Imagem de Moritz Knöringer no Unsplash
Chegamos ao fim de um ano com tantos acontecimentos e crises que nossa sensação temporal ficou ainda mais confusa. “É sério que acabou?” – talvez nos perguntemos no primeiro dia de 2021. É certo que uma convenção como data não promoverá, por si, grandes mudanças. Mas é uma distinção simbólica importante numa sociedade como a nossa – mais ainda no contexto das tragédias que vivemos em 2020.
Cientistas, como todos, vivenciaram os momentos sofridos da pandemia. Como as mortes que doeram mais pela certeza de que muitas poderiam ter sido evitadas, com uma melhor condução pelos líderes brasileiros, que não existiu. Pelo contrário, muitas vezes o ambiente foi tumultuado por quem foi colocado no poder pelo voto. E para quem o caos parece ser vantajoso, ainda que com o preço de vidas.
Outros atores, porém, ocuparam com louvor o protagonismo na diminuição do impacto – biológico e social – da doença. Para nosso orgulho, muitos deles estão nas universidades públicas. Na ciência e tecnologia de primeira qualidade nelas produzidas, nos campos mais diversos. Mesmo diante de ataques a esta mesma ciência, que representam, eles sabiam que o desânimo não era uma opção. Este texto reúne os depoimentos de alguns deles, vozes que sempre merecem ser ouvidas, mostrando um pouco do que 2020 nos ensinou (ou que deveria ter ensinado) e as expectativas para a ciência, em sentido amplo, para 2021. Junto a eles e a todos os cientistas que não estão neste texto, mas sempre buscaram estar ao lado da boa ciência – e no lado correto da história que construímos – nos despedimos dos nossos leitores neste ano.
O reitor da USP, Vahan Agopyan, sabe que 2020 foi muito difícil para a sociedade e o sistema universitário, mas não considera que tenha sido um ano perdido, pois “aprendemos muito enfrentando e superando desafios imprevistos”.
A comunidade de pesquisa respondeu de uma forma efetiva. “No caso da USP, mais de 250 grupos iniciaram ou adequaram os seus estudos para o conhecimento e combate do novo coronavírus. Desde o sequenciamento do seu genoma até o desenvolvimento de ventiladores e máscaras, passando pelos estudos de novos testes, medicamentos e vacinas”, relembra o reitor.
Para Agopyan, outro ponto fundamental foi a rapidez dos resultados, “fruto de um grande esforço multidisciplinar e da pressão de salvar vidas”. Ele ressalta ainda que a postura dos docentes e pesquisadores se modificou e a atitude de competição se transformou em colaboração.
O pró-reitor de Pesquisa, Sylvio Canuto, também destaca o trabalho em colaboração e o aumento de interação com a sociedade. “Até novembro, a USP era a 16ª instituição de pesquisa do mundo que mais havia publicado artigos científicos nesse tema. “Eu já disse antes e reitero: a ciência brasileira está madura e pronta para um grande salto. Mas falta uma política científica nacional e estabilidade de condições, especialmente, recursos financeiros continuados, sem percalços. O que nós vimos nesse ano foi um desafio bem definido colocado pelo coronavírus e a ciência brasileira respondendo com uma grande e criativa performance.”
De acordo com o pró-reitor, era de se esperar que o reconhecimento da importância da ciência levasse também a um consequente aumento de investimentos. Mas isso não parece ser o caso no País e o horizonte não parece muito promissor. “Pensar em novas formas de obter recursos para a pesquisa, tanto básica como aplicada, tanto tecnológica como social, é um dos desafios para o próximo ano”, diz.
Como um “belo exemplo de interação universidade-sociedade”, Canuto cita o projeto USP VIDA para doações de recursos, que alcançou quase 3.200 pessoas físicas, que se sensibilizaram e doaram para pesquisas.
Ele diz ainda que estamos aprendendo que projetos amplos e institucionais são capazes de causar impactos de maior alcance. “E desafios multidisciplinares são também vistos em temáticas como aquecimento global, desigualdades sociais, violência urbana, saúde planetária, saúde alimentar, energias limpas, economia azul, entre outras.”
A professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Maria Luiza Tucci Carneiro também classifica a pandemia como um fenômeno coletivo que exige múltiplos saberes, pois a doença não tem preferência por classes sociais e nem por ideologias. Mas diz que é preciso reconhecer que, como outras pestes, “atinge as minorias étnicas que, há séculos, estão vulneráveis, fragilizadas”.
Para ela, “aprendemos, mais uma vez, que o SUS [Sistema Único de Saúde] é um bem público e que ajudou a salvar milhares de brasileiros, principalmente neste país com desigualdades econômicas e sociais tão profundas”.
Tucci lembra também que os cientistas podem buscar soluções na história das epidemias, que se repetem por séculos, com várias semelhanças. “Que a história das pandemias passe a fazer parte do conteúdo obrigatório nos programas escolares, pois as experiências científicas do passado indicam caminhos para a ciência do futuro. E que cursos educativos de prevenção e combate ao racismo estrutural ajudem a salvar vidas, independente das crises políticas e de saúde pública”, defende.
Para o próximo ano, a historiadora espera que a politização da vacina contra a covid-19 não obstrua o real objetivo da vacinação em massa: salvar vidas. “Esperamos também que o Estado brasileiro dê credibilidade aos cientistas, disponibilizando recursos para pesquisas em todos os campos; além de aprimorar o SUS e os hospitais universitários, que devem estar disponíveis a todos.”
A também professora da FFLCH, Lorena Barberia, acredita que é importante reforçar ao público em geral que se está tentando produzir ciência na velocidade da pandemia, entender o presente, que é muito dinâmico e complexo. “Temos que lembrar a sociedade sobre a importância do processo científico e o que realmente significa fazer ciência. Esse processo é circular, contínuo e nós precisamos de muito tempo e rigorosa validação para entender o que está acontecendo.”
O que não precisamos, diz ela, é de “discursos baratos que dizem ‘nós vamos seguir a ciência’, como se ela só tivesse um caminho. A ciência é um processo de descobertas em que existem hipóteses e contrafactuais. Através desse processo de questionamento é que nós aprendemos. Então seguir a ciência é importante, mas é preciso entender que esse caminho é complexo, inclui novos achados. Podemos questionar os dados e mostrá-los como não constatados”, conclui.
Renato Janine Ribeiro, professor da FFLCH, traz as discussões da filosofia para apontar como ideias relacionadas à vida e à morte se atualizaram este ano. Segundo ele, ao longo dos anos, o avanço na longevidade e na pesquisa científica trouxe a questão do transumanismo, com o ser humano podendo vir a ser entendido como “amortal”. “Seria possível não só se adiar indefinidamente a morte como até trocar ‘peças’ do corpo e tornar a pessoa quase imune à morte. Isso muda completamente a compreensão que se tem do ser humano como um ser voltado para a morte. E aí uma grande questão filosófica passa a ser não apenas ter uma maior quantidade de anos de vida, mas uma maior qualidade de vida”, descreve.
A pandemia, porém, chega trazendo a morte como um enorme risco. “Ela, de certa forma, ‘re-existencializou’ nossa percepção do mundo. É um golpe duro nessa expectativa de uma vida mais longa. Então o avanço aconteceu, porém, a surpresa é uma doença invisível. E o que vamos fazer em relação a ela?”
Assim, diz ele, “temos como se fosse um grande embate, não apenas no plano da ciência, tentando resolver a pandemia, mas também na discussão do sentido da vida. Mais longa, trazendo uma tranquilidade maior, mas também outras preocupações, porque precisamos preencher de sentido essa vida, o que não é fácil. E temos, de repente, a surpresa de uma doença invisível contra a qual praticamente não temos defesa. Volta a questão antiga da morte iminente, que a qualquer momento pode acontecer. Essa é uma das grandes questões que a filosofia, como uma reflexão da condição humana, tem a enfrentar.”
Também nas humanidades, mas pensando na ciência social aplicada, a professora da Faculdade de Direito (FD) da USP, Eunice Prudente, afirma que o direito deve expressar o sentido do justo, do melhor para a sociedade – todas as classes sociais.
Para a professora, é notório “que esta República não é pobre, mas injusta, face aos níveis de concentração de rendas e terras”. Resgatando a história que nos trouxe até 2020, Eunice lembra que a formação da propriedade privada a partir de escravização deixou à deriva do desenvolvimento os negros descendentes dos escravizados e “moldou as formas de discriminação étnica violentas que são observadas no Brasil”.
Sobre as mudanças trazidas pela crise sanitária, ela resgata do pensamento grego a visão da crise como momento decisivo para um novo tempo, mas precedido de muita maturação. “No Brasil desconhece-se o pensamento platônico, que refletiu: não se espera por uma crise para descobrir o que é importante em sua vida.”
Assim, não nos preparamos, fazendo das crises oportunidades. Pelo contrário, “a covid-19 aflorou as desditas aqui narradas, da desigualdade socioeconômica ao racismo estrutural”, denuncia.
Para os próximos anos, Eunice convoca: “’Bora’ reconstruir o Brasil com real investimento na educação básica; enfrentamento da desigualdade socioeconômica; e enfrentamento do racismo”.
Incansável na luta por mais recursos para a ciência, a professora do Instituto de Biociências (IB) da USP, Mayana Zatz, vê 2020 como um ano muito triste para a ciência brasileira neste aspecto. Primeiro, porque os cortes de verbas federais para pesquisas, que já vinham acontecendo, foram aumentando. Os mais prejudicados foram os estudantes, com uma redução das bolsas. “Cada vez mais eles vão para o exterior em busca de condições melhores e não voltam mais”, lamenta a geneticista.
Mas o pior de tudo, na opinião dela, foi o corte de verbas para a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “Primeiro, houve uma tentativa de retirar um suposto superávit que não existe. Felizmente, não houve este corte, mas, no final do ano, soubemos que seria aplicada a DREM, que é a desvinculação da receita tributária, 1% do que é repassado à Fapesp”, diz ela, ao explicar que, com isso, a agência de fomento teve um corte de 30%, ou seja, de R$ 454 milhões em 2021. “O governador prometeu que iria repor esses recursos por meio de decreto, mas, se vai repor, por que retirar? Isso causou uma enorme insegurança na comunidade científica.”
Para Zatz, boa notícia é ver, no mundo desenvolvido, o reconhecimento da importância da ciência, e que países como Inglaterra e Estados Unidos já estão vacinando a sua população. Não por sorte, nem por acaso, mas como resultado de anos de investimentos em pesquisas. “Com esforço, dedicação e recursos, tudo é possível. Infelizmente, nós só podemos admirá-los e bater palmas de longe”, diz.
Carlos Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, reconhece que o ano atípico impôs dificuldades à ciência, mas que seu grupo, o Nupens, procurou manter o caráter coletivo e social do trabalho. Prova disso, diz ele, foi a resposta dada aos ataques direcionados ao Guia Alimentar para a População Brasileira, cuja elaboração técnica foi coordenada pelo Nupens. “Ataques esses repelidos prontamente por um manifesto em que salientamos o robusto conjunto de evidências que sustenta as recomendações do Guia.”
Para ele, o trabalho científico coletivo também mostrou sua força quando o Nupens recebeu a notícia de que cinco de seus cientistas estão entre os mais citados do mundo. “É importante mostrar que seguimos trabalhando em uma produção de altíssima qualidade e de impacto internacional. Não há sinais de que em 2021 o desmonte de áreas estratégicas, inclusive da ciência, seja revertido: mais um motivo para estarmos juntos”, convida.
Alexandre Chiavegatto Filho, também professor da FSP, conta que, do ponto de vista das pesquisas do seu grupo, a covid-19 foi um grande problema. “Atrasou muito nossos projetos e prejudicou bastante a evolução do nosso laboratório.” Mas, ao mesmo tempo, a doença trouxe oportunidade de desenvolvimento para a Inteligência Artificial, campo a que se dedica, sendo interessante para testar algoritmos. “Toda a base adquirida pode ser uma abertura para conseguirmos ampliar as pesquisas para outras doenças”, espera.
Essa é sua perspectiva para o próximo ano. “Apesar de toda crise de financiamento da ciência, temos a felicidade de que a Inteligência Artificial ainda seja uma área com interesse científico”, diz.
O professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, Edison Durigon, inclui entre os aprendizados de 2020 se preparar com antecedência. “Se, desde os primeiros casos na China, tivéssemos começado a nos preparar, talvez a pandemia tivesse sido mais leve aqui. Todo mundo parecia ter aprendido essa lição, até que nós começamos a ter uma diminuição de casos. E, agora, vimos esse novo aumento de casos acontecer um mês antes na Itália, na França, na Inglaterra e não fizemos nada, esperamos aumentar aqui.”
Durigon alerta que, para 2021, o País precisa ser autossuficiente em insumos. “Até a metade de 2020, nós paramos o diagnóstico pois não conseguimos comprá-los, devido à competição internacional”, recorda. E evoluir na testagem, que foi baixa por falta não só de kits, mas de pessoal treinado.
“Precisamos aprender a fazer vacinas emergenciais mais rapidamente. E depois, com calma e com tempo, desenvolver as que ficarão para o resto da vida. Os cientistas têm que aprender a ser mais ágeis e, às vezes, ouvir mais o coração”, completa.
Patrícia Beltrão-Braga, professora do ICB, conta que se viu, pela segunda vez, mudando os planos da pesquisa que vinha fazendo em função de epidemias. Mas ela ressalta que a capacidade de se reinventar demora a ser construída, precisa de anos de estudo, maturidade e muito incentivo, moral e financeiro: “Investimento!”.
Para ela, “o ano de 2020 obrigou os cientistas a serem resilientes e nos mostrou nossa verdadeira vocação: estamos aqui para servir à sociedade. As epidemias e pandemias não vão parar, e aprendemos que as ações rápidas só acontecem se estivermos preparados”.
Para Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), vivemos “uma tempestade em que se depositou na ciência – que tem seu tempo e suas limitações – as esperanças”.
A ciência em si respondeu muito bem. “As vacinas foram produzidas em tempo inédito, à custa do progresso da ciência e dos investimentos maciços.” A própria USP respondeu, com pesquisa em diversas frentes. Mesmo assim, como nunca, a ciência esteve sob ataque, conceitual e financeiro.
O médico lembra ainda que, no início, na falta de alternativas, os cientistas procuraram nos remédios que já existiam um caminho para tratar a covid-19. “E o que no começo era uma esperança, foi usado por políticos para minimizar o risco e chamar de ciência um fetiche científico”, lamenta.
Para ele, no entanto, “o grande aprendizado foi que não sabemos quase nada desse vírus e tivemos que ter humildade para aprender. Que a ciência continue nos iluminando e possa trazer um pouco das soluções que, como sociedade, ainda não conseguimos estabelecer como um todo”, conclui.
Para Liedi Bernucci, diretora da Escola Politécnica (Poli) da USP, o maior aprendizado este ano foi cultivar a solidariedade. “Docentes, funcionários e alunos estenderam as mãos para ajudar. As aulas logo se reiniciaram com a mobilização de nossos funcionários, a AEP (Associação dos Engenheiros Politécnicos) promovendo ação de doação de computadores e notebooks para os alunos que, com a ajuda do Grêmio Politécnico e centrinhos dos alunos, foram reformatados e limpos. Além do treinamento do Pece para docentes no uso de ferramentas on-line e nas técnicas de aprendizado invertido”, relata.
Na pesquisa e atendimento à sociedade, ela destaca, entre outras, a iniciativa do ventilador mecânico de baixo custo, que contou com a doação de empresas e pessoas físicas, muitas delas pelo programa USP Vida. Outros exemplos são o robô para entregas de medicamentos em hospitais para evitar o contato de muitas pessoas com a doença, e o grupo formado por Poli e IPT para conserto gratuito de ventiladores respiratórios dos diversos hospitais públicos. “Todo o trabalho foi voluntário. A solidariedade foi a força motriz em todas as iniciativas unindo competências”, celebra.
Para o professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP Alberto Tufaile, os principais aprendizados estão associados com a comunicação e o posicionamento ideológico. Ele relata que viu mais intensamente posicionamento político declarado de colegas ao redor do mundo, escolhendo a posição desconfortável de questionar abertamente a autoridade estabelecida em favor de uma posição baseada no método científico. “Como numa canção de ‘sofrência’, os cientistas perceberam que é loucura negar as evidências e mentir para ficar numa posição socialmente neutra.”
Alicia Kowaltowski, professora do Instituto de Química (IQ) da USP, diz que cientistas são formados para ser resilientes, mas que “nunca antes nossa resiliência e capacidade de se reinventar foram testadas como em 2020”.
Também ressaltando a comunicação, a pesquisadora observou com a pandemia um enorme aumento de interesse da população em geral por ciência. “Isso é maravilhoso! Comunicadores científicos viraram celebridades, o Jornal da USP ganhou muito mais visibilidade, e nunca antes a profissão foi tão visível e valorizada”, celebra.
O professor do Instituto de Física (IF) da USP Paulo Artaxo acredita que ciência terá um papel ainda maior na orientação da definição do bem-estar social e tecnológico nos níveis local e global, e se envolverá em conflitos ainda maiores durante a apresentação das suas propostas. “E tudo isso vai funcionar? Bem, isso não é simples de prever, pois dependerá da reação das outras entidades sociais envolvidas, pois as ideias científicas não devem ser impostas, mas precisam ser implantadas de forma consensual.”
Para ele, o principal aprendizado de 2020 é que, para enfrentar as três grandes crises que a humanidade está passando — crise da covid-19, perda de biodiversidade e emergência climática — a única saída é a ciência. “Nem forças de mercado, nem políticos ou qualquer outro movimento distante da ciência podem auxiliar a humanidade a caminhar por lugares mais seguros”, garante.
Por Luiza Caires, com colaboração de Antonio Carlos Quinto; Beatriz Azevedo; Fabiana Mariz; Ivanir Ferreira, Marcelo Canquerino e Valéria Dias ao Jornal USP
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