “Sabemos que existe caça ilegal”, diz Ferreira. “Encontramos alguns desses caçadores enquanto fazíamos o nosso trabalho de campo, mas, como não há dados, ninguém sabe a extensão do problema.”
Protegendo o que sobrou
Ainda assim, a nova pesquisa sobre mamíferos tem fortes implicações para as políticas do país, diz Marcus Rowcliffe, cientista conservacionista da Zoological Society of London e coautor do estudo. “Isso sustenta o argumento em defesa das áreas protegidas.”
Ferreira destaca um importante argumento em defesa da proteção integral: como os grandes mamíferos precisam de muito espaço para sobreviver, diz ele, protegê-los conserva toda a teia de vida da região. Ele constata que a perda dessas espécies já está começando a destruir o tecido ecológico geral do bioma. A ausência de cutias e outras espécies que dispersam sementes, por exemplo, está mudando a composição da vegetação nativa. O declínio de queixadas e catetos, que escavam e reviram o solo, por sua vez, resulta na perda do poder adubador dessas espécies.
“O Cerrado armazena muito carbono”, ressalta Ferreira, denominando o bioma como “floresta de cabeça para baixo”. Ele explica que as raízes em geral são pelo menos três vezes maiores que os arbustos e árvores que estão acima do solo. Essas raízes sequestram grandes quantidades de carbono, ao mesmo tempo em que ajudam a repor e reter as águas subterrâneas. Daí o fato de que o Cerrado seja conhecido como “berço das águas”, pois seus rios e aquíferos alimentam oito das doze regiões hidrográficas brasileiras.
Salvar os mamíferos do Cerrado e outros animais selvagens vai exigir um conjunto de ferramentas, diz Ferreira, incluindo monitoramento da população e controle da saúde genética. As estratégias de conservação incluem a criação de parques totalmente protegidos, principalmente no norte do bioma, onde predomina a vegetação original. “A conservação também precisa acontecer fora de áreas ainda intocadas”, ele argumenta, com cientistas e produtores agrícolas colaborando para definir áreas de uso misto mais eficazes, que conectem zonas naturais e proporcionem melhor proteção aos animais.
Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília, destaca a urgência: “Não podemos esperar dez a 20 anos. Se continuarmos como estamos, teremos apenas pequenas ilhas naturais e grandes monoculturas. O Cerrado terá acabado”.