Moradores alugam terreno para produzir alimentos totalmente livres de agrotóxicos no coração da maior metrópole do País
“É inacreditável, estamos em uma horta desse tamanho colhendo nossa cesta a 10 minutos a pé da estação do metrô Penha, no meio da Região Metropolitana de São Paulo”, conta Yuri Inácio, psicólogo com 33 anos de idade e um dos integrantes do Quintal Agroecológico da Penha.
O coletivo, formado na região do bairro da Penha de França, na zona leste de São Paulo, é composto por moradores da região que dividem o aluguel de um terreno para plantar seus próprios alimentos com base nos princípios da Agricultura Apoiada pela Comunidade (AAC), também chamada de “modelo CSA”.
Nomeado Quintal Agroecológico da Penha, o espaço funciona desde abril do ano passado fornecendo uma cesta de vegetais toda semana para 15 famílias. Entretanto, a iniciativa no local tem potencial para fornecer 20 cestas semanais, estando aberta a novos interessados que quiserem participar. O coletivo tem um perfil no Instagram (@quintal_agroeco) que é usado como meio de divulgação e comunicação entre os membros e eventuais novos colaboradores.
“Tudo que planto aqui é com muito zelo e carinho”, compartilha Sebastião Senhorinho, o agricultor que cuida dos cultivos do Quintal.
“Sei da importância ambiental e social de manter um espaço como esse e estar aqui também me ajuda, pois faço tudo com muito prazer e me distraio dos meus problemas, da questão de saúde que eu tenho”, completa o agricultor, que vem recebendo tratamento médico por causa de um problema de saúde mental.
Como funciona?
A locação do espaço do Quintal Agroecológico da Penha fica aos cuidados de um dos integrantes do grupo que, voluntariamente e de forma transparente, disponibiliza todo mês a prestação de contas dos valores gastos no período, como o aluguel, os insumos para a horta e o serviço do agricultor urbano responsável. Todo mês, cada família colabora com aproximadamente R$220,00 e colhe, toda semana, uma cesta repleta de hortaliças.
O agricultor urbano Tião, como é chamado carinhosamente por outros membros do coletivo, explica que as espécies vegetais crescem de acordo com a época do ano e o desejo dos membros coletivo. Na maioria das vezes, a cesta semanal inclui alface, rúcula, cebolinha, alho-poró, beterraba, rabanete, catalônia, couve, salsinha, manjericão, orégano, alecrim, coentro e algumas Plantas Alimentícias não Convencionais, também chamadas de Pancs.
Dependendo da época do ano, o agricultor ou os moradores também colhem cenoura, banana, mamão e limão-cravo. A novidade que está sendo testada agora no espaço é a produção de ovos orgânicos, em um projeto piloto para criar galinhas livres de gaiolas no espaço.
Diferente da produção convencional de ovos, que envolve o uso de ração contaminada com agrotóxicos nocivos para a saúde dos animais e das pessoas, além de técnicas como o confinamento animal, que gera sofrimento às galinhas e está ligado ao surgimento de doenças com potencial pandêmico e à escassez de ovos, a iniciativa no Quintal Agroecológico preza pelas condições mínimas de bem-estar animal (espaço amplo e livre de gaiolas para as galinhas) e alimentação orgânica.
O coletivo também tem como objetivo gerar oportunidades de trabalho para quem enfrenta a vulnerabilidade social por falta de oportunidades, como é o caso do Tião, que ficou desempregado durante a pandemia de Covid-19.
Com 53 anos de idade, ele opera toda a produção do Quintal Agroecológico da Penha. Ele tem formação técnica especializada em agricultura orgânica por meio do projeto social da ONG Arcah, sendo o responsável pela gestão da horta. Tião faz a compra das mudas, limpa e prepara o solo utilizando técnicas como o bokashi – um tipo de fertilizante orgânico –, planta e rega os vegetais com a água de um antigo poço artesiano existente no local. Se for pedido pelos outros integrantes com antecedência, ele também deixa a cesta semanal colhida.
Nascido em Goiana, Pernambuco, Sebastião compartilha que, apesar da formação, nunca havia trabalhado como agricultor até ser convidado para compor o coletivo como responsável técnico pela horta. Mas, teve contato com essa atividade ainda criança assistindo seus conterrâneos trabalharem nas monoculturas de cana-de-açúcar. Tião conta que, apesar de serem agricultores, os habitantes de Goiana não podiam cultivar os próprios alimentos porque só havia espaço para a monocultura.
Infelizmente, essa realidade não se restringe aos pernambucanos, conterrâneos de Sebastião. O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, publicado ano passado, mostrou que a fome atinge 22% dos agricultores familiares e produtores rurais e 18% dos moradores do campo no Brasil.
Outro problema é a falta de vínculo empregatício entre agricultores e empresas do agronegócio. O relatório Frutas Doces Vidas Amargas, divulgado pela Oxfam Brasil ano passado, chama atenção para o fato de que, no campo, milhares de pessoas que trabalham diretamente com cultivos de frutas são contratadas por grandes empresas por períodos de 30 dias, 3 meses ou 6 meses, sendo demitidas em seguida.
Também chamados de safristas, esses trabalhadores e trabalhadoras vivem na incerteza de como será seu futuro.
O agricultor Sebastião, que chegou a ingressar na faculdade de letras, gosta de estudar história e tem boa memória, relembra que, além das desigualdades do campo, antes de mudanças na legislação ambiental, “o agronegócio despejava os subprodutos do cultivo da cana-de-açúcar nos rios, matando peixes e causando desequilíbrio na natureza”.
Com toda sua vivência, contribuir com o equilíbrio ecossistêmico do planeta é um dos motivos que fazem Sebastião se orgulhar das suas atividades no Quintal.
“Aqui tem uma limitação, mas a ideia é que esse projeto incentive outras pessoas a fazerem o mesmo, ocupando terrenos baldios para transformar em espaços produtivos”, diz Tião, ao lado de Yuri, que acrescenta:
“Transformar um terreno sem uso em uma horta de gestão coletiva é uma forma simples de promover a segurança alimentar e a educação ambiental (…) as crianças que vêm aqui sabem reconhecer de onde vem o tomate, o orégano (…)”
“O que mais me surpreendeu é o fato do Quintal ser suficiente para abastecer 20 famílias”, complementa o psicólogo.
O que é a Agricultura Apoiada pela Comunidade?
A Agricultura Apoiada pela Comunidade, modelo que inspirou o projeto do Quintal Agroecológico da Penha, é um sistema econômico alternativo que conecta produtores a consumidores. Nesse modelo, os consumidores têm maior consciência sobre as formas de produção e fazem parte dos processos do plantio de alimentos, compartilhando os riscos envolvidos no processo com os agricultores.
Em comparação ao modelo tradicional de agricultura, o modelo CSA valoriza o agricultor, melhora a qualidade dos alimentos e as práticas no campo, além de expandir a consciência socioambiental e reduzir desperdícios. A Agricultura Apoiada pela Comunidade cria autonomia para os agricultores, uma vez que eles conseguem o capital necessário à manutenção de seus cultivos e não ficam sem aporte econômico quando há eventos prejudiciais como geadas, alagamentos e secas ou períodos de entressafra.
Em resumo, os agricultores e os consumidores compartilham os riscos da agricultura. Em troca, os consumidores têm acesso à transparência, participação na administração, alimentos de qualidade, vínculo com o produtor e consciência socioambiental. No modelo econômico convencional da agricultura, os trabalhadores, principalmente os safristas (aqueles empregados apenas temporariamente por um período do ano – geralmente na época da colheita), não são remunerados de maneira justa.
Apesar de produzirem ou colherem praticamente tudo o que consumimos, as pessoas que trabalham no início da cadeia de produção de alimentos são as mais pobres e representam uma parte significativa das pessoas em situação de insegurança alimentar no País e no mundo. Isso porque quem mais ganha com a venda de alimentos são os intermediadores (normalmente mercados), e não os pequenos produtores, que ficam com uma parte muito inferior do valor que é obtido do consumidor final.
No modelo CSA, por outro lado, há uma estrutura de marketing de associação de risco compartilhado que permite um grau significativo de valorização do pequeno produtor. A teoria afirma que quanto maior é o apoio da comunidade, mais os agricultores são valorizados e podem se concentrar na qualidade e reduzir o risco do desperdício de alimentos. O resultado é um sentimento de “estamos nisso juntos”.
Por dar prioridade aos cultivos sazonais e produzidos de modo sustentável (com base nos princípios da agroecologia), normalmente, o modelo CSA entrega um produto de qualidade, com maior incorporação de vitaminas e nutrientes e livre de substâncias nocivas como os agrotóxicos.
Como o próprio nome já diz, o Quintal Agroecológico da Penha é um espaço dedicado ao plantio com base nos princípios da agroecologia. Essa área do conhecimento inclui métodos que pretendem superar os danos causados à biodiversidade e à sociedade como um todo pela prática da monocultura, da precarização dos trabalhadores do campo, do emprego dos transgênicos e do uso de fertilizantes industriais e agrotóxicos, sendo uma ferramenta política para o desenvolvimento sustentável.
Diferente da forma de consumo convencional, em que as pessoas se deslocam até mercados ou feiras e escolhem os produtos da prateleira priorizando preços mais baixos, os integrantes do Quintal Agroecológico da Penha priorizam o consumo consciente. Isso significa que todos os bônus e ônus são divididos pelo coletivo. Nas semanas de clima mais frio, por exemplo, quando as hortaliças tendem a crescer menos, ninguém paga menos por isso. Os gastos são divididos igualmente. Da mesma forma, quando há produção excedente, todos são beneficiados.
Com o modelo de compartilhamento das despesas e da produção, os membros do Quintal têm acesso a alimentos que saem da horta direto para o prato, ao mesmo tempo que geram uma oportunidade de trabalho digno para pessoas em situação de vulnerabilidade, sendo esse um dos impactos positivos mais importantes da iniciativa.
Além do mais, o projeto pode ser visto como uma das formas de adaptação às mudanças climáticas, reduzindo a contaminação do solo e da água pelo uso de agrotóxicos e o uso de combustíveis fósseis com o transporte de alimentos de áreas distantes, além de eliminar o uso de plástico em embalagens e reduzir problemas de educação ambiental como a cegueira botânica.