No Brasil, procedimentos de estética facial realizados por pessoas sem treinamento médico têm mais chances de gerar complicações, mostra estudo feito em 19 estados

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Por Marcos do Amaral Jorge em Jornal da Unesp — No Brasil, a busca pessoal pela aparência perfeita serve de combustível para movimentar um próspero mercado povoado por clínicas estéticas, consultórios médicos e salões de beleza. Segundo relatório da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), foram realizados, em 2020, 1.306.902 procedimentos de cirurgia plástica estética. Isso nos coloca em segundo lugar no ranking global da entidade, atrás apenas dos Estados Unidos. E, cada vez mais, os brasileiros valorizam procedimentos estéticos que não demandam cirurgias. Segundo o relatório da ISAPS, que considera apenas procedimentos realizados por cirurgiões plásticos, entre 2016 e 2020 o uso de procedimentos não cirúrgicos injetáveis registrou um aumento de 24,1% em nosso país. E só no ano de 2020 mais de 600 mil procedimentos não cirúrgicos injetáveis foram realizados por cirurgiões plásticos no Brasil.

Nessa categoria estão incluídos alguns procedimentos que já se tornaram conhecidos até mesmo por pessoas que não são consumidoras do mercado de beleza, como a aplicação da toxina botulínica (que se tornou célebre por meio de uma de suas principais marcas fabricantes, o Botox) e o ácido hialurônico, substância comumente aplicada em procedimentos de preenchimento facial.

A busca por meios para transformar o corpo e a aparência em direção a um ideal desejado é antiquíssima e universal, explica Helio Miot, médico dermatologista e professor da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB). Esse desejo explica, por exemplo, a imensa diversidade de cortes de cabelo, ou de padrões de tatuagem, que foram adotados em diferentes sociedades ao longo da história. O desenvolvimento da medicina moderna abriu novos horizontes e, a partir dos anos 1990, certas especialidades médicas, como a endocrinologia, a dermatologia e a própria cirurgia plástica, deixaram de possuir um viés exclusivamente clínico e ampliaram seu espectro de atuação, incorporando também questões e procedimentos estéticos. “Na cirurgia plástica, por exemplo, até a década de 1970 adotava-se predominantemente uma perspectiva de reconstrução. Havia uma rejeição à ideia de corrigir corpos saudáveis”, diz Miot.

Nos últimos 20 anos, a demanda por intervenções estéticas se acentuou ainda mais. O resultado foi a popularização da oferta de procedimentos estéticos, e um crescimento na realização de intervenções não cirúrgicas no rosto. Porém, em paralelo, tem crescido também o número de complicações decorrentes dessas intervenções. A fim de compreender melhor quais são os desafios gerados por este quadro de popularização, o docente desenvolveu uma pesquisa para analisar a frequência com que ocorrem complicações resultantes da aplicação de um dos procedimentos estéticos não cirúrgicos e injetáveis mais comuns atualmente: o preenchimento facial. O trabalho realizado pelo professor da FMB foi publicado na revista Plastic and Reconstructive Surgery, revista científica de referência na área de cirurgia plástica e que costuma reunir artigos que tratam de questões plásticas, cosméticas e estéticas. 

A técnica de preenchimento facial envolve a injeção de uma substância sob a pele – sendo o ácido hialurônico a mais comum – com o objetivo de gerar volume e preencher depressões no rosto que costumam surgir como consequência do processo de envelhecimento. Isso inclui, por exemplo, o sulco labiomentoniano, chamado popularmente de “ruga da marionete”, localizado nos cantos dos lábios, ou o sulco nasogeniano, conhecido como “bigode chinês”, e que se forma ao lado do nariz.

Embora sejam frequentemente associados pelo público leigo, o preenchimento facial e a aplicação da toxina botulínica são técnicas com finalidades diferentes. De forma geral, a toxina botulínica tem o objetivo de relaxar o músculo e deixá-lo estático, sendo aplicada a rugas dinâmicas, ou seja, aquelas que aparecem quando movimentamos os músculos do rosto, como no momento em que sorrimos. Já o preenchimento facial gera um volume que preenche sulcos e vincos do rosto e é mais apropriado para tratar das rugas estáticas, aquelas que se formam no rosto independentemente dos movimentos dos músculos da face. 

Ambas as técnicas podem ser aplicadas simultaneamente no rosto, mas em locais diferentes. É o que ocorre, por exemplo, nos procedimentos de harmonização facial, ou harmonização orofacial, técnica que reúne uma série de procedimentos estéticos que buscam trazer equilíbrio nos traços de algumas regiões da face, como o nariz, o queixo, a região da mandíbula ou a maçã do rosto. Além da aplicação da toxina botulínica e do preenchimento facial, a harmonização também pode incluir a inserção de fios de ácido polilático (lifting facial) para eliminar rugas do rosto e do pescoço, o microagulhamento, para estimular a produção de colágeno, o peeling, que estimula a renovação das células do tecido, e até mesmo procedimentos odontológicos para correção ou clareamento dos dentes.

O levantamento recebeu a contribuição de 160 dermatologistas que atuam em 19 estados brasileiros ao longo do ano de 2020. Os dermatologistas foram entrevistados por meio de questionários que perguntaram sobre o número de procedimentos realizados pelos próprios profissionais e a quantidade de complicações atendidas por eles, decorrentes de suas aplicações ou de trabalhos executados por outros profissionais. A pesquisa também questionou as principais substâncias usadas pelos profissionais como preenchedores faciais. 

Os dermatologistas reportaram um total de 47.360 procedimentos de preenchimento facial, e 1032 complicações (2,18%). Deste total, 196 complicações foram observadas em procedimentos realizados pelos próprios dermatologistas (0,41%), e 286 episódios envolveram aplicações realizadas por outros médicos (0,6%). Chamou a atenção dos pesquisadores o fato de que 550 episódios de complicação estavam ligados à atividade de não médicos. Esse número correspondeu a mais da metade do total de complicações, e a 1,16% do total de procedimentos.

As complicações identificadas pela pesquisa não costumam ser graves, causando principalmente nódulos e edemas na região da aplicação (63% e 62%, respectivamente). Infecções tardias também foram reportadas, mas em menor número (25%). Casos mais graves como oclusão arterial ou formação de úlceras foram menos frequentes. Segundo Miot, todas as complicações são passíveis de tratamento médico. 

O artigo destaca ainda dois fatores associados a uma maior probabilidade de complicação, a região do rosto e o volume aplicado (ver infográfico). A área abaixo dos olhos, chamada sulco nasojugal, registrou 70% dos edemas, o que, segundo Miot, deve estar relacionado ao fato de esta região do rosto apresentar um tecido mais delicado. “Já um volume maior tende a aumentar a reatividade e, de certa forma, também tem relação com o profissional, uma vez que é ele quem orienta a quantidade a ser aplicada no paciente. Por isso, é importante trabalhar com volumes menores, em aplicações graduais, que minimizem a chance de complicação”, recomenda. O artigo não encontrou diferenças substanciais entre as marcas de preenchedores faciais utilizadas.

Imagem: Divulgação

Para o médico dermatologista, ainda que a porcentagem de complicações relatadas pelos dermatologistas entrevistados seja baixa, os dados chamam a atenção para a diferença no número de complicações observadas quando o preenchimento é realizado por um médico ou por outro profissional da área de saúde. Em virtude da popularização e a alta demanda por esses procedimentos estéticos, é comum ver dentistas, biomédicos e enfermeiros  oferecendo o procedimento.

No Brasil, os conselhos de classe são os responsáveis pela regulamentação e fiscalização da atuação de seus respectivos profissionais ligados à Saúde. Nos últimos anos, decisões de diversos conselhos incluíram o preenchimento facial no escopo de atuação de seus profissionais, permitindo que uma gama de profissionais realize o procedimento. Embora os conselhos representem determinadas categorias, suas decisões deveriam ser orientadas pelo interesse público. Miot entende que muitas dessas decisões foram orientadas mais pelo interesse mercadológico e corporativo, e que, neste cenário de crescimento da oferta por serviços estéticos, o paciente deve reforçar a atenção sobre a escolha do profissional. 

“É importante orientar as pessoas para que não tomem decisões baseadas apenas pelo preço, mas levem em conta a recomendação e a competência do profissional médico”, aponta o docente. “É claro que complicações por procedimentos realizados por médicos também existem, e nós sabemos como tratá-las. Mas elas ocorrem em maior número em profissionais não médicos, e foi isso que a nossa pesquisa, pública e independente, mostrou.”

Este texto foi originalmente publicado por Jornal da Unesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não representa necessariamente a opinião do Portal eCycle.

Equipe eCycle

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