A nova ferramenta de monitoramento de incêndios Amazon Dashboard, lançada em 19 de agosto pela Nasa, apresenta grandes avanços sobre a forma como o fogo na Amazônia é monitorado. A plataforma utiliza coleta automatizada de dados e análise computadorizada para identificar, quase em tempo real, quais são os incêndios que estão devastando a floresta neste momento.
Até recentemente, as queimadas na Amazônia eram rastreadas pela contagem de focos de incêndio, prática que não detalhava o número nem o tamanho dos incêndios reais, além de não informar com precisão as áreas impactadas, as emissões de carbono ou o tipo de incêndio. Tudo isso a nova feramenta da agência espacial norte-americana já consegue detectar.
“Por mais valiosa que seja a informação sobre o fogo ativo, usada para rastrear índices mensais ou anuais, ainda é um cenário incompleto do que está acontecendo”, afirma Douglas Morton, o responsável pela nova ferramenta, uma criação do Laboratório de Ciências Biosféricas do Centro de Voos Espaciais Goddard.
“Nossa equipe queria fornecer mais contexto sobre os tipos, o tamanho e o crescimento dos incêndios ao longo do tempo. São elementos cruciais para potencialmente combatê-los em locais remotos”, explica Morton. O novo sistema da agência espacial norte-americana consegue identificar os incêndios em áreas desmatadas, aqueles que ocorrem no sub-bosque da floresta, as queimadas em pastagens e aquelas causadas anualmente por agricultores de subsistência para limpar campos já existentes.
Os incêndios florestais de sub-bosque — um dos tipos mais destrutivos na Amazônia — passaram quase totalmente despercebidos nos anos anteriores, pois os satélites eram incapazes de registrá-los. Com chamas muitas vezes menores que 1 metro de altura, os incêndios florestais de sub-bosque penetram na folhagem densa, deixando um rastro de queimadas impossível de ser visto a distância, oculto sob as copas das árvores amazônicas, algumas de até 50 metros de altura.
A partir de agora, utilizando dados infravermelhos mais sensíveis durante as passagens noturnas dos satélites Suomi NPP e NOAA-20, a Nasa pode detectar esses incêndios devastadores quase em tempo real.
A nova ferramenta de análise de dados de incêndios da Nasa pode ajudar a informar as equipes operacionais sobre onde e quando combater queimadas. Foto: Sérgio Vale/Amazônia Real.
Precisos e acessíveis, os dados da Nasa podem ajudar administradores de terras a identificar e a extinguir incêndios florestais em locais remotos antes que eles se tornem grandes demais, além de contribuir para a exposição dos criminosos causadores das queimadas. A detecção mais apurada dos incêndios realizados em pequenas fazendas familiares e em comunidades tradicionais permite que as operações de fiscalização se concentrem exclusivamente no que realmente importa: o combate a redes criminosas de desmatamento em larga escala e a prevenção e contenção de incêndios em áreas de alto risco.
“É pioneiro. Uma revolução em nosso campo. Nós poderíamos reagir rapidamente e deter estes incêndios florestais”, diz Erika Berenguer, bióloga e especialista em Amazônia da Universidade de Oxford. “Podemos separar os incêndios provenientes do desmatamento e da agricultura dos incêndios florestais, que são muito mais difíceis de identificar. Na verdade, não sabemos quanto fogo se alastra para a floresta, mas é uma proporção considerável.”
A nova ferramenta de análise de incêndios da Nasa chega em um momento crítico. Encontrar soluções nunca foi tão urgente, pois a Floresta Amazônica caminha em direção a um ponto de inflexão que pode transformá-la em savana — sucumbindo à seca induzida pela mudança climática, ao desmatamento desenfreado e ao recorde de incêndios anuais ocorridos sob a liderança do presidente Jair Bolsonaro, um entusiasta dos interesses do agronegócio e da mineração industrial na região amazônica.
Incêndios na Amazônia em 1 de agosto de 2020 na divisa entre os estados do Amazonas, Par e Mato Grosso (inferior), conforme captados pela nova ferramenta da Nasa. A linha vertical à direita é a rodovia BR-163, que facilita o acesso dos grileiros à floresta. A fumaça à esquerda da BR-163 é uma queimada ilegal na Floresta Nacional de Jamanxim. A grande área desmatada à direita com fumaça é a Bacia do Xingu. A fumaça na extrema esquerda se eleva sobre a Bacia do Tapajós. Na Amazônia, os grandes incêndios quase sempre bordejam áreas desmatadas, indicando provável desmatamento ilegal para criação de gado. Imagem: Nasa.
Para os pesquisadores, o novo sistema da agência espacial norte-americana não poderia ter vindo em melhor hora. “Este ano, a Amazônia teve mais incêndios do que no ano passado, mas você não saberia disso olhando para o número total de pixels vermelhos na tela”, diz Morton. “Nem todas as detecções de incêndio são de igual importância”.
O fogo em áreas recentemente desmatadas e os incêndios florestais de sub-bosque são os mais preocupantes para os cientistas, pois são eles que emitem mais carbono, ocasionando os maiores danos à floresta tropical e à biodiversidade.
Liana Anderson, pesquisadora do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), trabalha com sua equipe na quantificação dos impactos do fogo na Amazônia. Uma melhor compreensão do custo real dos incêndios na Amazônia, diz ela, poderia ajudar a planejar o orçamento anual para o combate e prevenção de queimadas. “Neste momento de crise, precisamos de incentivos para que a ciência seja considerada na tomada de decisões e em problemas que afetam a sociedade”, diz ela.
Estimativas baseadas em dados de 2008 a 2012 no Acre sugerem que os danos causados pelos incêndios podem totalizar 7% do PIB da Amazônia. “Eles danificam a infra-estrutura, como cercas entre fazendas, linhas de transmissão elétrica e estradas. A fumaça prejudica a saúde [humana], o que gera um custo. Há também perdas para a produção agrícola e, em casos mais raros, [o fogo] pode até interromper o tráfego aéreo”, diz Liana Anderson. Segunda ela, a nova ferramenta poderia ajudar a quantificar os danos financeiros, justificando um melhor controle de incêndios para os governos federal e estaduais.
Os incêndios florestais em sub-bosques podem começar em fazendas ou em pastagens e eventualmente atingem a floresta. As árvores danificadas pelo fogo morrem, transformando-se em combustível e tornando a floresta mais vulnerável a futuros incêndios. Foto: Sérgio Vale/Amazônia Real.
Em agosto, no município de Canaã dos Carajás, um incêndio isolado ocorreu em uma área que provavelmente era um pequeno pasto, de acordo com a nova ferramenta da Nasa. As chamas não duraram muito e não afetaram a floresta. Eram características do fogo utilizado por pequenos proprietários de terras para renovar o solo em fazendas familiares, garantindo o abastecimento alimentar local.
No entanto, em 15 de julho, Jair Bolsonaro decretou uma proibição de queimadas por 120 dias, tornando ilegais todos os incêndios intencionais na Amazônia até outubro, com uma exceção feita apenas para as comunidades indígenas e tradicionais.
“Essa proibição criminalizou os pequenos proprietários de terra e estimulou o uso desordenado de fogo entre as comunidades rurais pobres, ao mesmo tempo em que distraiu as autoridades de grandes grileiros”, diz Sonaira Silva, agrônoma da Universidade Federal do Acre. “Eles têm receio de serem multados e sentem que podem alegar que o incêndio não foi intencional se o fogo não parecer organizado.”
Segundo ela e outros pesquisadores, a ferramenta da Nasa poderia ajudar a acabar com esse problema, uma vez que é capaz de fazer a distinção entre queimadas de desmatamento e pequenos incêndios agrícolas. Isso permite que as autoridades filtrem os fogos de baixo impacto e foquem nos agentes criminosos de maior escala na Amazônia.
“Não podemos ter fogo zero na Amazônia. Essas proibições que vêm de cima para baixo não são efetivas, porque precisamos ser capazes de separar quem é quem: pessoas que causam a destruição criminosa da floresta tropical e pequenos proprietários que usam o fogo como seu único meio de garantir a alimentação”, conclui Sonaira Silva.
Dados de um grande incêndio florestal próximo à Terra Indígena Baú (PA), comparado ao que pode ser um pequeno incêndio de pastagem no município de Canaã dos Carajás, ambos no Pará. A diferença no tamanho e impacto do fogo demonstra que os incêndios podem ser priorizados. Dados do Banco de Dados de Emissões de Incêndios da Nasa na Amazônia.
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