O município de Jacareacanga abriga as terras indígenas Munduruku, Kayabi e Sai Cinza, onde vivem mais de 10 mil indígenas de quatro etnias
Resumo
- Prefeitura de Jacareacanga enviou ofício no dia 04 de novembro com pedido de ajuda ao Instituto Evandro Chagas por conta de um “grande surto de malária em terras indígenas”;
- Obtido com exclusividade pela Mongabay/InfoAmazonia, documento aponta que aumento de casos está relacionado à mineração ilegal na região;
- Região sudoeste do Pará é a única no estado a apresentar aumento nos casos de malária entre 2019 e 2020, segundo números da Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sespa).
- Imagens de satélite e dados do Projeto Amazônia Minada comprovam a pressão da mineração em áreas protegidas de Jacareacanga.
Não é apenas a pandemia de Covid-19 que preocupa os moradores de Jacareacanga, no sudoeste do Pará. No dia 4 de novembro, a Secretaria de Saúde do Município enviou um ofício com um pedido de ajuda ao Instituto Evandro Chagas (IEC), órgão de pesquisa de medicina tropical vinculado ao Ministério da Saúde, no qual afirma passar por um “surto muito grande de malária em área especial (nas terras indígenas)”. O documento faz um alerta sobre a grande circulação de garimpeiros e a possibilidade de espalhar ainda mais a doença em áreas urbanas e indígenas.
“Como garimpeiros vivem migrando de um garimpo para outro, a malária está se espalhando para áreas de outros garimpos de terras não indígenas também”, informa a prefeitura no ofício, que em seguida aponta outro fator de preocupação para o sistema de atendimento de saúde local: “Além dos casos novos, há ainda uma grande quantidade de recaídas, sendo causadas por interrupção do tratamento”.
A malária é endêmica na região amazônica, mas dados da Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará (Sespa) mostram que, das 13 centrais regionais de saúde paraenses, Santarém e Altamira são as únicas que apresentaram aumento de casos entre 2019 e 2020. Nas outras áreas houve queda de mais de 50%. Até o dia 10 de novembro deste ano, a regional de Santarém, que engloba o município de Jacareacanga, já tinha registrado 8536 novos casos de malária. Em todo o ano de 2019, foram 8427.
O sudoeste do Pará é rico em ouro secundário, depositado na superfície, então de fácil acesso. Essa característica geológica atrai muitos garimpeiros em busca do próprio eldorado, mesmo que ele esteja em solo indígena. Como o próprio ofício da prefeitura alerta, a pressão da mineração ilegal é um dos principais problemas na localidade. Segundo um estudo feito pelo Greenpeace com dados do sistema Deter, do Inpe, as terras indígenas Munduruku e Sai Cinza, ambas em Jacareacanga, concentram 60% dos alertas de desmatamento por mineração em toda a Amazônia entre janeiro e abril de 2020.
Dados do projeto Amazônia Minada, do InfoAmazonia, que detecta requerimentos minerários em áreas protegidas, algo proibido pela Constituição, mostram que as terras indígenas em Jacareacanga são alvo de 167 requerimentos minerários na Agência Nacional de Mineração (ANM), sendo 95% dos pedidos (159 casos) relacionados à exploração de ouro.
Até o dia 20 de novembro, a Covid-19 já tinha matado 15 indígenas da TI Munduruku, segundo levantamento do Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena. No final de agosto, lideranças Munduruku entregaram uma carta ao Ministério Público Federal para protestar contra o avanço da mineração sobre suas terras mesmo em época de pandemia. O documento alerta que a atividade mineradora só trouxe “violência, prostituição, destruição, poluição, desmatamento, ameaças de morte e divisão”.
A violência citada na carta é a razão pela qual representantes dos Munduruku têm evitado a exposição na própria região ou mesmo a concessão de entrevistas para jornalistas. Sob a condição de terem seus nomes mantidos sob sigilo, conversamos com lideranças indígenas que confirmaram o avanço de casos de malária nas áreas dos rios das Tropas, Cabitutu, Katõ, Karapanatuba e na TI Sai Cinza, todas localizadas na área do município de Jacareacanga e alvo de garimpos ilegais.
Com cinco anos de experiência na TI Munduruku, um médico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão federal ligado ao Ministério da Saúde, relata ter atendido garimpeiros ilegais na região algumas vezes e que isso “sempre representa um risco de transmissão para o povo munduruku”. Ele também destaca que a circulação de garimpeiros na região “aumentou bastante” em 2019. Por razões de segurança, seu nome não será revelado nesta reportagem.
Outro médico, André Siqueira, pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia (INI/Fiocruz), explica que zonas de garimpo ilegal, onde as instalações dos garimpeiros costumam ser precárias e sem a proteção de mosquiteiros ou inseticidas, são focos da doença.
“Não há imunização na malária e, em uma região endêmica, uma única pessoa pode ser contaminada 10 vezes em um curto espaço de tempo, isso é até comum”, diz o pesquisador, que lembra não ser impossível eliminar a malária no Brasil — 99% dos casos no país são registrados na região amazônica —, mas que “ainda estamos longe de conseguir este feito”.
“Nós só vamos controlar a malária com o fortalecimento do sistema de Saúde e Vigilância. O que ocorre hoje é que normalmente são criados postos de testagens nas comunidades ribeirinhas ou regiões com surto, mas logo após a diminuição dos casos estas unidades são fechadas. O ideal seria manter os sistemas funcionando”, diz o infectologista.
Na segunda-feira, 16, pedimos um posicionamento da prefeitura de Jacareacanga e do Governo do Pará, mas não obtivemos retorno até a publicação desta reportagem. A Funai informa em nota que a “Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) possui a competência institucional de coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas”. A Sesai não respondeu aos nossos questionamentos.
O Instituto Evandro Chagas (IEC) confirma em nota que houve um pedido da prefeitura de Jacareacanga para auxílio no combate a um surto de malária. O órgão informa que encaminhou a demanda à Secretaria de Saúde do Pará (Sespa), “objetivando que a mesma direcionasse o planejamento de uma ação conjunta para a investigação do referido surto”, e que se colocou à disposição para atuar em parceria com o órgão estadual. Ainda na nota, o IEC afirma que a Sespa “já tinha conhecimento do surto e vinha atuando na sua contenção”.
Imagens de satélite mostram evolução dos garimpos em 12 meses
Unidades de Conservação na Amazônia também estão entre os alvos da mineração, aponta a pesquisa do Greenpeace. Entre janeiro e abril de 2020, o desmatamento provocado pela mineração nessas áreas protegidas quase dobrou em comparação ao mesmo período do ano anterior: garimpos foram responsáveis pela destruição de 879,8 hectares na Amazônia Legal, o equivalente a 800 campos de futebol, nos primeiros quatro meses do ano.
Uma das unidades de conservação afetadas é o Parque Nacional (Parna) do Rio Novo, localizado entre Itaituba e Jacareacanga. Área classificada como de proteção integral, onde a lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) proíbe qualquer tipo de atividade mineradora, o parque é monitorado pelo Amazônia Minada desde o ano passado e registra 154 requerimentos de mineração em seu território. Novamente, o ouro é o minério mais cobiçado: aparece em 90% dos pedidos de exploração feitos à Agência Nacional de Mineração (ANM) no parque.
A extração de ouro na região envolve maquinário pesado para remoção de terra, o que deixa marcas na floresta visíveis até mesmo por satélite. Imagens cedidas pela Earthrise Media mostram a evolução da destruição provocada pelos garimpos na região do Parna do Rio Novo e da TI Munduruku entre junho de 2019 e setembro de 2020.
No Parna do Rio Novo, a análise das imagens de satélite expõe clarões na floresta dentro da área de um pedido na ANM protocolado pela empresa Mineração Gold do Água Azul, que tem como sócio Arthur Correa, candidato não eleito à uma vaga de vereador pelo PSL no Rio de Janeiro. A área apresenta um garimpo em plena atividade nos últimos meses, mas a empresa só tem um pedido de pesquisa de ouro, que chegou a ser concedido pela agência entre julho de 2016 e julho de 2019.
Permissões de pesquisa são usadas para estudos geológicos de avaliação da viabilidade de exploração mineradora em determinado local. Porém, para extrair o minério, é preciso uma autorização de lavra, algo que a Mineração Gold do Água Azul não tem na área onde imagens de satélite apontam uma expansão de garimpos ilegais.
Mesmo estando na área do requerimento em nome da empresa, não é possível afirmar que a mesma tem ligação com os garimpos ilegais visualizados por satélite. A Mineração Gold do Água Azul está inapta desde dezembro de 2018 na Receita Federal, mas em 2019 o requerimento teve andamento no sistema da agência reguladora. A reportagem tentou contato com a empresa e com Arthur Correa por e-mail e por intermédio da direção do PSL, legenda da sua candidatura recente a vereador no Rio de Janeiro, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Entre Jacareacanga e Itaituba, no sudoeste do Pará, é possível ver por satélite que há um garimpo ilegal em um local onde só há um pedido de pesquisa mineradora na ANM.
Entre as empresas com pedidos para exploração de minérios na região, a gigante Vale aparece com 69 requerimentos de pesquisa de ouro ativos apenas nas terras Munduruku e Kayabi. A multinacional chegou a anunciar em uma reunião com acionistas em abril deste ano que abandonaria todos os seus requerimentos minerários dentro de terras indígenas, mas poucos meses depois voltou atrás e manteve os procedimentos na ANM.
Em imagens de satélite, é possível identificar a destruição provocada por garimpos ilegais dentro da terra indígena Munduruku, em Jacareacanga, entre maio de 2019 e junho de 2020.
Consultamos a Vale sobre os 69 requerimentos ilegais perante a Constituição brasileira e a empresa informou que teria protocolado pedidos de desistência de todos muitos anos atrás, em 1998. No entanto, no sistema da ANM, os processos permanecem ativos e com última movimentação em 2018. Ou seja, as requisições continuam no nome da Vale.
MPF apura voo de garimpeiros da TI Munduruku em avião da FAB
A Constituição proíbe qualquer tipo de atividade mineradora em terras indígenas até que haja uma autorização do Congresso. Em fevereiro, o governo Bolsonaro apresentou o projeto de lei 191/2020, que pretende liberar a exploração em terras indígenas. O projeto está parado no Congresso, mas já teve como resultado imediato 145 requerimentos minerários em TIs da Amazônia em apenas dez meses de 2020, o maior volume de pedidos em 24 anos.
Em 5 de agosto, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, viajou à TI Munduruku em uma operação do Ibama que envolveu queima de retroescavadeiras utilizadas em área de mineração ilegal. Após Salles ouvir reclamações de garimpeiros, a operação foi cancelada pelo Ministério da Defesa no dia seguinte, que justificou em nota que a medida foi “para avaliação de resultados, atendendo à solicitação dos indígenas“.
Na viagem, Salles defendeu abertamente o que chamou de “direito de escolha” dos povos indígenas para garimpar. No dia 6 de agosto, um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) levou garimpeiros, entre eles alguns indígenas da TI Munduruku, até Brasília para uma reunião com o próprio ministro do Meio Ambiente. O MPF em Santarém abriu inquérito para apurar o uso da aeronave, que segundo a FAB estava no local para servir à Operação Verde Brasil 2 — ação deflagrada em maio deste ano para combater crimes ambientais na Amazônia com o uso das Forças Armadas.
No despacho que instaurou investigação por possível ato de improbidade administrativa, o MPF aponta “fortes indícios de desvio de finalidade na utilização de aeronaves da Força Aérea Brasileira, as quais, a princípio, deveriam ser destinadas para efetividade da Operação Verde Brasil 2 no combate à mineração ilegal”. Em nota, a procuradoria ainda reforça que, “pelas leis brasileiras, toda mineração dentro de terras indígenas é ilegal, portanto necessariamente comete crime quem admite ser garimpeiro em terras indígenas”.
Na carta de agosto, onde apontam os prejuízos da atividade mineradora em suas terras, as lideranças Munduruku também ressaltam que os indígenas garimpeiros que estavam na carona da FAB até Brasília “não têm autoridade e nem legitimidade” para se apresentarem como lideranças Munduruku.
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