Mel, baru e babaçu: estratégias indígenas para salvar a biodiversidade do Cerrado

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Por Elizabeth Oliveira em Mongabay Brasil | O segundo maior bioma do Brasil é um dos mais desmatados: o Cerrado já perdeu 50% da sua vegetação original, sendo pressionado pela expansão agropecuária e por obras de infraestrutura.

O asfaltamento das rodovias BR-242 e MT-322, além da pressão pela retomada da ferrovia Ferrogrão, são três controversos projetos de interesse do agronegócio com impactos previstos em Terras Indígenas (TI) do bioma.

Esta reportagem destaca três projetos em Terras Indígenas, em diferentes estágios de execução, que podem fazer a diferença na luta pela salvaguarda da savana mais biodiversa do mundo e uma das mais ricas em diversidade cultural.

Terra Indígena Nioaque, em Mato Grosso do Sul, tem quatro aldeias distribuídas em 3 mil hectares, onde vivem cerca de 2 mil indígenas Terena. Em uma delas, Água Branca, o projeto Aguamel já provou a viabilidade econômica. Quanto à importância socioambiental “não havia dúvidas”, explica Claudionor do Carmo Miranda, engenheiro agrônomo e presidente da Associação dos Produtores Indígenas da Aldeia Água Branca (Aproab).

Com R$ 80 mil do Projeto Cerrado Resiliente (Ceres), a Aproab comprou equipamentos, instalou 67 colmeias e capacitou 15 produtores indígenas na criação de abelhas. Com pouco mais de um ano de trabalho, a expectativa é de dobrar a produção. “Já produzimos 680 quilos de mel e projetamos chegar a 1.300 quilos em 2023. Ano a ano queremos aumentar a equipe e a produção”, afirma Miranda. O produto é comercializado em feiras na cidade de Nioaque e na própria aldeia. Há expectativa de introduzi-lo também na merenda escolar indígena.

Indígena Terena com mestrado em Desenvolvimento Rural, Miranda destaca que a iniciativa pode fazer a diferença na economia e no fortalecimento da segurança alimentar nessa Terra Indígena, localizada na transição entre os biomas Cerrado e Pantanal.

Chegando à fase final da iniciativa, apoiada pela Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural (Agraer) e pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), a Aproab está em processo de certificação orgânica do mel da Água Branca. Em reunião com a comunidade, em julho, além de apresentar os resultados do Aguamel, Miranda vai discutir um novo projeto.

Ele explica que a primeira etapa foi importante para organizar a produção. Agora, pretende incluir outras três aldeias. “Todas têm espaço para a instalação de apiários”, opina. Além da grande demanda por mel no mercado regional, as aldeias têm a vantagem de não serem cercadas por plantações pulverizadas com agrotóxicos, realidade cada vez mais comum no entorno de Terras Indígenas no Brasil. “No nosso entorno, o que existe é criação de gado”, afirma.

Em parceria com a organização ambientalista Ambiental MS Pantanal, a Aproab pretende construir um viveiro de produção de mudas nativas como aroeira, baru ou cumbaru, sucupira e jatobá-do-cerrado, além de árvores frutíferas como limão, goiaba e acerola, dentre outras consideradas importantes para formar o pasto ou a flora apícola – esse é o ambiente onde as abelhas se alimentam de néctar e pólen. As floradas serão ideais para atraí-las e impulsionar o processo de produção de mel ao mesmo tempo em que contribuirão com a diversidade florística do Cerrado.

Foram recebidas cem mudas iniciais, mas a associação planeja produzir 10 mil, ainda em 2023, além de 15 mil em 2024. “Vamos encher beiras de rios, áreas de várzeas e outros ambientes dessas árvores”, sinaliza.

Colmeias na aldeia Água Branca, do povo Terena, na Terra Indígena Nioaque (MS). Foto: Aproab/divulgação

Castanha de baru, nova alternativa econômica para mulheres Kayapó

Na próxima temporada de colheita do baru, de julho a setembro, mulheres Kayapó da Terra Indígena Capoto Jarina, em Mato Grosso, estarão envolvidas com a produção experimental da castanha torrada desse fruto nativo do Cerrado. Sua polpa é muito apreciada pelas crianças, relata Bruno Américo Carvalho Pereira, engenheiro agrônomo e técnico de Atividades Produtivas do Instituto Raoni.

Os Kayapó conhecem o baru, mas nunca tinham experimentado a sua castanha torrada. “Apresentamos essa novidade, que as crianças comeram e gostaram. As mães viram o interesse dos filhos, provaram e gostaram também”, conta Pereira. A nova perspectiva de geração de renda soma-se à produção de óleo de babaçu, amplamente utilizado pelas mulheres indígenas na culinária, na cicatrização de ferimentos e para passar no corpo e nos cabelos.

Na proposta construída com as mulheres Kayapó, aprovada pelo Projeto Ceres, a ideia é garantir mais autonomia econômica em um contexto de dinâmicas socioeconômicas culturalmente lideradas pelos homens, sobretudo pela afinidade com o português, idioma que a maioria delas não fala. A iniciativa é considerada “uma quebra de paradigma” nessa TI localizada em “uma mancha de Cerrado” de 635 mil hectares, enquanto a maior parte dos territórios do povo Kayapó se insere na Amazônia, entre Pará e Mato Grosso.

Oficina de planejamento de atividades do Projeto Ceres na TI Capoto Jarina, em novembro de 2022. Foto: Takako Metuktire/divulgação

Como parceira comercial, já era cogitada a Central do Cerrado, instituição que trabalha com produtos típicos do bioma, contribuindo para a organização e o aprimoramento técnico das comunidades.  Dessa articulação, foi estabelecida uma consultoria que envolverá um evento, em junho, para explicar às mulheres sobre a importância de conhecer a cadeia produtiva dos alimentos escolhidos para a geração de renda. Em seguida, virão atividades de intercâmbio cultural, fundamentais para deslanchar o trabalho de coleta e beneficiamento das castanhas.

Como não há previsão de aquisição de equipamentos para o beneficiamento pelo projeto, a ideia é que a torrefação das castanhas ocorra na casa de farinha das aldeias. Posteriormente, o Instituto Raoni fará a comercialização, de acordo com o mapeamento realizado pela Central do Cerrado.

Atualmente, 35 mulheres estão participando dessa experiência. A perspectiva é que a Associação Cultural Capoto Jarina apoie a iniciativa para que, futuramente, elas coordenem diretamente as ações. Com execução em 18 meses e término previsto para 2024, o projeto também busca deixar um legado para a juventude indígena.

Quanto às ameaças que cercam a TI Capoto Jarina, Pereira sinaliza: “Temos tido a preocupação com o agronegócio e as tentativas de cooptação dos indígenas para arrendamento de terras”. Ele avalia que grandes riscos à natureza e aos modos de vida também envolvem o interesse do governo estadual pelo asfaltamento da MT-322, rodovia que se articula à proposta de infraestrutura logística da Ferrovia EF-170, a chamada Ferrogrão, que passa rente à divisa do Parque Indígena do Xingu. Esse controverso projeto já foi apontado como prioritário pelo Governo Federal, conforme reportado pela Mongabay.

Lideranças estão se articulando para exigirem consulta prévia às comunidades indígenas no âmbito do processo de licenciamento ambiental, que prevê, além do asfaltamento, a construção de uma ponte, o que tiraria a fonte de renda dos povos indígenas que fazem travessia de balsa no Rio Xingu.

Do babaçu tudo se aproveita; aqui, as cascas do fruto estão em processo de queima para se transformarem em carvão vegetal. Foto: Peter Caton/ISPN

Visibilizar para proteger

“Os povos indígenas têm papel fundamental na conservação da biodiversidade do Cerrado por adotarem um modo de vida que se dá em harmonia com a natureza”, afirma a engenheira florestal Terena Castro, assessora técnica do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), uma das entidades criadoras do Projeto Ceres. Ela defende que, “para que esses povos sejam protegidos, é importante visibilizar a sua existência”.

Castro ressalta que o Cerrado “é casa de diversas etnias indígenas que habitam esse bioma há muitos séculos” e opina que “é preciso também frear o desmatamento do bioma a partir da criação de áreas protegidas, como Terras Indígenas e Unidades de Conservação”.

Apoiando seis iniciativas de povos indígenas do Cerrado, Castro explica que o Projeto Ceres tem impulsionado ações como produção de mel, plantio de alimentos e levantamento do uso de plantas medicinais, além do fortalecimento da cadeia produtiva do babaçu e da estruturação da do baru. Menciona, ainda, propostas de etnoturismo como alternativas de desenvolvimento socioeconômico aliadas à proteção ambiental.Matérias relacionadas

Quanto aos obstáculos para apoio a esse tipo de projeto, a especialista sinaliza: “O principal ainda é a insegurança jurídica, advinda da falta de regularização fundiária desses territórios”. Por isso, considera “urgente que haja reconhecimento e homologação de Terras Indígenas”. E acrescenta que “é preciso que haja orçamento para essas iniciativas.”

Castro defende, ainda, o protagonismo desses povos e lamenta que um dos principais obstáculos aos avanços desejados seja a falta de políticas públicas que aliem ações de proteção dos territórios e de geração de renda, tendo como base “propostas e projetos que sejam do interesse das próprias comunidades indígenas”.

Luciane Moessa, diretora Executiva e Técnica da Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS), concorda que o fortalecimento econômico dos povos indígenas necessita de políticas públicas consistentes,  mas acrescenta o papel de ações da iniciativa privada.“O setor financeiro não pode mais conceder crédito ou fazer investimentos em atividades que prejudicam comunidades indígenas”, defende. “O tema já está claramente incluído na regulação bancária”.

A especialista argumenta que projetos indígenas “podem e devem ser incluídos numa Taxonomia Verde, classificação de atividades econômicas que busca fazer fluir capitais para atividades que trazem benefícios ambientais, sociais e climáticos”. Um estudo lançado pela SIS, em 2022, apresenta recomendações para o Brasil sobre esse tema.

Produtores de mel Kuikuro na aldeia Ipatse, dentro do Parque Indígena do Xingu (MT). Foto: Bob Kuikuro/divulgação

Esperança do povo Kuikuro com a produção de mel

Outra iniciativa indígena apoiada pelo Projeto Ceres no Cerrado é a da produção de mel em Ipatse, aldeia Kuikuro com cerca de 800 moradores dentro do Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso.

Yacagi Kuikuro Mehinaku, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) da região e ex-presidente da Associação Indígena do Xingu, conta que as comunidades aguardam com entusiasmo o final do ano, para a primeira colheita de mel das 80 caixas de colmeias que estão sendo monitoradas. Dessas, 45 foram adquiridas pelo Projeto Ceres e outras 35 tinham sido instaladas anteriormente com apoio do governo estadual. “Com o projeto, foi possível adquirir materiais específicos para estruturar a apicultura na aldeia”, afirma.

Os Kuikuro do Alto Xingu estão seguindo os passos dos Kawaiwete, dos Yudja, dos Kisêdjê e dos Ikpeng, povos do Baixo e do Leste que dominam há mais tempo a criação de abelhas. Foi lá que se fortaleceu a experiência que levou à conquista dPrêmio Equatorial pela Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), em 2017. Até então, 39 aldeias já produziam aproximadamente duas toneladas anuais de mel certificado, vendidas inclusive em grandes redes de supermercado pelo país. Em 2022, foi a vez da Associação Rede de Sementes do Xingu ser uma das vencedoras dessa mesma premiação.

Apicultores Kuikuro preparam caixas para as futuras colmeias na aldeia Ipatse, Terra Indígena do Xingu. Foto: Bob Kuikuro/divulgação

“Floresta de pé dá dinheiro”, observa Yacagi. Ele está prestes a se graduar em Gestão Pública e pretende desenvolver mais projetos para concorrer a editais de apoio ao empreendedorismo indígena. Além do fortalecimento econômico, sua expectativa é que as comunidades possam consumir o mel produzido nas aldeias, onde é grande a preocupação com o alto consumo de alimentos industrializados.

Cercado por plantios de soja e pressionado por obras de infraestrutura, Yacagi afirma que “o território indígena do Xingu é como uma ilha”, onde ainda resistem grandes áreas de natureza e cultura conservadas em meio à devastação dos biomas Cerrado e Amazônia. Ele alerta que a reserva está a cerca de 40 quilômetros da área que deverá ser cortada pela Ferrogrão e a somente 10 quilômetros da  BR-242, que pretende conectar o Centro-Oeste  à Bahia, região de expansão do agronegócio, fortemente afetada pelo desmatamento.

Dentre outros problemas, ele conta que a proximidade dessa estrada tem facilitado a entrada de comida industrializada nas aldeias, prejudicando a saúde indígena. “Queremos desenvolver projetos de produção orgânica, vendendo para as cidades e alimentando as nossas comunidades”, conclui.

Este texto foi originalmente publicado pela Mongabay Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Equipe eCycle

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