Noticiário retrata grande parte das ameaças à conservação de cervídeos, mas avalia mal algumas delas

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Por André Julião em Agência FAPESP | Um grupo de pesquisadores apoiados pela FAPESP analisou 192 notícias publicadas na internet entre 2011 e 2021 sobre as espécies de cervídeos brasileiros. O objetivo era avaliar o quanto as ameaças relatadas no noticiário condizem com os verdadeiros riscos à extinção desses animais.

O estudo, publicado na revista Biological Conservation, aponta que as reportagens, listadas na ferramenta de notícias do Google, refletem corretamente a maior parte das ameaças quando se consideram todas as oito espécies que ocorrem no Brasil, mas ignoram, subestimam ou superestimam outras quando o foco são certas espécies.

As notícias dão pesos diferentes para algumas ameaças, comparadas às previstas na lista vermelha de espécies ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), maior referência global sobre espécies em extinção. Além disso, ignoram a transmissão de doenças por animais domésticos e a baixa fecundidade como fatores que impactam a viabilidade dos cervídeos.

“Fizemos um ranking das ameaças contidas nos textos noticiosos e outro das listadas pela IUCN. Parte das vezes, o noticiário cobre problemas que condizem com o que os estudos científicos determinam como riscos à extinção. Em outras, porém, as notícias superestimam o efeito dos atropelamentos, por exemplo, e subestimam o efeito da transmissão de doenças do gado”, explica Rúbia Ferreira dos Santos Morini, primeira autora do artigo e atualmente mestranda no Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp).

Morini teve bolsas da FAPESP durante a graduação na Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista (FCAV-Unesp), em Jaboticabal, uma delas especificamente no Núcleo de Pesquisa e Conservação de Cervídeos (Nupecce).

Ameaças

Os grupos de cervídeos brasileiros possuem diferenças que podem se refletir em maior ou menor vulnerabilidade a determinadas ameaças. Por isso, os pesquisadores as separaram em três grupos. No grupo A, os riscos de extinção consideraram todas as espécies reunidas.

O grupo B foi composto pelas espécies do gênero Mazama, como veado-mateiro (Mazama americana) e veado-mateiro-pequeno (Mazama jucunda), que vivem em florestas e são bastante impactados pela fragmentação de hábitats, como a Mata Atlântica, por exemplo.

Outras espécies que ocorrem no Brasil (grupo C), o cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus), o veado-campeiro (Ozotoceros bezoarticus) e o veado-de-cauda-branca (Odocoileus virginianus) são de ambientes mais abertos, como o Cerrado e o Pantanal.

Os autores fizeram dois rankings, elencando as ameaças de 1 a 6, da menos para a mais relevante. O primeiro ranking foi baseado na lista vermelha de espécies ameaçadas da IUCN, enquanto outro foi construído de acordo com a frequência que as ameaças aparecem no noticiário analisado.

Por meio de análises estatísticas, fez-se a correlação entre a importância que a IUCN e o noticiário davam para cada ameaça. No grupo A, que inclui todas as espécies, a correlação foi alta, com caça, perda de hábitat e fragmentação e morte por ataque de cachorros, respectivamente, coincidindo como as três principais ameaças.

No entanto, as notícias subestimaram as doenças transmitidas pelo gado e superestimaram os atropelamentos, bastante presentes no noticiário. Segundo a IUCN, porém, esse risco é menos importante do que a própria baixa eficiência reprodutiva dos cervídeos, que dão à luz a poucos filhotes por ano.

“Os atropelamentos ameaçam também a vida das pessoas, talvez por isso chamem tanto a atenção dos leitores e ganhem tanto destaque”, pontua Márcio Leite de Oliveira, que fez estágio de pós-doutorado no Nupecce com bolsa da FAPESP e coordenou o estudo. Atualmente, ele atua como pesquisador na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Nos grupos B e C, os resultados foram mais desanimadores. A correlação entre as ameaças reais e as reportadas na imprensa foi fraca nas espécies florestais (gênero Mazama), apenas com as mortes por cachorros coincidindo em grau de importância.

Enquanto caça e perda de hábitat são para esses grupos as principais ameaças, respectivamente, de acordo com a IUCN, elas se invertem no noticiário por conta do grande número de relatos de invasão de cidades pelos cervídeos e pela dificuldade em reportar a caça.

Nas outras espécies, essa confusão também ocorreu. Já os ataques de cachorros, doenças, atropelamentos e baixa eficiência reprodutiva ganharam na imprensa o mesmo destaque, o que não condiz com as ameaças reportadas pela IUCN, que põe as mortes por ataques de cães como mais perigosas do que as outras ameaças.

“Quando olhamos especificamente para essa ameaça, predação por cães domésticos, notamos uma discrepância elevada entre sua presença na mídia, talvez por ser invisível ao homem, em relação aos casos reportados por canais oficiais ou redes científicas”, ressalta Oliveira.

Para os autores do estudo, também pode haver discrepâncias regionais, uma vez que a maioria das notícias analisadas tem origem no Sudeste do Brasil, onde são maiores a densidade humana e os números de usuários de internet e smartphones.

Erros comuns

Os pesquisadores destacam a frequência de informações errôneas no noticiário, que podem atrapalhar os esforços de conservação. Notícias sobre filhotes encontrados por humanos, como se fosse abandono ou morte da mãe, por exemplo, validam a captura e a manutenção dos animais em cativeiro.

A literatura científica mostra, porém, que os cervídeos podem deixar o filhote temporariamente, a fim de buscar alimento, e voltar para o mesmo lugar onde o deixaram.

Os pesquisadores notam ainda que, embora seja frequentemente reportado pela imprensa o encontro de animais em áreas urbanas, não é feita uma correlação com a perda de hábitat pela expansão das cidades e da atividade agrícola.

“É importante que as notícias explorem as causas das situações relatadas. Assim, os leitores conseguem associar, por exemplo, a presença de cervídeos em áreas urbanas com a degradação de áreas naturais”, ressalta Morini.

Por fim, a falta de reportagens sobre doenças que afetam os cervídeos como a língua azul, causada por um vírus transmitido por mosquitos que picam bois e vacas doentes, contribui para que as pessoas não isolem os animais domésticos. Com isso, mantêm o vírus em circulação.

“Esperamos com esse trabalho ressaltar a importância da imprensa em fornecer informações sobre as ameaças à vida selvagem, assim como influenciar tanto a mídia quanto a comunidade científica a trabalhar de forma colaborativa para a conservação das espécies”, encerra Oliveira.

Os autores do estudo incluem ainda Rullian César Ribeiro, atualmente bolsista de doutorado no Nupecce; Isabela Pivetta Trentini, Eluzai Dinai Pinto Sandoval e Amanda Rosa da Silva.

O artigo Do media reports reflect the real threats to wildlife? está disponível para assinantes em: www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0006320722004062.


Este texto foi originalmente publicado pela Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Carolina Hisatomi

Graduanda em Gestão Ambiental pela Universidade de São Paulo e protetora de abelhas nas horas vagas.

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