No Pará, criminosos destroem um dos trechos mais bem preservados da Amazônia

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Por Ana Ionova em Mongabay | Apesar de ser uma área protegida, a Terra do Meio sofre pressões cada vez maiores, com dados mostrando que o desmatamento dobrou em 2022, chegando a 4.300 hectares.

Ambientalistas dizem que a destruição está sendo realizada por madeireiros ilegais, garimpeiros e especuladores de terras, e temem que uma nova estrada atravessando a reserva possa levar a mais destruição.

Os ativistas estão depositando suas esperanças no novo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, que prometeu reprimir as invasões de áreas protegidas e controlar as altíssimas taxas de desmatamento herdadas do governo Bolsonaro.

RIO XINGU, Pará — Nas profundezas da Amazônia brasileira, nossa lancha desliza por um dossel de floresta tropical cor de esmeralda, que desce em cascata até as margens do Rio Xingu. Mais além, na Estação Ecológica da Terra do Meio, centenas de espécies de plantas e animais prosperam em um dos trechos mais bem preservados da Amazônia.

Sob proteção federal desde 2005, a Terra do Meio abrange cerca de 3,37 milhões de hectares no sul do Pará. Está situada em um dos corredores ecológicos mais importantes da Amazônia, composto por 28 Unidades de Conservação e 18 Terras Indígenas que, juntas, formam uma tapeçaria ecológica valorizada por sua rica biodiversidade.

No papel, toda atividade humana, com exceção da pesquisa científica, é proibida dentro da Terra do Meio. Mas nos últimos anos essa reserva sofreu uma onda de invasões por parte de madeireiros ilegais, garimpeiros e grileiros que arrasaram trechos de suas florestas. Na última década, o território perdeu 17 mil hectares de floresta tropical primária, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

E a destruição parece ter se intensificado recentemente. Em 2022, os satélites detectaram 248.374 alertas de desmatamento de máxima confiança na Terra do Meio, de acordo com dados da Universidade de Maryland, visualizados no Global Forest Watch. Cerca de 4.300 hectares foram desmatados entre janeiro e novembro de 2022 – mais que o dobro de 2021, segundo dados do Imazon.

Segundo Bianca Santos, pesquisadora do Imazon , “tem um contexto de exploração predatória dentro da região. Essa é uma área que deveria ser totalmente protegida. Mas mesmo assim, essas pessoas estão avançando e invadindo.”

A APA Triunfo do Xingu tornou-se recentemente o epicentro da destruição florestal que atinge a Amazônia brasileira. Lá, árvores derrubadas, estradas recém-abertas e selva carbonizada são uma visão comum. Agora, a destruição da floresta está se espalhando para áreas de conservação vizinhas, como a Estação Ecológica da Terra do Meio. Foto: Ana Ionova/Mongabay

Ambientalistas dizem temer que a invasão da Terra do Meio esteja abrindo um novo corredor de desmatamento, ameaçando fragmentar um dos últimos trechos intactos de floresta da região e abrir as portas para a destruição em outras áreas de conservação que ficam além dela, como a Floresta Estadual do Iriri. As atuais invasões também representam uma ameaça aos povos das Terras Indígenas vizinhas de Xipaya, Kukuaya e Cachoeira Seca, que dependem da floresta para sobreviver.

E a destruição desenfreada é emblemática de um ataque mais amplo às áreas protegidas, um legado que muitos atribuem ao ex-presidente Jair Bolsonaro, defensor da abertura da Amazônia a atividades de mineração, extração de madeira e pecuária. Durante os quatro anos em que esteve no poder, de 2019 a 2022, o desmatamento em Unidades de Conservação federais aumentou em 130%, enquanto seu discurso favorável aos criminosos os estimulava a reivindicar a posse de fatias da floresta tropical.

“Nos últimos quatro anos, a destruição fugiu do controle”, disse à Mongabay Nilo D’Ávila, diretor de campanhas do Greenpeace Brasil. “O que a gente enxerga hoje é realmente uma epidemia de desmatamento em unidades de conservação.”

Briga por terras

A Terra do Meio fica no coração da pecuária brasileira, abrangendo os municípios de Altamira e São Félix do Xingu. Este último possui o maior rebanho de bovinos do país, com 2,4 milhões de cabeças. Desde o final da década de 90, a floresta da região deu lugar rapidamente a pastagens – inicialmente, com a chegada de pecuaristas de outros estados em busca de terras e, depois, com a luta para expandir suas propriedades.

A Terra do Meio, assim como grande parte do mosaico da Bacia do Xingu, foi criada no início dos anos 2000 para proteger florestas que desapareciam em função desse desenvolvimento rápido que ocorre na região. O corredor também deveria compensar os danos ambientais e sociais causados por megaprojetos como a pavimentação da rodovia BR-163 e a hidrelétrica de Belo Monte.

Mas ambientalistas dizem que as proteções não estão conseguindo impedir incursões na Terra do Meio, com o desmatamento transbordando da vizinha Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, uma reserva de uso sustentável que, nos últimos anos, tornou-se a fatia mais desmatada da Amazônia Brasileira. Desde 2006, a APA, destinada a funcionar como zona de amortecimento para áreas ecologicamente importantes, como a Terra do Meio, perdeu 30% de sua cobertura florestal.

“Há um forte movimento de desmatamento vindo da APA e avançando na direção desse corredor de áreas protegidas”, disse à Mongabay Thaise Rodrigues, analista do Instituto Socioambiental (ISA). “Está colocando uma pressão nas áreas que deveriam ser totalmente protegidas.”

Com a redução dessa zona de amortecimento, madeireiros ilegais estão invadindo a Terra do Meio em busca de madeiras valiosas. Enquanto isso, especuladores desmatam trechos de floresta dentro da reserva, na esperança de que as proteções sejam afrouxadas e sua posse sobre essas terras seja reconhecida mais adiante.

No ano passado, invasores também abriram uma estrada de 43 quilômetros atravessando a Terra do Meio e penetrando na Floresta Estadual do Iriri, onde ela encontra outra estrada já existente, que leva a um garimpo ilegal abandonado e que foi reativada recentemente, de acordo com uma análise feita pela Rede Xingu+, um grupo de ONGs que monitora o desmatamento na bacia do Rio Xingu.

Atualmente, crescem os temores de que esse trecho de estrada recém-aberto esteja estabelecendo uma ligação entre São Félix do Xingu e Novo Progresso, um centro de desmatamento ao longo da BR-163, onde a extração ilegal de madeira e o garimpo de ouro impulsionam a economia local. Essa ligação está cortando ao meio a floresta intocada e facilitando o acesso mais profundo ao corredor do Xingu, o que pode abrir as comportas para o desmatamento desenfreado em outras áreas e reservas supostamente protegidas da região.

“A estrada facilita a logística e abre a porta para o desmatamento de áreas mais afastadas”, diz Rodrigues. “A grande preocupação é que essas duas frentes se encontrem e fragmentem esse grande mosaico de vegetação.”

Essa fragmentação florestal está desferindo um golpe nesse canto da Amazônia, que abriga comunidades indígenas vulneráveis e espécies animais em risco de extinção. De acordo com Mariana Napolitano, gerente da WWF Brasil para ciências e estratégia, a Floresta Amazônica também cumpre um papel fundamental no sequestro de carbono da atmosfera e na prevenção das mudanças climáticas, no Brasil e em outros lugares.

“É uma região bastante isolada, que é como o coração da Amazônia, com um bloco florestal muito fechado e consolidado”, disse ela à Mongabay. “É uma região central do bioma pela quantidade de carbono que está armazenada nessas florestas. E, além de tudo, ela é uma região de alta biodiversidade.”

Uma estrada ilegal atravessa o Corredor Socioambiental do Xingu, a partir do Rio Iriri, dentro da área supostamente protegida da Estação Ecológica da Terra do Meio. Foto: Rede Xingu+/divulgação

“Epidemia” de invasão

Durante décadas, o policiamento dessa região remota da Amazônia representou grandes desafios para os órgãos ambientais. Com acesso difícil e poucos fiscais em uma área maior que o estado de Alagoas, esses órgãos têm lutado para conter a destruição.

“Nessa região, a realidade é de uma dificuldade histórica de fazer o controle ambiental”, disse à Mongabay Suely Araújo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima. De 2016 a 2018, Araújo foi presidente do Ibama. “Essa pressão sobre a floresta, seja de desmatamento ou com garimpo irregular, é permanente.”

Recentemente, a polícia tentou reprimir as incursões. Em setembro, as autoridades fecharam um garimpo ilegal de ouro que ocupava 67 hectares dentro da Terra do Meio, destruindo equipamentos dos garimpeiros e colocando a área sob embargo.

Mas essa fiscalização aleatória não conseguiu impedir a invasão da área de preservação. “Não basta fazer operações de vez em quando. Essa é uma região onde o poder público tem que marcar presença o tempo todo”, diz Araújo. “É o único jeito de controlar o desmatamento lá.”

Muitos dos que reivindicam ilegalmente fatias da Terra do Meio o fazem por meio do Cadastro Ambiental Rural, um registro de terras online conhecido pela sigla CAR. Essas autodeclarações devem ser confirmadas pelas autoridades estaduais, mas isso só acontece com uma pequena parte delas. Com o registro de terras em mãos, os especuladores conseguem obter financiamento dos bancos, que será usado para desmatar grandes extensões de floresta.

Embora os proprietários não tenham permissão para declarar, no CAR, terras em reservas protegidas, o número de registros ilícitos dessas áreas explodiu nos últimos anos. Dentro da Terra do Meio, há 1,6 milhão de hectares cadastrados, de acordo com dados de gestão fundiária analisados pelo Imazon.

Muitos dos que fazem essas alegações ilegais de posse sobre áreas situadas dentro da reserva estão registrando grandes extensões de terras, com pelo menos oito declarações no CAR abrangendo mais de 50 mil hectares, de acordo com D’Ávila, do Greenpeace. Um desses registros cobre 460 mil hectares da reserva, observou ele.

Nos municípios de Altamira e São Félix do Xingu, invasores estão abrindo estradas ilícitas na floresta tropical em grande velocidade, permitindo que a destruição penetre mais fundo na Amazônia. Essa estrada corta a APA Triunfo do Xingu, área de preservação de uso sustentável próxima à Terra do Meio, que se tornou o epicentro do desmatamento nos últimos anos. Foto: Ana Ionova/Mongabay

A intenção dos grileiros é degradar a reserva até que as autoridades federais sejam forçadas a retirar seu status de área protegida e entregar os direitos da terra aos posseiros que a reivindicam ilegalmente, diz D’Ávila.

“Esse é um processo que a gente vê em várias regiões da Amazônia: você vai, desmata, bota fogo, bota gado no terreno”, explica ele. “E aí, amplia-se o desmatamento, até que essa unidade não cumpre mais a sua função.”

Ainda assim, os ativistas dizem que há esperança no horizonte. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que assumiu o cargo em 1º de janeiro deste ano, prometeu reprimir o desmatamento e expulsar garimpeiros, madeireiros e pecuaristas ilegais de áreas protegidas. Seu histórico é promissor: em seus dois primeiros mandatos, entre 2003 e 2010, ele implementou um plano plurianual que reduziu o desmatamento em 80% e transformou o Brasil em líder mundial no combate à destruição das florestas.

“Hoje, a herança que o governo Lula pega é de descontrole total”, diz Araújo. “Mas a gente sabe qual é o caminho a seguir. A gente conseguiu [diminuir o desmatamento] no passado.”

Apenas algumas semanas após tomar posse, Lula deu passos iniciais importantes para repetir esse êxito. Ele tirou a poeira de seu elogiado plano plurianual, abandonado por Bolsonaro, e restaurou o Fundo Amazônia, suspenso em 2019, em meio a um grande aumento do desmatamento, que levou ao congelamento de 500 milhões de dólares. Os fiscais também começaram a trabalhar rapidamente, realizando as primeiras missões nos estados do Pará, Amazonas e Acre.

Ainda assim, ativistas dizem que reverter anos de negligência ambiental exigirá que o Governo Federal una forças com as autoridades estaduais e invista pesadamente no combate às atividades ilícitas na Amazônia, bem como na punição dos responsáveis. E impedir a destruição futura exigirá a criação de novos modelos econômicos que convençam as comunidades da região, onde a carne bovina e o ouro costumam ser os motores do crescimento, a manter a floresta em pé, diz Napolitano, da WWF Brasil.

“A gente está com a floresta muito mais degradada”, afirma Napolitano. “Temos uma janela de oportunidade, mas vai acabar logo. É preciso tomar ações concretas e imediatas, enquanto ainda há tempo.”

Este texto foi originalmente publicado pela Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Equipe eCycle

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