Áreas desmatadas da Amazônia que se recuperaram durante 30 anos e já abrigam árvores de mais de 20 metros (m) de altura podem ser parecidas com a mata original, mas são menos atraentes para alguns animais do que as matas primárias, que escaparam de grandes interferências humanas. Morcegos que comem insetos vivem em populações menores nas matas secundárias – as que se refizeram naturalmente – e são menos ativos em noites claras, de lua cheia, segundo estudo realizado em áreas do Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF) do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), publicado em junho na revista Animal Conservation.
“Nas matas regeneradas os morcegos encontram menos insetos e menos opções de esconderijo contra predadores, como ocos em árvores antigas e copas com muitos galhos, do que nas matas primárias”, explica a ecóloga Giulliana Appel, do Inpa, principal autora do artigo. Além disso, segundo ela, a floresta regenerada, por não ser tão densa, deixa passar a luz, facilitando a ação de predadores como cobras e corujas.
Os morcegos insetívoros são dotados de um excepcional sentido de ecolocalização, um tipo de sonar que, a partir do eco de seu grito agudo, calcula a distância dos objetos. Com esse aparato, são capazes de capturar insetos em pleno voo e desviar de obstáculos dentro da floresta. Embora representem metade das espécies de morcegos, são menos estudados do que os demais, como os devoradores de frutas e néctar, importantes dispersores de sementes e polinizadores das florestas.
Os insetívoros que vivem em matas próximas a lavouras ajudam a controlar pragas da agricultura, além de abocanhar pernilongos e mosquitos transmissores de doenças como a dengue. “Após um longo dia no esconderijo sem comer, morcegos pequenos, que pesam 10 gramas, são capazes de devorar uma quantidade de insetos equivalente ao seu próprio peso em uma única noite de caçada”, diz o biólogo Paulo Bobrowiec, do Inpa.
Ele orientou Appel em seu doutorado, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que fundamentou o artigo da Animal Conservation. Uma colônia de 20 mamíferos alados pequenos pode ingerir 200 gramas do alimento por dia, o equivalente a 200 mil pernilongos.
“As populações de morcegos podem diminuir ainda mais em locais onde a perda da vegetação nativa é maior”, observa Bobrowiec. No PDBFF, a floresta se regenerou por pelo menos três décadas, protegida de novos desmatamentos. De uma extensa floresta primária contígua migram plantas e animais que ajudam a recuperar as regiões degradadas.
“Fragmentos de mata próximos da lavoura, onde vivem morcegos, são por si sós benéficos, porque os morcegos podem sair e se alimentar dos insetos das lavouras próximas ”, ressalta Bobrowiec.
Os morcegos insetívoros são estudados com gravadores de ultrassom. Como o ultrassom é distinto entre a maioria das espécies, é possível identificá-las e saber onde e quando estão voando. Appel e seus colegas passaram 727 noites em campo, fizeram 8.278 horas de gravação e registraram 190 mil voos de morcegos em 13 áreas de matas primárias, desmatadas ou fragmentadas no PDBFF.
Na mata primária, duas das nove espécies estudadas — Pteronotus alitonus e P. rubiginosus, com cerca de 6 centímetros (cm) de comprimento e 20 gramas (g) de peso — saíram com mais frequência para caçar nas noites de lua cheia, quando os insetos que comem passam mais tempo voando por causa da luz intensa.
“Essas espécies navegam com facilidade na mata fechada, fugindo de predadores, porque têm um sistema de ecolocalização que usa o efeito Doppler”, diz Appel. O recurso, usado em exames de ultrassom, percebe o movimento do alvo com base em alterações da frequência de onda, como acontece com o som de uma sirene que se afasta.
Os morcegos são as únicas espécies que se tornam mais ativas na floresta secundária em noites escuras. “Como há menor cobertura de vegetação na floresta secundária, provavelmente é mais seguro voar com menos luz”, diz ela. “Em noites claras, os morcegos ficam mais expostos aos predadores que usam a visão para caçar, como as corujas.”
Morcegos de algumas espécies são mais sensíveis à degradação ambiental, como Furipterus horrens, com 4 cm de comprimento e 3 g de peso, que desapareceram da mata secundária e dos fragmentos florestais da Amazônia. Apenas uma espécie não sofreu os impactos da transformação da mata: Myotis riparius, com 4 cm de comprimento e 4 g de peso, que manteve a atividade na mata secundária e no fragmento. É uma espécie comum que se adapta a qualquer ambiente, inclusive cidades e áreas agrícolas, onde ajuda a controlar as populações de pernilongos.
Os morcegos não são os únicos a sofrer com a degradação ambiental. No sub-bosque, entre o chão e 15 m de altura, aves de espécies diferentes vivem juntas, alimentam-se e voam em bando. Nas florestas degradadas, esses grupos incluem menos aves e o número de espécies é menor, segundo estudo publicado na revista Biotropica em abril de 2018.
“Quanto mais baixas são as árvores, como nas florestas secundárias, menos aves e espécies foram vistas nos bandos”, observa o ecólogo Karl Mokross, autor principal desse estudo. Como parte de sua pesquisa de doutorado na Universidade Estadual de Louisiana, nos Estados Unidos, ele rastreou as aves com aparelhos de GPS em áreas do PDBFF. O número de espécies que entra e sai dos bandos caiu de 30 em áreas bem preservadas para 3 em áreas muito degradadas e o de pássaros de 60 para menos de 10.
“Vivendo em bandos, as aves se protegem mais facilmente dos predadores”, diz Mokross. Em geral, o líder é o ipecuá (Thamnomanes caesius), com cerca de 15 cm de comprimento, macho de cor cinza e fêmea marrom-olivácea, uma ave vigilante, que pia muito, voa um pouco mais alto do que as demais e mantém o grupo unido.
Na estação chuvosa, entre outubro e abril, os pássaros podem entrar na floresta secundária com mais frequência, em busca de alimento. No entanto, segundo Mokross, na estação seca as áreas regeneradas são mais pobres em alimentos que as florestas primárias. Em consequência, as aves têm de perambular mais para conseguir a mesma quantidade de comida que conseguiriam na mata original.
Em campo, Mokross observou que os pássaros evitam ultrapassar as bordas das matas, onde ficariam mais visíveis a eventuais predadores, e raramente entram em áreas desmatadas, chamadas de capoeiras, demonstrando preferência pelas matas originais.
Nas próximas décadas, a Floresta Nacional de Carajás, uma área preservada no sudoeste do estado do Pará com cerca de 40 mil hectares — quase três cidades de São Paulo —, poderá perder 57% das espécies de morcegos encontradas na região (de um total de 83 espécies), 95% das de abelhas (de um total de 216) e até 70% das de aves (de um total de 501) em razão das mudanças climáticas, de acordo com estudos do Instituto Tecnológico Vale (ITV), Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Pará (UFPA).
Os modelos climáticos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) preveem que a emissão de gases de efeito estufa pode causar um aumento de temperatura de 1,5 a 3,8 graus Celsius (ºC) até 2070, dependendo dos cenários utilizados, que variam dos mais moderados aos mais pessimistas. Com o clima mais seco, a floresta se tornará menos densa e ficará mais vulnerável ao fogo e poderá se transformar em algo parecido com o Cerrado típico, com árvores baixas e esparsas.
“Os animais que provavelmente desaparecerão desempenham papéis ecológicos e econômicos importantes”, alerta a ecóloga Vera Lúcia Imperatriz-Fonseca, da USP e do ITV. Ela participou do estudo sobre abelhas publicado na revista Regional Environmental Change em fevereiro de 2020, sobre aves, que saiu na PLOS ONE em abril de 2019, e sobre morcegos, na Biological Conservation de fevereiro de 2018. Segundo ela, com uma reduzida diversidade de abelhas, aves e morcegos polinizadores, a reprodução das plantas será mais difícil; com menos morcegos e aves que comem frutos, a dispersão de sementes será menos eficiente.
Isso diminuirá ainda mais a capacidade de regeneração da mata enquanto a temperatura aumenta. Por sua vez, a perda de morcegos e aves que comem insetos e ajudam a controlar pragas deverá causar prejuízo na agricultura. Além disso, pode aumentar o número de insetos que transmitem doenças. “As abelhas que polinizam lavouras serão algumas das mais prejudicadas, acentuando ainda mais o prejuízo”, acrescenta Imperatriz-Fonseca.
Devido ao solo ferroso, Carajás é repleta de cavernas que servem de abrigo aos morcegos. Quando voltam ao abrigo depois de se alimentar, eles defecam na caverna, fornecendo alimento para animais invertebrados cavernícolas, os troglóbios, além de peixes e crustáceos adaptados a esse ambiente. “Se os morcegos forem embora de Carajás, essa biodiversidade das cavernas, uma das maiores do mundo, provavelmente desaparecerá”, ressalta a pesquisadora.
“Conforme o aquecimento global avança e a paisagem se transforma, os animais deverão se movimentar na paisagem, buscando locais mais favoráveis à sua sobrevivência”, explica a ecóloga Tereza Cristina Giannini, do ITV e da UFPA, coordenadora dos estudos sobre aves, abelhas e morcegos. Seu trabalho mais recente tratou de corredores ecológicos e foi publicado na Biological Conservation em maio de 2021.
Para permitir esses deslocamentos, os pesquisadores argumentam que é preciso conectar Carajás a outras regiões bem conservadas das redondezas, especialmente a oeste, onde há áreas protegidas por unidades de conservação e terras indígenas. As regiões ao norte apresentam clima estável e poderiam auxiliar na proteção da fauna, mas seria preciso recuperar as áreas que já foram desmatadas. “Os corredores ecológicos que poderiam fazer essa conexão não podem ser estreitos como estradas, mas extensas áreas que conseguem preservar o clima original da floresta”, informa Imperatriz-Fonseca.
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