Projeto internacional sequencia o DNA de mais de 200 espécies em busca de ferramentas preditivas da propensão humana a doenças
Por Maria Guimarães em Pesquisa Fapesp | Com detalhes do genoma de mais de 800 primatas, representando 233 espécies, pesquisadores de 24 países chegaram a uma variedade de novas conclusões a respeito desse grupo animal que inclui você e eu. Os resultados, que envolvem aspectos de evolução, modo de vida e saúde, estão em oito artigos publicados em uma edição especial da revista Science em 01 de Junho. O objetivo central, que é usar o conhecimento evolutivo como ferramenta médica, se mostrou promissor apesar de ainda incipiente. Enquanto isso, como efeito colateral, aumenta o que se sabe sobre a evolução e a biologia dos macacos.
“Minha maior surpresa foi ver que a diversidade genética não tem relação com o grau de ameaça de extinção da espécie”, relata o primatólogo brasileiro Jean Boubli, da Universidade de Salford, no Reino Unido. Ele é coautor do artigo que abre o especial e coordenou a obtenção de amostras que já integravam acervos de várias instituições brasileiras: as universidades federais de Viçosa (UFV), do Amazonas (Ufam), de Rondônia (Unir) e de Mato Grosso (UFMT), o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o Instituto Mamirauá e a RedeFauna. “Por volta de 30% das amostras usadas no estudo vieram do nosso grupo”, afirma. Mas só uma fração do total de amostras reunidas entrou no artigo da Science. De lá para cá outras centenas de amostras já foram sequenciadas, tornando o banco de dados cada vez mais robusto para análises futuras. Para o pesquisador, a representatividade do estudo seria impossível sem a participação dos brasileiros e das amostras coletadas ao longo de décadas de trabalho de campo e armazenadas em coleções zoológicas.
O sequenciamento foi conduzido pela empresa norte-americana Illumina, na Califórnia, especialista nesse tipo de atividade. O objetivo inicial era comparar seres humanos com seus parentes mais próximos para encontrar pistas sobre doenças. “O ponto central foi perceber que os dados sobre diversidade dos primatas eram a chave para desvendar o genoma humano”, contou a Pesquisa FAPESP, por e-mail, o geneticista médico norte-americano Kyle Farh, vice-presidente de inteligência artificial da Illumina, um dos líderes do projeto. “Sem espécies similares para nos informar, é muito difícil interpretar o genoma humano.” Esse olhar evolutivo é importante porque comparar genes correspondentes em espécies distintas permite descobrir, por exemplo, quais trechos são mais mutáveis, quais mutações tendem a ter efeitos mais drásticos na saúde e quais partes estão mais sujeitas à ação da seleção natural. “Se um gene parece estar associado a uma doença humana, mas funciona muito bem em outros primatas, provavelmente não é ele o responsável”, explica Boubli.
Mas entender os outros primatas também se tornou um objetivo que rendeu frutos. “Chegamos à melhor árvore filogenética de primatas que existe”, afirma Boubli, que detalha que o feito – uma genealogia que permite entender o parentesco entre as diferentes espécies e a cronologia de seu surgimento a partir de ancestrais comuns – se deve em grande parte ao trabalho do evolucionista Robin Beck, também de Salford. “Ele conseguiu incluir muitos fósseis e, com isso, melhorar as estimativas de datação.” O resultado indica, por exemplo, que a separação entre chimpanzés e seres humanos aconteceu entre 9 e 7 milhões de anos atrás, ligeiramente antes do que as estimativas prévias de outros estudos. Houve espécies, como alguns bugios, que não tinham ainda seus genomas sequenciados, e agora encontraram seu lugar na genealogia familiar.
Os resultados também permitem entender como a ecologia e o comportamento dos animais afetam a diversidade genética da espécie. Ela é menor, por exemplo, em animais que têm uma organização reprodutiva na qual um único macho tem filhotes com muitas fêmeas. O padrão de atividade (se são diurnos, noturnos, se passam muitas horas contínuas em atividade ou não, por exemplo) e as condições climáticas às quais são adaptados são alguns dos outros fatores que se mostraram relevantes.
A diversidade genética também cai do sul para o norte. É provável que a riqueza genética do hemisfério Sul seja inflada pela grande diversidade das várias espécies de lêmures, que vivem apenas na ilha de Madagascar. É um achado paradoxal, porque muitas dessas espécies estão ameaçadas de extinção pela ação humana e, no entanto, entendia-se que espécies geneticamente diversas seriam saudáveis. De acordo com Boubli, os dados explicam essa variedade por um histórico de populações muito grandes, algo que não espantaria os fãs dos filmes de animação da série Madagascar. “O declínio populacional é recente do ponto de vista evolutivo, porque populações humanas só se estabeleceram em certas partes de Madagascar há cerca de mil anos.” É diferente para os primatas do Novo Mundo – um exemplo seria o Brasil –, onde a diversidade genética de cada espécie é menor em consequência da vida em grupos e populações menores (uma característica natural desses animais). Mas o estudo detectou uma queda populacional fora do normal em uma espécie centro-americana de bugio, Alouatta palliata, há cerca de 10 mil anos. “Uma hipótese é que tenha sido impactada pelas civilizações pré-colombianas da região, como os maias e os astecas”, sugere o primatólogo.
A estimativa do tamanho populacional ao longo da história de uma espécie pode ajudar a pensar o futuro, segundo Boubli. “Uma espécie que passou por situações climáticas que levaram à redução demográfica, como glaciações ou secas, pode ter mais capacidade de resistir às mudanças climáticas em curso”, estima.
Os artigos da edição especial trouxeram aspectos variados. Um identificou as inovações genéticas na linhagem dos símios, incluindo seres humanos, que permitiram a sua diversificação e adaptação a diferentes ambientes. A evolução da organização social da família dos colobíneos asiáticos, que incluem os lângures indianos, foi tema de um dos trabalhos que mostrou o efeito das glaciações sobre a regulação neuro-hormonal que influencia a propensão à vida em comunidade. Outro detectou que o macaco-cinzento-de-nariz-arrebitado (Rhinopithecus brelichi), da China, tem origem híbrida, a partir da mistura de duas outras espécies.
Medicina de precisão
Como os 809 genomas analisados podem ser úteis para a saúde humana? Um dos estudos publicados na Science, com participação dos brasileiros, discute os desafios de ter dados suficientes para treinar modelos de aprendizado de máquina e relata ter obtido avanços na capacidade de previsão de parâmetros clínicos. Outro artigo mostra o benefício de se detectar variantes genéticas raras para prever a propensão a doenças – no âmbito da chamada medicina de precisão – e no desenvolvimento de alvos farmacológicos. Até agora, o estudo afirma, era mais difícil distinguir as variantes genéticas inócuas daquelas que causam danos, assim como avaliar a magnitude de seus efeitos no organismo. “Os dados dos primatas nos permitiram desenvolver uma rede de aprendizagem profunda [deep learning], treinada a partir da seleção natural”, explica Farh. “Sua arquitetura é parecida com o ChatGPT, mas é a primeira iniciativa do tipo a ser treinada dessa maneira, com enorme potencial para a medicina personalizada.” Ele relata o resultado inesperado de perceber que 97% dos genomas humanos analisados, mesmo de pessoas saudáveis, abrigam variantes patogênicas que podem ter muito impacto em condições clínicas.
“Eles usam conservação filogenética para fazer inferências sobre patogenicidade”, explica o evolucionista Diogo Meyer, da Universidade de São Paulo (USP), que não participou do estudo. Isso significa que quando trechos do DNA se mantêm imutáveis ao longo da evolução, a característica à qual estão relacionados é mais intolerante a mudanças. Quando acontece uma mutação, o risco de causar doenças é grande. Para um projeto como esse encabeçado pela Illumina, a biodiversidade é preciosa para alimentar com dados os algoritmos médicos. “Esse uso economicamente valioso da evolução gera uma parceria inusitada entre evolucionistas e geneticistas clínicos”, diz Meyer.
Segundo Farh, o projeto está no começo. “Com tantas espécies ainda não estudadas, estamos correndo contra o relógio para pesquisá-las antes que sejam extintas.” Jean Boubli ressalta que o estudo tem uma importância grande para a conservação. Nas reuniões da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), que define o grau de ameaça das espécies, as estimativas são feitas com base na experiência dos pesquisadores, muitas vezes em situações de escassez de dados em certas regiões. “Agora ganhamos uma nova ferramenta, genômica, para avaliar a saúde das populações.” Ele pretende expandir esse tipo de entendimento fazendo o sequenciamento de outros tipos de vertebrados brasileiros, em parceria com as geneticistas Maria Rita Passos Bueno e Mayana Zatz, ambas da USP, com financiamento da Illumina.
Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.