Por Rodrigo de Oliveira Andrade, com Sarah Schmidt em Revista Pesquisa FAPESP – Pessoas alinhadas à direita conservadora foram as que mais se engajaram na difusão de notícias falsas e informações imprecisas sobre a Covid-19 no Twitter, segundo levantamento feito no auge da pandemia por pesquisadores da Fundação Getulio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro. Eles avaliaram 3,3 milhões de publicações na rede social entre janeiro e maio de 2021. Com base na análise dos links e dos indivíduos que os compartilharam, identificaram quatro agrupamentos de perfis (ver gráfico). Um dos grupos, formado por políticos, blogueiros e ativistas da direita socialmente conservadora – equivalente a 21,5% da amostra –, respondeu por quase metade das interações analisadas. Na maioria das vezes, eles defendiam o uso de medicamentos que não têm efeito contra o novo coronavírus (Sars-CoV-2).
As postagens feitas pelos usuários desse agrupamento foram as que mais geraram comentários e compartilhamentos. Elas também circularam por mais tempo na rede social, remetendo quase sempre a informações produzidas por sites com aparência jornalística, mas com conteúdo enviesado, que buscavam atribuir algum lastro científico às suas asserções e posicionamentos. “Essas publicações apresentavam links para páginas anônimas e devotadas à disseminação de informações falsas ou intencionalmente distorcidas com o propósito de tentar legitimar a eficácia dos medicamentos que integram o que se convencionou chamar de tratamento precoce”, explica o sociólogo Victor Piaia, da Diretoria de Análise de Políticas Públicas (Dapp) da FGV, um dos autores do levantamento. O trabalho foi desenvolvido no âmbito do projeto Democracia Digital: Digitalização e Esfera Pública no Brasil, que tem apoio da embaixada da Alemanha em Brasília e do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha.Entrevista: Victor Piaia00:00 / 22:58
Esses links costumam se ancorar em manchetes exageradas. O que circulou por mais tempo na rede social no período remetia para o site ivmmeta.com, que, em março, divulgou um estudo “atestando” a eficácia do parasiticida ivermectina contra o novo coronavírus. A notícia ganhou fôlego na rede social, gerando um engajamento elevado entre os usuários, o que chamou a atenção de agências de checagem de fatos. Uma delas verificou que o estudo era, na verdade, uma síntese de resultados de outras pesquisas feita pelo próprio site. O levantamento apresentava diversas falhas metodológicas – agrupava estudos não comparáveis, muitos publicados em formato de preprint, sem revisão por pares – e ignorava os resultados de trabalhos robustos que não identificaram efeitos significativos no uso do fármaco contra o novo coronavírus. “A conta responsável por lançar o conteúdo foi suspensa, mas o link para o site continuou sendo compartilhado, circulando na rede por 159 dias”, diz Piaia.
Outro link com ampla circulação entre os perfis desse agrupamento remete a um estudo publicado em 2005 na revista Virology Journal. Segundo a manchete que o acompanhava, o trabalho comprovaria a eficácia do antimalárico hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. A equipe de checagem da agência de notícias Reuters, porém, verificou que o experimento havia sido feito em animais, não em humanos, e que tinha como foco o Sars-CoV, causador da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), uma doença diferente da Covid-19, provocada pelo Sars-CoV-2. Piaia esclarece que os usuários desse agrupamento, mais do que os dos outros, têm dificuldade para entender como a ciência funciona. “Ao mesmo tempo”, ele diz, “nota-se que esses usuários valorizam a credibilidade da ciência e a usam para tentar embasar seus posicionamentos e legitimar suas opiniões”. Não raro, as postagens também se utilizam de declarações de “especialistas” internacionais para embasar a eficácia dos remédios, como se o fato de serem do exterior lhes conferisse maior confiabilidade.
Para Raquel Recuero, pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Mídia, Discurso e Análise de Redes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Midiars-UFRGS), os resultados do estudo da FGV reforçam as conclusões de outras pesquisas, segundo as quais estratégias discursivas específicas, como a de autoridade científica, estão sendo amplamente utilizadas nas redes sociais para tentar legitimar a disseminação de informações falsas. “Essa é uma estratégia comum e muito usada na pandemia como forma de contrapor os cientistas com argumentos pseudocientíficos, quase sempre alegando uma outra interpretação”, ela diz. Esses trabalhos constataram ainda que o usuário que dissemina desinformação tende a ser mais engajado, compartilhando e comentando esses conteúdos com muito mais frequência. “A análise desses estudos indica que a probabilidade de um link defendendo o uso da hidroxicloroquina contra a Covid-19 ser compartilhado no Twitter é quase três vezes maior do que a de um link com algum conteúdo desafiando essa premissa.”
A resiliência da defesa da hidroxicloroquina e da ivermectina é uma característica brasileira. Em outros países, esses fármacos deixaram de atrair atenção quando se demonstrou a sua ineficácia – a desinformação nas redes sociais, nesses casos, passou a recair principalmente sobre os supostos riscos das vacinas. Em Portugal, o site SciMed – Ciência Baseada na Evidência se destacou ao denunciar e combater a desinformação propagada por profissionais da saúde ligados a terapias alternativas – um grupo denominado Médicos pela Verdade afirmava, por exemplo, que os testes para detectar Covid-19 não eram confiáveis e que a epidemia estava superdimensionada. “São, na maioria, pessoas com ligações com a pseudociência”, disse o médico João Júlio Cerqueira, criador do site, em entrevista ao site Polígrafo. A Ordem dos Médicos de Portugal abriu processos disciplinares contra alguns desses profissionais.
Uma das características mais marcantes da dinâmica de publicação e compartilhamento no Twitter, segundo o estudo da FGV, é o fato de ela se restringir a públicos específicos. Esse caráter endógeno é percebido na comunidade que defendeu a eficácia do tratamento precoce – ainda que se manifeste também no agrupamento de usuários situados à esquerda do espectro, composto por políticos, celebridades e ativistas sociais de oposição ao governo federal. “O problema é que os links de veículos tradicionais de imprensa e de agências de checagem só conseguem penetrar os agrupamentos em que a desinformação circula quando o conteúdo divulgado está em linha com as opiniões e as ideologias de seus usuários”, afirma Felipe Soares, pesquisador do Midiars-UFRGS. “Na maioria das vezes, os links produzidos em cada bolha, seja de direita ou de esquerda, tendem a circular apenas entre os usuários que a compõem.” Esse fenômeno, segundo ele, resulta do fato de a pandemia no Brasil, como em outros países, ser percebida por vários grupos como um assunto político-ideológico e não como uma questão de saúde pública. “A discussão sobre as estratégias de tratamento e ações de contenção do vírus está polarizada e, por isso, tende a ser confundida como uma questão de filiação político-partidária”, destaca Soares.
A discussão sobre desinformação nas redes sociais ganha contornos mais complexos à medida que seus desdobramentos são estudados. Um dos pontos mais problemáticos diz respeito à fronteira entre o que é informação falsa e o que é informação imprecisa. Há casos em que a notícia tem um fundo de verdade, mas é apresentada fora de contexto ou é acompanhada de interpretações extremas. “Muitos usuários não percebem essas diferenças”, afirma Piaia. “Frequentemente, as pessoas compartilham publicações simplesmente porque elas reforçam seu ponto de vista.” E há também indivíduos que disseminam desinformação em prol de vantagens econômicas, influência e prestígio. Houve casos recentes de influenciadores digitais que compartilharam informações falsas para ganhar dinheiro. Conforme a Agência Pública informou em março, o Ministério da Saúde e a Secretaria de Comunicação repassaram mais de R$ 1,3 milhão para personalidades da internet divulgarem campanhas sobre a Covid-19 em suas redes sociais – R$ 23 mil foram para aqueles que falavam sobre “atendimento precoce”.
Mesmo para os pesquisadores é difícil apontar quem são os propagadores de notícias falsas ou mesmo identificar suas motivações. Isso porque as ferramentas que eles usam para levantar os dados de suas amostras são automatizadas e se baseiam na identificação de palavras-chave. A fronteira entre os perfis de pessoas reais e os controlados remotamente, os perfis robôs, também é nebulosa: segundo Piaia, existem hoje nas redes sociais muitos perfis reais que se comportam como robôs e robôs cada vez mais parecidos com usuários reais. “As metodologias de detecção necessitam de constante aprimoramento”, ele diz. “Mas é possível verificar que muita da desinformação em circulação nas redes sociais nasce em núcleos formados por perfis mais radicais para depois reverberar em perfis de pessoas comuns, que muitas vezes não são radicais, mas enxergam algum sentido nesses conteúdos e os compartilham.”
Outro desafio é compreender os motivos de a direita conservadora quase sempre ser o motor de propagação de desinformação e o porquê de as notícias falsas terem mais aderência a pessoas alinhadas a esse espectro político. Para alguns especialistas, parte da resposta residiria em uma suspeita genérica que esses indivíduos têm em relação a fontes robustas de informação, como a imprensa e os cientistas.
A própria imprensa pode ser usada para espalhar desinformação quando os títulos de reportagens estão mal formulados
Dayane Machado, doutoranda do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), observa que as campanhas de manipulação midiática costumam ser organizadas por grupos pequenos, que produzem materiais com um direcionamento específico e tentam atrair a atenção de celebridades e políticos para conseguir ampliar o alcance. “Uma das formas de atrair a atenção desses perfis com muitos seguidores é dar uma roupagem científica à desinformação, de modo que as pessoas não especialistas acreditem e passem esse material para frente como se ele fosse legítimo”, explica a pesquisadora.
Uma das dificuldades para conter a disseminação de desinformação nas redes sociais é conseguir fazer com que conteúdos de qualidade ganhem alcance, penetrando em bolhas predominantemente alimentadas por notícias falsas. O problema, explica Machado, é que os atores responsáveis pela produção desse tipo de conteúdo – jornalistas, cientistas, educadores etc. – trabalham em ritmos distintos e em um ambiente mediado pela análise criteriosa dos dados, enquanto a produção de notícias falsas, por não ter comprometimento com a verdade, dá-se de uma forma mais rápida e dinâmica. Um estudo publicado na revista Science em 2018 por pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, reforça essa ideia. Eles analisaram 126 mil notícias, falsas e verdadeiras, compartilhadas por aproximadamente 3 milhões de pessoas no Twitter entre 2006 e 2017. Verificaram que as notícias mentirosas são produzidas mais rapidamente e, por isso, parecem ser sempre novas, e que os usuários na rede social são mais propensos a compartilhar informações novas. “As notícias inverídicas chegam mais longe e mais rápido do que as que passaram pelo processo de checagem, e o engajamento em torno delas foi maior quando se tratava de temas políticos”, escreveram os pesquisadores.
A própria imprensa profissional pode ser usada para espalhar desinformação quando os títulos de reportagens estão mal formulados e dão margem a diferentes interpretações, segundo estudo publicado em março na revista M/C Journal. A análise de 20 endereços eletrônicos das reportagens brasileiras mais compartilhadas sobre a pandemia em 1.632 grupos no Facebook em 2020 mostrou que em 43,8% deles os usuários só se interessaram por textos cujos títulos poderiam reforçar algum tipo de informação distorcida. Ainda nesses grupos, 86,2% das mensagens escritas pelos usuários sobre essas reportagens reproduziam algum tipo de desinformação, minimizando a gravidade da pandemia, as medidas de contenção e as vacinas.Educação contra fake news
A educação de mídia pode ser uma ferramenta no combate à desinformação. Nela, o público conhece o processo de produção de uma notícia, vê como é feita a escolha das fontes de informação e como funcionam os veículos. “Com o aumento da circulação de fake news, aumentou o debate sobre a importância da educação midiática”, avalia o jornalista Ivan Paganotti, coordenador do grupo de pesquisa Checagem, Educação, Comunicação, Algoritmos e Regulação, da Universidade Metodista de São Paulo. “Quanto mais as pessoas souberem como funcionam os meios de comunicação, mais poderão consumir notícias de forma crítica.”
Paganotti é professor de atualidades em um colégio de São Paulo. Com os alunos, discute a importância de selecionar fontes verificáveis de informação, convidando-os a refletir sobre as notícias e a procurarem informações em mais de um veículo, com perspectivas complementares. “Sempre digo para se perguntarem como o conteúdo chegou até eles, qual fonte originou a informação, se ela tem credibilidade, se costuma publicar notas quando erra. A informação tem espaço para o contraditório – se uma pessoa foi denunciada, por exemplo, ela foi ouvida? A data de publicação é recente? Esses elementos ajudam a perceber se o conteúdo é confiável”, explica.
Em 2018, Paganotti e colegas pesquisadores criaram, com apoio do Facebook, o curso gratuito on-line Vaza, Falsiane. Além de explicar as armadilhas da desinformação, em 2021 o curso ganhou um módulo especial sobre informações falsas e pandemia. A experiência com o projeto foi detalhada em um artigo publicado em 2021 na revista Intexto, da UFRGS. Com perfis nas principais redes sociais, o curso publica posts com alertas e dicas bem-humoradas. “Não podemos combater a desinformação só no nosso site, precisamos ir à guerra no território em que ela circula”, diz ele.
Artigo científico
Vosoughi S., Roy D. & Aral S. The spread of true and false news online. Science. mar. 2018.
Este texto foi originalmente publicado por Agência Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.
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