Neandertais eram majoritariamente carnívoros

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Por Guilherme Eler, da Revista Pesquisa Fapesp | Uma população de Homo neanderthalensis, os neandertais, que viveu há cerca de 150 mil anos no sítio Cueva de los Moros, em Gabasa, na Espanha, parece ter tido uma dieta altamente carnívora. Um estudo internacional, com participação de uma brasileira, analisou amostras de esmalte de um dente de um neandertal encontrado nessa localidade e obteve evidências de que ele se alimentava quase que exclusivamente da carne de grandes animais, sem, no entanto, consumir o sangue e os ossos de suas presas. O trabalho foi publicado em outubro na revista científica PNAS.

Pela primeira vez os pesquisadores usaram uma técnica baseada na análise da chamada razão isotópica do elemento químico zinco para entender a base da dieta dos neandertais, espécie aparentada do homem moderno (Homo sapiens) que habitou partes da Europa e Ásia entre 400 mil e 40 mil anos atrás. Esse índice é calculado em função da proporção de duas formas distintas (isótopos) de zinco presentes em uma amostra.

“Encontramos um valor extremamente baixo da razão dos isótopos de zinco no dente”, explica a arqueóloga brasileira Jéssica Mendes Cardoso, uma das autoras do estudo, que faz doutorado conjunto no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) e no Géosciences Environnement Toulouse (GET), uma unidade do Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS), da França. “Quanto menor esse valor, mais alto o nível da cadeia alimentar ocupado pelo dono da amostra.”

Os resultados posicionam o neandertal no topo da teia alimentar e indicam que ele comia diferentes tipos de animais. O grupo analisou também amostras de outros predadores carnívoros que viviam na região, como linces e lobos, e de herbívoros, como cervos e coelhos. “Foi uma grande oportunidade trabalhar na península Ibérica, onde, segundo outros métodos de análise, as paleodietas podiam ser à base de plantas em algumas localidades”, diz a geoquímica francesa Klervia Jaouen, que liderou o estudo, em entrevista a Pesquisa FAPESP.

Escavação em Cueva de los Moros, em Gabasa, na Espanha. Foto por Lourdes Montes

A abordagem mais comum no estudo de paleodietas é procurar por traços de carbono e nitrogênio nas amostras. A razão dos isótopos de nitrogênio em um pedaço de osso, por exemplo, pode indicar a posição de um indivíduo na cadeia alimentar. Mas há um problema: o nitrogênio está presente no colágeno de ossos ou na raiz de dentes, materiais que se deterioram com o passar dos anos, principalmente em áreas de clima temperado. Por isso, o método funciona mais em ambientes frios, como o norte da Europa ou a Sibéria, onde a ação do tempo é mais branda. É praticamente impossível que amostras do sul da Europa com mais de 50 mil anos de idade, como as do sítio espanhol, mantenham esses isótopos preservados.

Nesses casos, é mais produtivo trabalhar com os isótopos de zinco presentes no esmalte do dente. “O carbono e o nitrogênio dos ossos indicam a dieta consumida nos dez últimos anos”, comenta Cardoso. “Como o esmalte dentário não é remodelado ao longo da vida, a análise dos isótopos de zinco reflete qual era a dieta do indivíduo no momento em que o dente foi formado.”

Os achados do estudo estão alinhados com um certo consenso científico que começou a ser construído a partir da década de 1990. Baseados em vestígios de animais encontrados em sítios arqueológicos ou em análises bem-sucedidas com isótopos de nitrogênio, diferentes estudos concluíram que os neandertais eram grandes caçadores e tinham uma dieta extremamente carnívora. De seu cardápio, faziam parte cervos e até mamutes.

Algumas populações de neandertais que viviam próximo ao mar Mediterrâneo, porém, parecem ter tido um paladar mais variado do que as do norte da Europa. Estudos feitos a partir dos anos 2000 mostraram que, além de uma quantidade significativa de plantas e cogumelos, elementos como sementes e nozes também podiam aparecer em suas dietas. Um trabalho feito na costa Ibérica levantou indícios de que alguns neandertais consumiriam frutos do mar, como moluscos e caranguejos. Essa maior diversidade de fontes de alimento, no entanto, não foi corroborada pelo estudo com o dente de Cueva de los Moros.

Dente de neandertal encontrado em escavação em Cueva de los Moros, em Gabasa, na EspanhaLourdes Montes

Entender a dieta neandertal é uma questão importante para a ciência. Hábitos alimentares mais diversificados podem estar diretamente ligados ao sucesso evolutivo de uma espécie. Uma das principais hipóteses credita, ao menos em parte, o sucesso adaptativo do Homo sapiens à sua menor dependência de carne de caça do que os neandertais, com quem coabitaram e até se reproduziram em certas partes da Eurásia.

Outro fator-chave para entender o sucesso evolutivo de uma espécie envolve seu grau de desenvolvimento social, que facilita aspectos de sua vida como migração e acesso a novas fontes de alimentos. Apesar de o H. sapiens saltar na frente nesse quesito, os pesquisadores estão descobrindo agora que os neandertais também viviam em pequenos grupos aparentados entre si.

Um artigo publicado em outubro na revista científica Nature encontrou, pela primeira vez, parentesco genético entre vestígios de neandertais. Assinada por uma equipe do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva de Leipzig, na Alemanha, a pesquisa descobriu que um pai neandertal e sua filha habitaram a área das cavernas de Chagyrskaya e Okladnikov, nas montanhas de Altai, na Sibéria, há 54 mil anos.

A região é, de longe, a mais importante para a história dos neandertais do ponto de vista genético. “As montanhas de Altai, no sul da Sibéria, representam a parte mais oriental do território neandertal”, explica a Pesquisa FAPESP Stéphane Peyrégne, um dos pesquisadores que assinam o estudo. “Dois sítios arqueológicos da região, as cavernas Denisova e Chagyrskaya, renderam várias amostras de neandertais que foram importantes para reconstruir a história desses hominíneos no Paleolítico Médio [entre 300 mil e 30 mil anos atrás].” Tudo porque, apesar da sua idade, os restos mortais dos neandertais apresentam DNA excepcionalmente bem preservado graças ao frio siberiano.

Foram analisadas no estudo amostras de dentes e fragmentos de ossos de 13 neandertais diferentes – 7 homens e 6 mulheres, entre eles 5 crianças ou adolescentes –, mais do que em qualquer outro trabalho. Onze deles viveram na mesma caverna, Chagyrskaya, na mesma época. Uma vértebra de um homem adulto e o dente de uma adolescente indicaram que eles eram pai e filha. Além disso, as amostras sugerem que dois primos do pai viviam em Chagyrskaya, e que uma mulher adulta e um menino que viviam ali também deviam ser parentes. Se todos tivessem o hábito de comer juntos, é possível que tenham dividido algum pedaço de carne de mamute.

Artigos científicos

JAOUEN, K. et alA Neandertal dietary conundrum: Insights provided by tooth enamel Zn isotopes from Gabasa, SpainPNAS. v. 119, n. 43. 17 out. 2022.
SKOV, L. et al. Genetic insights into the social organization of NeanderthalsNature. v. 610, 20 out. 2022.

Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Thaís Niero

Bióloga marinha formada pela Unesp e graduanda de gestão ambiental. Tentando consumir menos e melhor e agir para alcançar as mudanças que desejo ver na sociedade.

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