Por meio de entrevistas, pesquisa analisa os desafios para a ascensão profissional e identifica possíveis soluções para mais equidade de gênero
Por Vanessa Vieira – Secom UnB | Conciliação com o trabalho de cuidado e maternidade; falta de credibilidade e estereótipos machistas; assédio sexual e moral. Os entraves são muitos para mulheres que desejam ascender profissionalmente, como aponta o estudo “Mulheres em cargo de liderança na burocracia federal: reconhecendo desafios e identificando caminhos para a igualdade”.
Assinada por Michelle Fernandez, Ananda Marques e Marcela Garcia Corrêa, a nota técnica sinaliza para uma sub-representação feminina nos cargos de alto e médio escalão do poder executivo federal e uma remanescente desigualdade salarial entre homens e mulheres no serviço público.
Dados do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) contabilizaram 45,2% de mulheres e 54,8% de homens compondo a força de trabalho na Administração Pública Federal em 2023. Apesar disso, o estudo indica que, no mesmo ano, as mulheres ocuparam 38% dos postos de alta liderança e 43% do médio escalão – o que já representa um avanço em relação a 2022, quando elas ocupavam apenas 22% da alta liderança.
Representatividade
A coordenadora da pesquisa Michelle Fernandez, docente do Instituto de Ciência Política (IPOL/UnB) e professora colaboradora na Escola Nacional de Administração Pública (Enap), explica que a representatividade importa no sentido de que as pessoas se vejam representadas nas altas esferas, e também para que os problemas públicos sejam resolvidos da melhor maneira possível para todos da sociedade.

“Quando não temos minorias políticas em espaços de comando, os temas que impactam a vida dessas minorias ou não são considerados ou são considerados com enquadramento diferente daquele que seria interessante a elas. Isso cria um déficit de direitos. Então, se temos sub-representação de mulheres nos cargos da alta liderança, muito possivelmente teremos soluções para os problemas públicos que não serão pensadas dentro da realidade do que aflige as mulheres. Isso vale para outras minorias, como pessoas negras”, detalha Michelle Fernandez.
Ela explica que há dois gargalos na presença de mulheres na burocracia federal: o acesso e a ascensão. “O gargalo de acesso existe principalmente nas carreiras com melhor remuneração, onde há presença majoritária de homens. Isso tem a ver com a estrutura social, já que, devido às demandas do trabalho de cuidado e de maternidade, as mulheres têm menos tempo disponível para se preparar para essas carreiras.”
Sobre a ascensão, além dos aspectos técnicos, pesam outras questões, com as de gênero e raça. Ela menciona que, para além do ambiente burocrático, na esfera dos partidos políticos, os cargos de liderança são parte das negociações de repartição do poder e que “se não temos mulheres nas estruturas dos partidos, elas ficarão fora também desses espaços”.
A sub-representação feminina cresce sob o recorte racial: apesar de pessoas pretas e pardas serem maioria no serviço público brasileiro, em 2024 apenas 15% dos cargos de média e alta lideranças do governo federal foram ocupados por mulheres negras, regista o estudo.
“Uma mulher negra vive o que chamamos de dupla opressão: além das questões do sexismo tem o racismo. Essa ausência de mulheres negras nos altos postos aponta para as desigualdades que existem e dificultam o acesso e a ascensão. E os efeitos dessas desigualdades, e do quanto elas sofrem para estar nessas posições, são devastadores na vida das pessoas”, afirma Ananda Marques, cientista social e doutoranda em Ciência Política pela UnB.
“Mulheres são adestradas desde muitos jovens a mostrarem sempre mais capacidade, mais habilidade, mais resiliência e mais dedicação para alcançar resultados que homens não têm o mesmo nível de [exigência] para obter. E com isso as mulheres se acostumam, em detrimento às vezes até da própria saúde, a dar mais de si em qualquer posição (…) Eu acho uma pena que a gente só deixe mulheres muito, muito boas chegarem [nessas posições] e mesmo assim cobre delas em níveis pouco razoáveis quando essa cobrança não existe para seus pares homens.” – Relato de entrevistada.
A pesquisa
Com o objetivo de mapear os desafios e as possibilidades para ascensão a cargos de liderança na burocracia federal, o estudo teve uma abordagem qualitativa, com entrevista a 70 mulheres que ocupam ou já ocuparam estes postos.
Tudo começou com 282 mulheres, que participaram de uma etapa anterior à pesquisa respondendo ao questionário Mulheres na burocracia federal. Desta amostra foram selecionadas as 70 participantes, considerando quatro critérios: disponibilidade; acessibilidade; representatividade do perfil geral de mulheres em cargos de liderança; e diversidade de carreiras, órgãos públicos, idade, raça etc.
As entrevistas utilizaram um roteiro semiestruturado, construído a partir da revisão de literatura sobre mulheres na liderança e desigualdades de gênero no setor público, e incluindo os seguintes aspectos: trajetórias; fatores e estratégias de ascensão na carreira; desafios para ascender a cargos; diferenças e similaridades entre experiências; e perspectiva de futuro. A realização das entrevistas e a coleta dos dados teve contribuição das estudantes do IPOL Paula Ribeiro e Ruhana França.
O perfil das entrevistadas foi de maioria com 41 a 50 anos (58,6%); branca (67,1%); mãe (82,9%) de 1 ou 2 filhos (70%); com especialização (31,4%), mestrado (42,9%) ou doutorado (18,6%); e renda acima de 10 salários mínimos (74,3%). Apenas 31,5% são mulheres negras. Além disso, 62,9% são casadas, 20% divorciadas, 15,7% são solteiras e 1,4% viúva.
“Vemos que a pesquisa foi bem-sucedida em retratar um perfil muito próximo da realidade do universo da burocracia federal. Essa sub-representação de mulheres negras é confirmada também quando olhamos para cargos de ministra, diretoras e outras lideranças na administração pública. A metodologia mostra o perfil e diz de onde essas mulheres falam e de como esses marcadores sociais e diferenças as atravessam”, contextualiza a pesquisadora Marcela Corrêa, mestre em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“Ser uma mulher jovem e preta. Se a gente é assertiva, como eu sou uma pessoa assertiva, eu sou tida como raivosa, eu sou tida como estressada. Isso é muito dolorido. Hoje eu entendo isso, vejo isso com mais clareza, mas, antes, eu não via tanto assim. Eu achava que eu era aquilo mesmo. Só que eu tenho uma consciência de classe também, e de gênero e de raça.” – Relato de entrevistada.
Achados
Os resultados da pesquisa confirmam as barreiras apontadas pela literatura para ascensão profissional de mulheres. O destaque foi para a questão de conciliar as exigências de horários e responsabilidades dos cargos de liderança com as demandas do trabalho de cuidado e maternidade social e culturalmente atribuídos à figura feminina, havendo mais de 120 menções das entrevistadas a esse tópico.
Também foram mapeados obstáculos como cobranças excessivas atreladas à ideia de que a mulher não pode errar; falta de credibilidade na figura feminina e reprodução de estereótipos por parte de gestores homens; estrutura machista que privilegia a indicação de homens aos cargos de liderança; assédios moral e sexual; impacto do racismo sobre a experiência de mulheres negras na liderança, entre outros.

“Essas estruturas de desigualdade resultam em uma vivência muita dura, com prejuízos de diversas ordens. Qual o custo mental, físico e psicológico para as mulheres estarem nesses espaços? Elas sofrem muito assédio, são sempre colocadas em prova sobre o que estão fazendo ali, são muito mais exigidas que os homens para estar na mesma posição e receber o mesmo salário”, detalha Marcela Corrêa.
Tais obstáculos configuram o chamado “teto de vidro”, expressão cunhada nos anos 1970, nos Estados Unidos, em referência ao fato de que independentemente das qualificações de uma mulher, ela demora muito mais tempo para ascender a cargos de liderança em comparação aos colegas homens. Ademais, existe um ponto na trajetória profissional no qual as mulheres parecem não conseguir avançar – e são poucas aquelas que o ultrapassam.

“A complexidade das relações na liderança é reflexo das relações de gênero e racismo no Brasil. E nesses espaços em que o poder e a tomada de decisão são o grande produto que está posto, o machismo, o sexismo e outras micro violências mantêm as mulheres em um cotidiano muito violento. Então, muitas nem chegam perto de estilhaçar esse teto de vidro. É o que acontece para mulheres negras”, completa Marcela Corrêa.
Contribuições
A partir das conclusões obtidas, a pesquisa oferece insumos para tomada de decisão pública e formulação de políticas que favoreçam uma ocupação mais igualitária e diversa nos cargos de alto escalão. Para isso, o estudo é concluído com dez recomendações de ações institucionais a serem priorizadas pelo governo federal.
“É preciso promover ambientes de trabalho que viabilizem a presença de mulheres em espaço de poder, e pensar esses espaços de uma nova perspectiva, que não seja a perspectiva masculinizada. Essas são duas questões centrais para qualquer mudança”, avalia a docente da UnB Michelle Fernandez.
As recomendações formuladas tiveram como base a devolutiva das próprias entrevistadas sobre caminhos para promover mais equidade na ocupação dos postos de liderança da administração pública. Além disso, foi realizado um estudo de benchmarketing que levou em consideração políticas públicas de outros países com maior representatividade feminina nesses espaços de poder.
“A questão da paridade pode ser resolvida com uma cota de acesso, mas é preciso outras medidas para resolver a questão do ambiente de trabalho. Envolve um olhar mais holístico, com políticas públicas que apoiem o trabalho de cuidado realizado por essas mulheres, jornadas mais flexíveis que olhem também para a mulher na maternidade, espaços de treinamento e capacitação para garantir não apenas o acesso das mulheres, mas também para que elas estejam nesses espaços com mais segurança e qualidade dentro dos desafios que são postos”, menciona Marcela Corrêa.
Ananda Marques destaca que só é possível mudar a dimensão qualitativa dos ambientes de trabalho por meio de “uma postura ativa das instituições na promoção de uma nova cultura institucional, mais saudável não apenas para as mulheres, mas para pessoas com deficiência, e todas as demais condições, de modo que o trabalho seja pensado para incluir a diversidade de pessoas”.
Ações recomendadas para fortalecer a liderança feminina no governo federal:
- Formulação e implementação de uma política afirmativa para a garantia de paridades de gênero e raça nos cargos comissionados executivos (CCE) e nas funções comissionadas executivas (FCE).
- Construção e publicização de um observatório de dados com indicadores sobre a ocupação de cargos na liderança, a partir de recortes de gênero e raça.
- Ampliação da oferta de capacitação e treinamento específico para líderes no setor público, com destaque para a oferta de cursos sobre liderança feminina.
- Institucionalização e fortalecimento de iniciativas de mentoria entre mulheres na liderança.
- Criação de cursos e jornadas de formação voltadas para letramento de gênero e raça para todo o quadro de funcionários e funcionárias públicas, com especial atenção a módulos para aqueles(as) que ocupam cargos de liderança.
- Fortalecimento de espaços de redes e encontros entre mulheres líderes.
- Implementação da política nacional de enfrentamento do assédio no serviço público.
- Formulação e implementação de programas transversais de apoio ao trabalho de cuidado (como creche, centros de amamentação, incentivos etc.).
- Institucionalização de diretrizes de flexibilização da jornada de trabalho (com proposição de modelos híbridos) a mulheres mães, gestantes ou lactantes.
- Expansão da licença-maternidade e da licença-paternidade, além da garantia de maior equidade entre os dias de afastamento tanto para o homem como para a mulher.
Este texto foi originalmente publicado pela Secom UnB, de acordo com a licença CC BY-SA 4.0. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.