Vista aérea da Área de Proteção Ambiental das Itans | Foto: Adriana Amâncio/Reprodução Mongabay
Por Adriana Amâncio & Mariana Rosetti – Mongabay | A batalha entre conservação ambiental e interesses econômicos no litoral do Piauí ganhou um novo capítulo. O Ministério Público Federal (MPF) abriu um inquérito civil para investigar a legalidade do Projeto de Lei Ordinária (PLO) 113/2024, que rebaixou a proteção do Monumento Natural das Itans, em Cajueiro da Praia, transformando-o em Área de Proteção Ambiental (APA).
Com a mudança, os 57 hectares de ecossistemas sensíveis, lar de espécies ameaçadas como o peixe-boi-marinho e o mangue-de-botão, serão submetidos a regras menos rigorosas. A APA, por exemplo, elimina a obrigatoriedade de licenciamento ambiental para atividades econômicas e reduz a área protegida de 70% para 30%.
A ausência de estudos de viabilidade e atas de audiências públicas no PLO é um dos principais pontos da investigação do MPF. Isso porque são documentos obrigatórios para a criação de uma unidade de conservação, segundo as leis estadual e nacional do Sistema de Unidades de Conservação (Snuc).
A reportagem da Mongabay acessou o projeto por meio de publicação da Assembleia Legislativa do Piauí (Alepi). O texto, além de incompleto, não possui anexos os documentos exigidos. Mesmo assim, foi promulgado em 31 de janeiro e a APA das Itans agora é lei: a de número 8588.
O PLO passou por sanção tácita do governador Rafael Fonteles (PT), que nem vetou, nem sancionou a lei. Nesse caso, o documento retornou ao Legislativo, que assumiu o poder de promulgação. Solicitamos à assessoria do governador a razão da não resposta. Até o fechamento desta reportagem, ainda não havíamos recebido um posicionamento da assessoria.
Agora extinto, o Monumento Natural das Itans, uma unidade de proteção integral, foi criado em 2022 para preservar uma composição natural extremamente rara e bela, com manguezais, vegetação de restinga e sambaquis.
A região é também berçário do peixe-boi-marinho (Trichechus manatus), razão pela qual o ICMBio montou uma base dedicada à proteção da espécie. Segundo o órgão, em 2016, sessenta deles viviam no local.
O analista ambiental Bruno Souza, responsável pela base do peixe-boi, teme que a recategorização comprometa a sobrevivência do animal. “O monumento regula melhor a circulação de embarcações motorizadas, que causam acidentes, afastam os filhotes das mães e diminuem a oferta de alimento dos peixes-boi”, explica.
Outro animal vulnerável à mudança são as várias espécies de tartarugas-marinhas que vivem na região. A vice-presidente do Instituto Tartarugas do Delta, Werlanne Magalhães, explica que, “apesar de ser uma espécie marinha, a tartaruga busca a área do monumento para se alimentar. Se houver maior impacto ambiental e redução de alimentos, ela será afetada”, observa.
A região costeira de Cajueiro da Praia é habitada por pescadores, que regem o seu modo de vida pela dinâmica do mar. Pescadores locais e de Chaval, no Ceará, realizam suas atividades extrativistas sob uma Autorização de Uso Sustentável, concedida pela Superintendência do Patrimônio da União (SPU).
A área é marcada por um histórico polêmico de processos judiciais e conflitos fundiários, intensificados em 2020, em plena pandemia da Covid-19. Segundo Liliana Souza, coordenadora da ONG Ilha Ativa, na época dois empresários do ramo turístico, “o Fábio Ribeiro de Souza, mais conhecido como Fábio Jupi, e a Vivian Alencar abordaram pescadores de forma violenta, queimando jangadas e derrubando pesqueiras”. Ambos diziam ter comprado terrenos e reivindicavam a posse.
Os crescentes conflitos motivaram Josefa e Pedro (pseudônimos), casal de pescadores, a instalar câmeras de segurança em casa. “A gente tem filho, né? Tem que ficar alerta o tempo todo. Da vez que os capangas vieram, eu fiquei com medo. Eles estavam armados”, conta a mulher.
Para eles, há um marco claro na história da comunidade: antes e depois da chegada dos empresários. Pedro viu sua pesqueira – tenda que abriga canoas – ser cercada por seguranças, dizendo que a área em que ele morou durante 20 anos agora era privada.
Em 2022, o pescador teve a canoa incendiada. Na pesqueira, encontrou um frasco com gasolina, além do casco do barco queimado. “Eu fui à delegacia registrar um boletim de ocorrência. Mas e daí? Se fosse eu que queimasse um bem dela [Vivian], hoje tava trancado.” O prejuízo foi de R$ 8 mil.
A pesca também foi prejudicada com os empreendimentos. “Antes, a gente pescava 2 milhas para fora. Agora, tem que ir 8 ou 10 milhas para encontrar peixe”, conta Pedro. “Tem que gastar mais combustível, pagar mais trabalhadores, comprar mais gelo. Além de pernoitar no mar para que a pesca compense.”
Demétrio Oliveira da Silva é pescador e agricultor, como o pai e o avô. Nascido e criado em Cajueiro da Praia, viu sua comunidade virar do avesso. “Enfrentamos uma luta muito grande nos últimos anos tentando combater a desigualdade social e lutar pela nossa terra, pelo direito de habitar, de morar, de produzir e pescar”, desabafa.
Demétrio diz não ser contra o turismo, somente quando as construções milionárias desconsideram a comunidade e o meio ambiente. “Esse vilarejo era feito somente de pescadores e agricultores. O turismo desordenado começou a chegar e essas pessoas, que se dizem empresários, através da especulação imobiliária, querem expulsar usando a força policial para poder amedrontar a comunidade”.
O pescador acredita que a mudança na classificação ambiental deve facilitar as construções hoteleiras na região. “O monumento ia ter uma área bem pequena que eles iam poder construir. Na APA, eles podem fazer o que quiser. Não tem mais controle, não tem mais limite”, desabafa.
O ICMBio compartilha preocupações semelhantes às de Demétrio. O deputado Henrique Pires justificou a conversão do monumento natural em APA com argumentos como aumento do turismo e proteção de longos territórios. No entanto, pareceres técnicos do ICMBio e da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado do Piauí (SEMARH) contestam.
No PLO, o deputado afirma que toda a área abrangida pelo Itans ficou “sem possibilidade de uso sustentável pelo particular”, e que isso “fere o direito de propriedade e de exploração econômica sustentável” de uma “grande extensão de área do nosso litoral”.
O ICMBio, em Nota Técnica de 2024, reforça que o monumento natural “visa ressaltar os atributos naturais, paisagísticos e culturais da região e, ao mesmo tempo, permitir a realização de atividades voltadas para o desenvolvimento do ecoturismo”. Além de valorizar o ambiente, o tornará “mais atrativo para aqueles que realmente têm apreço por contemplar a natureza”.
O instituto afirma, ainda, que a recategorização “pretendida pelo deputado parece ter o objetivo de autorizar a supressão de mangue na região, o que não seria admitido nem mesmo pelo Código Florestal”, que categoriza manguezais como Áreas de Proteção Permanentes (APPs).
Outro ponto contestado pelo órgão é quanto à extensão territorial da proteção. O ICMBio diz que o deputado alega “ser despropocional a criação da unidade de conservação por abranger 56 hectares da região costeira do estado, que possui um total de 66 km de faixa litorânea”, mas rebate argumentando que “embora possua 56 hectares, [o monumento] ocupa apenas 3 km de praia”, ou seja, “menos de 5% do total da região costeira do estado, sendo justamente uma das únicas porções onde a vegetação de mangue ainda sobrevive”.
Diante dessas contradições, o MPF abriu o procedimento preparatório que investiga a recategorização – que, sem os devidos estudos técnicos e audiências públicas, pode configurar violação da legislação ambiental.
O MPF informou à Mongabay que realizou diligências direcionadas “à Assembleia Legislativa do Estado, ao governador do estado, à Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado e à Superintendência do Patrimônio da União no Estado do Piauí – ainda pendentes de respostas.”
Após a fase das diligências, o inquérito poderá resultar em uma Ação Civil Pública ou ser arquivado.
Durante os estudos, o ICMBio apontou que a criação do Monumento Natural das Itans foi essencial para frear a expansão desordenada de Cajueiro da Praia. Comparando mapas de 2022 e 2024, identificaram-se oito pontos críticos onde a degradação ambiental avançou nos últimos dois anos. Destes, cinco sofreram severas intervenções, sendo que apenas um – Ponta do Socó – está dentro do monumento.
É justamente nessa região que está o Socó Beach Resort, negócio de um dos empresários citados por Liliana, o Fábio Jupi. O empresário é réu em uma Ação Civil Pública movida pelo MPF e pelo Ministério Público Estadual do Piauí, acusado de invasão de terras públicas, degradação ambiental e construções irregulares na Ponta do Socó e na Praia do Itan.
A Justiça determinou sua desocupação da área e suspensão imediata das obras, mas Jupi seguiu com desmatamento, cercou trilhas públicas e ampliou o resort sem licenciamento ambiental, mostram os documentos.
Laudos do ICMBio, Polícia Federal e SEMARH confirmaram que ele seguiu construindo, adicionando piscina, prédio de três andares e áreas de lazer privadas. O MPF apontou descumprimento reincidente das decisões judiciais.
Em resposta, a Justiça aumentou as multas, que já somam R$ 2 milhões, e ordenou o embargo total da área. E apontou que, caso Jupi continue desrespeitando as ordens, poderá sofrer novas multas e sanções criminais. A tramitação, agora, é na Justiça Federal.
Tentamos marcar, por duas vezes, entrevista com o deputado Henrique, autor da lei, mas não fomos atendidos. Também tentamos contato com Jupi, por meio de diferentes telefones e também pelo e-mail do resort, mas não obtivemos resposta.
Este texto foi originalmente publicado pela Mongabay, de acordo com a licença CC BY-SA 4.0. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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