A tese do Marco Temporal envolve interesses ruralistas e vai de encontro aos direitos dos povos originários e a conservação do meio ambiente
O Marco Temporal é uma tese jurídica. De acordo com a tese, os povos indígenas têm o direito apenas à terra que já ocupavam até 05 de outubro de 1988, a data da promulgação da Constituição.
Os debates sobre o Marco Temporal, relacionados às terras indígenas no Brasil, tiveram origem numa ação movida pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). A ação, que teve início em 2009, pedia a reintegração de posse de uma área da Reserva Biológica Estadual do Sassafrás, habitada por povos indígenas Laklãnõ-Xokleng.
O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, em 2023, esse caso como sendo de Repercussão Geral, o que significa que o resultado deste julgamento seria utilizado como uma tese de referência. Isso quer dizer que, em tese, o resultado do julgamento dessa ação pode ser utilizado para padronizar as interpretações da Constituição em casos semelhantes.
Quem é o povo Laklãnõ-Xokleng?
Um artigo, publicado pela Universidade de São Paulo (USP), analisou a cultura e parte da história do povo Laklãnõ-Xokleng e mostrou que, tradicionalmente, os limites de seu território podem ser definidos: “ao Norte, em Paranaguá no Paraná; ao Sul nas proximidades de Porto Alegre e à Noroeste, nas florestas nas proximidades do Rio Iguaçu e Campos de Palmas”. Essa área recobre quase toda a região Sul do País.
Além disso, o estudo também sugere que os Laklãnõ-Xokleng eram nômades, que percorriam seu território de forma sazonal, como forma de subsistência. O contato com os europeus aconteceu tarde, apenas no século 19, em confrontos com colonizadores que invadiam o território indígena, expandindo suas fazendas.
Esses confrontos são conhecidos na história pela sua violência. Os indígenas, chamados de forma pejorativa de “bugres”, que pode significar “pagãos”, “selvagens” ou “inimigo”, eram caçados por “bugreiros”, homens contratados pelos governos imperiais dos estados, para dizimar as comunidades locais.
O povo Laklãnõ-Xokleng vive hoje junto aos povos Guarani e Kaingang na Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, na região do Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina.
A Barragem Norte
Na década de 1970, período de regime militar no Brasil, foi construída a Barragem Norte, dentro da terra indígena. Com o intuito de cessar enchentes no Vale do Itajaí, a construção da Barragem inundou áreas planas, de agricultura e moradia, sem qualquer solicitação de permissão ou aviso. A água que se acumula na barragem, em estado precário de funcionamento, alaga as aldeias dentro das terras indígenas nos períodos de chuva.
Do território tradicional do povo Laklãnõ-Xokleng, sobrou 14 mil hectares de terra a partir do século 20. Dentro dessa área estão a Barragem Norte e sua área inundada. Por isso, em 1998 a Funai, reconhecendo o “confinamento dos indígenas em área reduzida pelo próprio Estado”, demarcou mais 23 mil hectares, completando 37 mil hectares para a terra indígena Ibirama-Laklãnõ.
Já em 2003, o Ministério da Justiça publicou, no Diário Oficial da União, uma portaria declaratória, que é o reconhecimento, por parte do governo federal, de que aquela área faz parte de um território indígena. Faltou apenas a última etapa da demarcação, que é a homologação feita pelo presidente da república.
A questão é que essa área compreende 10% da Reserva Biológica Sassafrás e a Área de Relevante Interesse Ecológico Serra da Abelha. Sendo assim, o estado de Santa Catarina, empresas madeireiras e proprietários de terra particulares questionaram, na justiça, a portaria que declarou aquela área como indígena.
E foi aí, então, que se deu início às discussões do Marco Temporal.
O que é Marco Temporal e qual seu objetivo?
O Marco Temporal é uma tese jurídica. Segundo ela, os povos indígenas têm o direito apenas à terra que já ocupavam até a data da promulgação da Constituição, que ocorreu no dia 05 de outubro de 1988. Isso significa que, caso não possam comprovar que já ocupavam determinadas áreas antes dessa data, os indígenas podem ser expulsos dessas áreas.
O artigo 231, da Constituição brasileira, diz que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Além disso, o Marco Temporal contradiz a Teoria do Indigenato, que é o direito originário dos povos indígenas sobre as terras que ocupam, que é um direito anterior à criação do Estado brasileiro. Caberia então, ao Estado, apenas demarcar e declarar os limites dos territórios.
O Marco Temporal é analisado no Judiciário, pelo STF e no Legislativo, pelos parlamentares do Congresso Nacional, que transformaram a tese em lei.
STF versus Senado
Em setembro de 2023, nove dos onze ministros do STF votaram pela rejeição da tese do Marco Temporal de terras indígenas. Segundo o Supremo, a data da Constituição não pode ser usada como referência para a definição da “ocupação tradicional da terra” pelos povos indígenas.
Na semana seguinte à decisão, o STF publicou a tese de repercussão geral no Recurso Extraordinário 1017365, que deve servir de base para a decisão dos juízes de, pelo menos, 226 outros casos semelhantes, que estavam suspensos, aguardando julgamento.
A tese prevê, entre outros itens, a indenização, por parte do Estado, a pessoas não indígenas que possam ser retiradas de áreas que receberão demarcação. A tese foi construída com a colaboração dos 11 integrantes do Supremo, em setembro de 2023.
No entanto, enquanto o STF publicava a nova tese para demarcação de terras indígenas, o Senado aprovou, no mesmo dia, o Projeto de Lei nº 2903, que busca estabelecer o Marco Temporal. O texto, que já havia sido aprovado pela Câmara dos Deputados (como PL 490) em maio do mesmo ano, foi encaminhado direto para a sanção do presidente da República.
O que diz o Projeto de Lei do Marco Temporal das Terras Indígenas?
O Projeto de Lei nº 2903 (PL 2.903/2023) reconhece as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas como aquelas que, comprovadamente, já eram habitadas de forma “permanente”, no dia da promulgação da Constituição, em 1988. Além disso, vale destacar alguns pontos do texto.
Não serão reconhecidas como sendo indígenas, terras não habitadas pela comunidade até 1988, independente da causa. Também é vetada a ampliação das terras já demarcadas, além de anular todas as demarcações existentes, que não atenderem às condições da nova lei.
O texto também diz que, no caso de alteração de traços culturais da comunidade ou qualquer fator causado pelo tempo, a União pode dar outro destino à área, julgando-se que ela já não é essencial para aquela comunidade. O governo poderia, por exemplo, redistribuir a região em lotes, que seriam incluídos no Programa Nacional de Reforma Agrária.
Também, segundo o projeto de lei, seriam permitidas intervenções e instalações militares, expansão de estradas, exploração de fontes de energia e o resguardo de riquezas (mineração e garimpo) dentro das áreas demarcadas, independente de consulta às comunidades indígenas locais ou ainda, à Funai. Ficaria autorizado, ainda, o contato com povos que vivem isolados, por parte do Estado.
Atividades econômicas, além de contratos entre indígenas e não-indígenas, para a prática de atividades agropecuárias, também seriam permitidas. Além do cultivo de transgênicos, que seria permitido em áreas de Preservação Ambiental.
Veto parcial do PL 2903
Já em outubro de 2023, o presidente da república vetou parcialmente o PL 2903, sancionando alguns artigos e declarou: “Vamos dialogar e seguir trabalhando para que tenhamos, como temos hoje, segurança jurídica e também para termos respeito aos direitos dos povos originários”.
No entanto, em dezembro de 2023 a Câmara dos Deputados e o Senado derrubaram a maioria dos vetos feitos pelo presidente e foi promulgada a Lei 14.701/2023 (antes PL 2903).
No mesmo dia, o Ministério dos Povos Indígenas, em nota oficial, informou que “vai acionar a Advocacia Geral da União (AGU) para ingressar no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma ação Direta de Inconstitucionalidade a fim de garantir que a decisão já tomada pela alta corte seja preservada, assim como os direitos dos povos originários”.
No fim do mês, três partidos políticos entraram com uma ação, pedindo ao STF a validação desta lei. Na sequência, no início de janeiro de 2024, outros partidos políticos, junto à uma organização indígena, entraram com ações distintas, solicitando ao STF a inconstitucionalidade da nova lei.
O impasse permanece.
Como o Marco Temporal prejudica o meio ambiente?
Além de ferir e ameaçar direitos dos povos indígenas, a validação do Marco Temporal pode causar danos ambientais irreversíveis.
Segundo o Relatório Anual de Desmatamento no Brasil, publicado pelo MapBiomas, em 2022 houve um aumento de 22,3% no desmatamento, em relação ao ano anterior. Ao todo, foram 76193 alertas de desmatamento confirmados, que totalizam mais de 2 milhões de hectares de área desmatada.
Mais da metade do desmatamento ocorreu na Amazônia. Juntos, Amazônia e Cerrado, somaram 90,1% de área desmatada.
O relatório ainda destaca que a agropecuária é a maior responsável pelo desmatamento no Brasil, respondendo por 96% das áreas de florestas e vegetação nativa suprimidas. Além disso, Pará, Amazonas e Mato Grosso foram os estados mais afetados pelo desmatamento.
Unidades de Conservação, terras indígenas, comunidades quilombolas e assentamentos rurais também viram suas terras atingidas pelo desmatamento. Juntos somam quase 20% da área total desmatada em 2022.
No entanto, o MapBiomas reforça que apesar do desmatamento ter aumentado, houve uma diminuição dessa prática em terras indígenas. A maior parte dos alertas em terras indígenas é na região amazônica.
Ainda assim, o desmatamento em terras indígenas é o único que diminuiu, entre 2019 e 2022. Isso se dá, segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), por conta da proteção dos povos indígenas.
Marco Temporal pode aumentar desmatamento na Amazônia
O Ipam também analisou os impactos ambientais que o estabelecimento do Marco Temporal pode causar, principalmente no bioma da Amazônia. Os riscos foram calculados, usando como base a taxa máxima de desmatamento, indicada pelo Código Florestal Brasileiro, num cenário conservador.
Para um cenário mais grave, foi considerado o aumento da grilagem e do desmatamento, principalmente em terras indígenas. O estudo apurou que a Amazônia Legal pode perder uma área entre 23 e 55 milhões de hectares de vegetação nativa, e que atividades predatórias na região poderão causar a emissão de 7,6 a 18,7 bilhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera.
Além disso, o desmatamento contribui diretamente para o aumento da temperatura do planeta, e as consequências causadas pelas mudanças climáticas, como ondas extremas de calor e a diminuição das chuvas.
Uma pesquisa, publicada pelo MapBiomas em dezembro de 2023, mapeou 844 milhões de hectares da América do Sul e mostrou que 77% da área de vegetação natural que foi suprimida, se transformou em pastagens.
Outro dado importante mostra que apenas 73,4% da Amazônia está coberta por vegetação, e isso, segundo a ciência, é a taxa limite para que a floresta possa se recuperar e evitar que a área se torne uma savana.
O Marco Temporal é um risco à vida e cultura dos povos originários do Brasil, uma perigosa ameaça à preservação do meio ambiente e um retrocesso na política climática.