Na hora de selecionar o que colocar no prato, brasileiros valorizam custo e apelo sensorial bem mais do que cuidados com alimentação saudável e nutritiva

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Por Marcos do Amaral Jorge em Jornal da Unesp | “A cozinha é um pouco como o cinema: é a emoção que conta”, diz a francesa Anne-Sophie Pic, a única chef de cozinha da França cujo restaurante, a Maison Pic, mereceu três estrelas na célebre avaliação do guia gastronômico Michelin. Talvez isso seja verdade para o diminuto universo dos frequentadores de restaurantes de altíssimo nível. Mas, o que as pesquisas na área de nutrição feitas com um universo mais amplo têm revelado nas últimas décadas é que nós tendemos a avaliar diversos fatores na hora de decidir o que vamos colocar no prato naquele dia. Um levantamento recente e pioneiro, conduzido por um pesquisador da Unesp, procurou enxergar quais podem ser os fatores mais influentes nas escolhas alimentares feitas pelos brasileiros.

O levantamento foi conduzido antes da pandemia de Covid-19 por meio de um questionário aplicado presencialmente a 1.480 adultos intitulado Food Choice Questionnaire (FQC). Os resultados foram publicados no Journal of Sensory Studies, em um artigo intitulado What are the motives underlying Brazilians’ food choices? An analysis of the Food Choice Questionnaire and its relationship with different sample characteristics.

O FQC é um instrumento tradicional para este tipo de avaliação lá fora, mas ainda pouco utilizado por aqui. O questionário convida os participantes a comentar a importância que dão a diferentes versões da frase “Para mim é importante que o alimento que eu coma no dia a dia…”, conforme diversas opções possíveis de conclusão (“me ajude a relaxar”, “seja nutritivo”, “não seja caro”, etc.).

Entre os fatores propostos pelos conjuntos de sentenças estavam o apelo sensorial do alimento, o preço da sua aquisição, a preocupação com os aspectos éticos da sua preparação e do seu consumo, o possível impacto sobre a saúde de quem o consome, o humor da pessoa na hora em que seleciona o alimento, a conveniência (no sentido de racionalização dos esforços) de optar por ingeri-lo em determinadas circunstâncias, o quanto aquela refeição pode ser considerada como natural ou artificial, o impacto sobre controle de peso e a familiaridade do indivíduo com aquela iguaria. As opções de resposta foram apresentadas em uma escala do tipo likert, variando de 1 a 4 pontos, sendo 1 (nada importante), 2 (um pouco importante), 3 (moderadamente importante) e 4 (muito importante). A soma das pontuações formou o escore final de cada fator.

O resultado do levantamento apontou que o apelo sensorial e o preço são, respectivamente, o primeiro e segundo principais motivos que pesam no momento da escolha dos alimentos. Em seguida, destacam-se a saúde e a conveniência, que pode ser entendida como a facilidade que a pessoa encontra para preparar aquele alimento. O humor no momento da compra e o fato de o alimento ter um conteúdo natural figuraram na quinta e sexta posições, respectivamente. Por fim, os itens controle de peso, a familiaridade com o alimento e  preocupação ética ocuparam as três últimas posições [veja abaixo].

Lista dos fatores avaliados pelos entrevistados para selecionar sua alimentação. Traços verticais representam o intervalo de confiança de cada fator.

Autor principal do artigo, o nutricionista Wanderson da Silva afirma que a maior parte dos resultados está em linha com o que é observado em outros países: o quesito apelo sensorial ocupou o topo da lista dos fatores mais influentes. “Alimentos com nutrientes como gordura e carboidratos são muito valorizados porque, para o nosso paladar, são percebidos como fontes de energia. Naturalmente, acabamos buscando mais alimentos com essas características”, explica.

Silva aponta o item conveniência, que também esteve entre as maiores pontuações e pode estar relacionado ao consumo de alimentos ultraprocessados, uma vez que esses produtos na maioria das vezes são comprados prontos para comer ou demandam um preparo simples. Embora práticos, os ultraprocessados costumam ser apontados como vilôes pelos nutricionistas por apresentarem alto teor de gorduras, açúcares e sódio, o que está associado ao desenvolvimento da obesidade e de doenças cardiovasculares.

“Esse item aponta uma relação com a facilidade da preparação. O mundo contemporâneo valoriza muito a praticidade. Nessa perspectiva, a conveniência pode ser vista como negativa”, aponta o pesquisador, que sugere, como forma de evitar o consumo desse perfil de alimento, que as pessoas deixem os produtos saudáveis já preparados na geladeira, como frutas já cortadas e potes prontos de salada.

Os resultados apontam ainda que, de acordo com os resultados dos questionários, a Conveniência apareceu como um motivo mais forte principalmente entre os mais jovens. “O que é muito normal, especialmente se a gente estiver falando de universitários, que muitas vezes não moram com os pais, comem o que é mais barato e conveniente”, afirma.

Diferenças entre homens e mulheres

Outro resultado esperado, e que repete o que foi observado em outros países em que o questionário foi aplicado, é a importância do preço no momento da escolha. Isso é mais forte nos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. O mesmo vale para o dado de que as mulheres dão mais importância para o controle de peso na hora de escolher os alimentos. Ao mesmo tempo, elas também consideram mais o humor no momento da escolha, quando comparado aos homens. “Eu não diria que as questões do Humor afetam mais as mulheres, mas elas tendem a externalizar mais isso que os homens. Por essa característica, é mais provável que elas usem a comida para lidar com o humor, o que foi visto em outros trabalhos observados no levantamento da literatura”, afirma. Vale mencionar que no perfil dos respondentes houve um predomínio de mulheres (aproximadamente 70%), jovens entre 18 e 30 anos (82%) e indivíduos de renda média familiar maior ou igual a R$ 8 mil (80,5%).

Chama a atenção o fato de que o aspecto ligado às questões éticas associadas à produção ou ao consumo de um alimento, designado como fator de compromisso ético, tenha sido relegado ao último lugar da lista. Em especial, em um momento em que consumidores cada vez mais criticam e demandam posicionamento políticos das marcas. Silva explica que o FQC foi elaborado em 1995 e as perguntas relacionadas com esse fator envolvem temáticas sobre o país de origem do produto e a forma como ele é embalado. Ainda que tenham a sua importância, explica o autor, as questões estão desatualizadas do debate ético relacionado à produção de alimento dos dias de hoje. “Essa preocupação ética é muito generalista e voltada para uma questão política. Existem hoje outras questões contemporâneas que poderiam ser endossadas. Se as perguntas fossem mais atualizadas, não acho que este fator seria listado por último”, pondera.

Imagem corporal também influencia

Ao longo de sua trajetória acadêmica, Silva direcionou suas investigações principalmente para compreender a formação da imagem corporal dos indivíduos, inclusive contemplando temas como os comportamentos e as escolhas alimentares associadas a esta temática, contando com uma bolsa de pós-doutorado da Fapesp para a pesquisa.

Essa abordagem, explica Silva, dialoga com a ideia de constructos psicológicos, conceitos que, embora abstratos, permeiam a nossa vida cotidiana, como o termo felicidade ou amor. “A imagem corporal é uma construção psicológica para a gente entender a representação mental que o indivíduo faz do próprio corpo. Da mesma forma, o comportamento alimentar também é uma construção alimentar muito ampla”, explica.

Esse comportamento alimentar envolve aspectos afetivos, ou seja, nossos sentimentos em relação aos alimentos. Mas também o aspecto cognitivo, que é o processamento mental que fazemos para tomar nossas decisões. A ação de optar por este ou aquele alimento acaba sendo uma junção desses dois aspectos.

“Mesmo uma pessoa com pouca condição econômica que compre alimentos mais baratos pode optar por um produto que tenha alto teor de açúcar para experimentar um maior conforto e lidar com o seu estado de humor”, exemplifica. “Por mais que o motivo da escolha esteja relacionado à questão socioeconômica, o comportamento, que é posterior à escolha, vai estar relacionado a outros fatores. Neste caso, o humor.”

Silva explica que cada vez mais o componente emocional influencia nas escolhas alimentares das pessoas, muitas vezes orientando decisões que não contemplam alimentos saudáveis. “Muitas pessoas escolhem os alimentos como uma forma de enfrentamento dos fatos que acontecem na sua vida. Se me sinto muito estressado, acho que posso comer uma fritura com Coca-Cola para me sentir melhor. Essa é uma situação que merece bastante atenção”, diz. Mas ressalte-se que nem sempre essas escolhas estão relacionadas a afetividades negativas, como o estresse ou a ansiedade. “As escolhas também podem ser feitas em momentos de alegria. É bom lembrar que em nossa cultura as celebrações também envolvem comida muitas vezes.”

Nas últimas décadas, houve uma maior diversificação na oferta de produtos alimentícios disponíveis ao consumidor. Não raro, em um único supermercado, encontramos alimentos de várias faixas de preço, diferentes perfis nutricionais e de diversas origens. “Muitas vezes, essa variedade na oferta também colabora para que a escolha do alimento se torne uma forma de enfrentamento da realidade”, avalia.

Quem faz dieta pensa bem diferente

Quando se seleciona, na amostra dos questionários coletados, os indivíduos que declaram que fizeram ou fazem dieta para gerar algum tipo de mudança no corpo, as respostas mostram diferenças significativas em relação ao público mais geral que participou do levantamento. “Quando analisamos essa variável da dieta com objetivo de perda de peso, pudemos constatar que os indivíduos que fazem dieta frequentemente dão muita importância para os fatores saúde, humor e Conveniência no momento de suas escolhas alimentares. Por outro lado, estas pessoas dão pouca importância para o apelo sensorial”, diz Silva, que é colaborador do Programa de Pós-Graduação em Alimentos, Nutrição e Engenharia de Alimentos da Unesp.

“O que esse recorte indica é que existe uma ideia de que o indivíduo que faz dieta não pode gostar do alimento. Porque, se ele gostar, esse alimento vai atrapalhar na perda de peso. Esse pensamento é mais comum do que parece, e coloca a dieta como algo sofrido, especialmente as dietas restritivas”, diz.

Como nutricionista, Silva se coloca contra a prática de regimes restritivos. Ele argumenta que existem várias perspectivas teóricas mostrando que esses dietas  que propõem a exclusão de determinados alimentos do cardápio fazem mais mal do que bem. Na maioria das vezes, essas dietas são feitas sem o devido acompanhamento profissional, o que pode comprometer o acesso a determinados nutrientes importantes para o organismo. “Também é comum que as pessoas não consigam lidar bem com essas restrições e, para conseguir manter a dieta, acabam se inibindo em muitos aspectos da vida cotidiana, como deixar de ir a festas ou não comer fora de casa. Isso afeta muito a rotina de vida do indivíduo, porque deixa de viver experiências que são importantes”, diz.

Alternativa às dietas restritivas

A alternativa às dietas restritivas passa por uma mudança no comportamento alimentar, contemplando uma alimentação adequada e saudável, mas que inclua um apelo à palatabilidade que inclua o prazer à hora das refeições. Essa tarefa não é simples, em especial no contexto da vida urbana contemporânea, em que as refeições são realizadas fora de casa, gasta-se muito tempo em deslocamentos e o preço é um dos fatores determinantes para as escolhas alimentares. Para ajudar a encontrar caminhos para uma vida saudável, o Ministério da Saúde editou em 2006 o Guia Alimentar da População Brasileira, que ganhou uma segunda edição em 2014.  A obra apresenta um conjunto de informações sobre alimentação com o objetivo de promover a saúde, e é voltado tanto para o cidadão comum, como para profissionais que trabalham na promoção da saúde, além de servir como referência para elaboração de políticas públicas. “O guia pode ajudar neste sentido, trazendo bastante ideias de como alimentos simples podem ser preparados, valorizando rituais de sentar à mesa ou sugerindo certas preparações que vão trazer vontade de comer o alimento”, diz.

Wanderson entende que os resultados que apontam o preço e o apelo sensorial como principais motivos que influenciam na escolha dos alimentos mostram que por mais que os profissionais da saúde estimulem as pessoas a terem uma alimentação adequada e saudável, a palatabilidade dos alimentos continua muito valorizada. Neste sentido, é fundamental uma reflexão sobre como trabalhar esse aspecto para estimular uma alimentação de melhor qualidade, considerando o estilo de vida do indivíduo.

O pesquisador menciona, por exemplo, a dificuldade em estabelecer uma alimentação saudável no cotidiano de uma pessoa que gasta horas em deslocamentos e faz as principais refeições fora de casa. Somam-se a isso, problemas sociais que se agravaram no país nos últimos anos e reforçam a relevância do fator preço nas escolhas.

“Este levantamento foi feito antes da pandemia, quando o país tinha pouco menos de 10 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar por não terem condição de acessar os alimentos por fatores financeiros. Após a pandemia, esse número foi para cerca de 30 milhões de pessoas. Isso significa que o fator preço se tornou ainda mais importante para os brasileiros no momento de escolher os alimentos”, afirma.


Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da Unesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Carolina Hisatomi

Graduanda em Gestão Ambiental pela Universidade de São Paulo e protetora de abelhas nas horas vagas.

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