Por Christina Queiroz, da Revista Pesquisa Fapesp | Não é possível fazer um bolo sem quebrar os ovos. O engenheiro José Antônio Perrella, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Guaratinguetá, recorre à velha máxima para indicar o sentido por trás do conceito de nexo água-energia-alimentos. Ao fazer a alusão, Perrella, que desenvolveu um projeto para avaliar a compreensão do conceito do nexo por jovens de 10 a 24 anos no Vale do Paraíba (SP), quer mostrar como, historicamente, desafios no setor alimentar, por exemplo, têm sido resolvidos sem considerar possíveis reflexos em sistemas energéticos e hídricos, caso da ampliação de áreas de cultivo de determinados alimentos, que gera aumento no consumo de água, podendo impactar sua disponibilidade para outros usos. A situação começou a mudar há cerca de uma década, quando a ideia de nexo se disseminou no meio acadêmico, depois de uma conferência internacional sobre a relação entre os três elementos organizada em Bonn, na Alemanha, em 2011. Com potencial para auxiliar a gestão de crises, a nova abordagem prevê a busca por soluções integradas e transdisciplinares para resolver problemas hídricos, energéticos e alimentares, sem que a mitigação de uma adversidade resulte no agravamento de outra. Adaptados ao contexto brasileiro, estudos sobre o conceito buscam incentivar a formulação de políticas públicas que também levem em consideração as desigualdades sociais características da realidade nacional.
Correlações entre crises energéticas e fome passaram a ser estudadas na década de 1970, mas a ideia do nexo entre água, energia e alimentos se estabeleceu como metodologia de pesquisa em 2008, durante o Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos, na Suíça. Na ocasião, economistas reunidos no evento discutiram possíveis soluções para problemas hídricos e o desenvolvimento de fontes alternativas de energia, como forma de reduzir o uso de combustíveis fósseis. Inicialmente mobilizada em estudos das ciências naturais, da engenharia e da economia, a ideia ganhou amplitude a partir de uma publicação do cientista ambiental Holger Hoff, do Instituto Potsdam para Pesquisa de Impacto Climático e do Instituto do Meio Ambiente de Estocolmo, na Suécia, apresentada durante a conferência em Bonn. “Na ocasião, Hoff propôs análises que abarcam a gestão dos três elementos conjuntamente, além de chamar a atenção para as relações que eles estabelecem com situações de pobreza e vulnerabilidade”, explica o biólogo Leandro Luiz Giatti, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP). Segundo Giatti, as reflexões de Hoff possibilitaram o uso da abordagem entre pesquisadores de áreas como geografia e ciências sociais, que passaram a dialogar com engenheiros e biólogos na busca por soluções integradas para gerir crises energéticas, hídricas e alimentares.
Na linha de frente desse processo estão pesquisadores brasileiros que, nos últimos 10 anos, por intermédio de projetos financiados pela FAPESP, se aliaram a instituições de todo o mundo para analisar como o conceito de nexo pode colaborar para a reflexão sobre a realidade de países em desenvolvimento. Gabriela Marques Di Giulio, professora da FSP-USP, é uma dessas pesquisadoras. Segundo ela, a abordagem ganhou projeção no país em análises sobre o setor de biocombustíveis. “Para além de utilizar recursos naturais de forma mais sustentável, por meio de estratégias que permitem, por exemplo, equilibrar o uso da terra para produção de cana e alimentos, no Brasil o nexo pode servir, especialmente, para embasar debates envolvendo a crise climática, a preservação da biodiversidade, a segurança alimentar e a redução da pobreza”, avalia.
Outro exemplo é dado por Giatti. Ele recorda que, em São Paulo, durante crises hídricas, o governo do estado tem investido na captação de água em regiões distantes, caso do sistema Cantareira, que abastece a Região Metropolitana e capta água de nascentes desde o estado de Minas Gerais. “Trazer água de longe demanda um uso maior de energia e costuma gerar conflitos com outros usuários do mesmo manancial. Além disso, as medidas acabam por beneficiar apenas alguns setores, como as indústrias que seguem utilizando volume regular de água mesmo em momentos de crise, enquanto populações vulneráveis de bairros periféricos precisam enfrentar racionamentos severos”, detalha. Apesar de esse tipo de problema ter sempre existido, Giatti observa que a ideia de nexo possibilita novas perspectivas utilizadas para contornar as dificuldades, por meio de uma lógica de escassez interdependente.
Com reflexão similar, o engenheiro Tadeu Fabrício Malheiros, da mesma instituição, explica que grande parte dos estudos sobre o nexo se centrou em temas estratégicos para a economia, envolvendo hidrelétricas e o setor de biocombustíveis. “No entanto, pesquisas que analisam, por exemplo, os efeitos do processo de urbanização sobre os três elementos ainda são incipientes”, detalha. Nesse sentido, ele chama a atenção, por exemplo, para a necessidade de se investigar os impactos e encaminhamentos de soluções em áreas de vulnerabilidade urbana e suas interfaces com o acesso à água, energia e segurança alimentar.
Publicado no início deste ano, como desdobramento de pesquisa elaborada por Malheiros, Di Giulio, outros estudiosos da FSP-USP e especialistas da Áustria, Alemanha, África do Sul, Suíça, Países Baixos e Estados Unidos, o livro The nexus water-energy-food – What the Brazilian research has to say (FSP-USP, 2022) reúne estudos de casos que mobilizaram o novo conceito para lidar com desafios em meios urbanos, zonas do semiárido, da Amazônia e Mata Atlântica.
Entre 60% e 70% do uso global de água doce envolve atividades de agricultura irrigada como as praticadas no Brasil, país que tem entre seus pilares econômicos a exportação de commodities agrícolas, observa a engenheira Maria do Carmo Sobral, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). De acordo com ela, mais de 40% das exportações nacionais de fruticultura saíram, em 2021, de polos agrícolas próximos à cidade pernambucana de Petrolina, que utilizam água do rio São Francisco. “Para garantir que o ecossistema aquático permaneça vivo, especialmente em situações de crise, é preciso contar com uma vazão ambientalmente equilibrada”, detalha a engenheira.
Em projeto iniciado em 2019 sobre a gestão integrada de bacias hidrográficas do semiárido em um contexto de mudanças climáticas, Sobral elaborou estudo de caso baseado no rio São Francisco, analisando os múltiplos usos da água conforme cenários desenhados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). “O rio cruza sete estados, que dependem da gestão adequada dos recursos hídricos para conseguir atender a todas as suas demandas”, comenta. “Em regiões secas, como o Nordeste brasileiro, as chuvas são esparsas, mas, quando acontecem, têm sido torrenciais”, diz. Ela cita o caso da Região Metropolitana do Recife que, em junho, registrou em um único dia o volume de chuva previsto para todo o mês, ocasionando enchentes, deslizamentos e mortes.
Considerando os cenários desenhados pelo IPCC, uma das diretrizes levantadas pelo estudo de Sobral diz respeito à necessidade da criação de estratégias flexíveis na gestão dos recursos hídricos. Segundo ela, os atuais processos de controle ambiental são estáticos e estabelecem licenças prolongadas, de cinco a 15 anos, para regulamentar a retirada de água de bacias hidrográficas. “É preciso criar lógicas de gerenciamento ambiental mais ágeis, que possam ser ajustadas em função da vazão do rio, considerando contextos de excesso ou escassez de água”, defende. As informações sobre a necessidade de criação de estratégias flexíveis podem colaborar com o trabalho de instituições como a Agência Nacional das Águas (ANA), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o comitê da baía do São Francisco.
Outro estudo de caso analisado no livro editado pela FSP-USP envolve a zona sul de São Paulo, cidade que tem cerca de 2,2 mil quilômetros quadrados (km2) circundados por áreas de relevância ambiental. “Os mananciais da zona sul abastecem 5,6 milhões de pessoas. Essa zona apresenta grande potencial para expansão de áreas cultiváveis. Investimentos para preservar sua vocação agrícola configuram importante estratégia para evitar a perda de biodiversidade e de recursos hídricos de toda a cidade”, afirma o geógrafo Fabiano de Araújo Moreira. Em recém-concluída pesquisa de pós-doutorado, financiada pela FAPESP, o pesquisador criou indicadores para mensurar os benefícios do projeto Ligue os Pontos, da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento, para promover o desenvolvimento sustentável do território rural. De acordo com Moreira, inicialmente o programa era avaliado com base em indicadores que consideravam somente variações na renda de agricultores e na quantidade de propriedades rurais. “No entanto, por meio deles, não era possível mensurar se o programa estava, de fato, melhorando a qualidade de vida das pessoas que vivem no entorno rural da zona sul”, diz.
A partir das possibilidades trazidas pela ideia do nexo, que estimulam a busca por ganhos na produção de alimentos sem prejudicar sistemas hídricos e energéticos do entorno, Moreira, em diálogo com representantes da secretaria, da Casa da Agricultura Ecológica do distrito de Parelheiros, das Áreas de Proteção Ambiental (APA), na zona sul da cidade, e agricultores, estabeleceu 34 indicadores para avaliar a eficácia do Ligue os Pontos. Com isso, passaram a ser analisados novos elementos, como a questão da utilização de agroquímicos nas propriedades, o atendimento de agricultores pela rede de saneamento, a diversidade de produtos cultivados e a quantidade de água utilizada, além do consumo de energia elétrica nas residências e de combustível para transportar os produtos agrícolas. “Algumas áreas de pesquisa utilizam o nexo tanto para investigar como para obter mais eficiência e reduzir custo na exploração de recursos naturais. Por sua vez, estudos na área de geografia têm se apropriado da abordagem para pensar em como garantir o acesso de populações vulneráveis a esses recursos”, comenta Moreira. Segundo ele, outro viés dos geógrafos tem sido refletir sobre implicações territoriais de ações setorizadas, apoiados no nexo. “Ocupações irregulares próximas a represas, por exemplo, repercutem em todo o município”, relata.
Em outro estudo financiado pela FAPESP, o ecólogo Rodrigo Augusto Bellezoni, pesquisador da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eaesp-FGV), analisou como florestas urbanas, praças e árvores, telhados verdes e mecanismos para captar água de chuva em oito cidades do mundo, incluindo São José dos Campos e Florianópolis, além de municípios na África, Índia e Ásia, afetam as relações entre sistemas hídricos, energéticos e alimentares. “Em relação a esses sistemas verdes nas cidades, o estudo identificou a agricultura urbana como uma das estruturas mais estratégicas para a promoção do nexo água-energia-alimentos, especialmente em países do Sul global, devido aos efeitos positivos causados nos três sistemas. Se ao menos uma parte dos alimentos passa a ser produzida próximo ao local de consumo, a demanda energética é menor, especialmente no transporte, assim como o uso da água, já que essas hortas costumam ser irrigadas com água de chuva”, justifica.
Como exemplo de política pública que permite fomentar e preservar infraestruturas verdes, ele menciona o Decreto n° 61.143, estabelecido pela prefeitura de São Paulo, em março, com o objetivo de criar um programa de pagamento por prestação de serviços ambientais em áreas de proteção de mananciais da cidade. Pela iniciativa, proprietários ou donos de imóveis que investem na manutenção, recuperação, recomposição e enriquecimento de remanescentes florestais e nascentes, matas ciliares e áreas de preservação permanente podem receber remunerações. “Em sinto-nia com a iniciativa paulistana, São José dos Campos, no interior do estado, também debate a criação de um mecanismo legal similar para reconhecer e valorizar o trabalho de pessoas e organizações que prestam serviços ambientais”, finaliza Bellezoni.
Projetos
1. (Re)connect the nexus: Young Brazilians’ experiences of and learning about food-water-energy (n° 15/50226-0); Modalidade Projeto Temático; Convênio Confap; Newton Fund, com FAPESP como instituição parceira no Brasil; ESRC, UKRI; Pesquisador responsável José Antônio Perrella Balestieri (Unesp); Investimento R$ 620.527,33.
2. Resiliência e vulnerabilidade quanto ao nexo urbano de alimentos, água, energia e ambiente (ResNexus) (n° 15/50132-6); Modalidade Projeto Temático; Convênio ESRC, UKRI; Organização Holandesa para a Pesquisa Científica (NWO); Pesquisador responsável Leandro Luiz Giatti (USP); Investimento R$ 1.081.327,37.
3. Globally and LOCally-sustainable food-water-energy innovation in Urban Living Labs – Glocull (n° 17/50423-6); Modalidade Auxílio à pesquisa – Regular; Convênio Belmont Forum; Pesquisadores responsáveis Tadeu Fabricio Malheiros e Gabriela Di Giulio (USP); Investimento R$ 763.198,00.
4. Inovações alimento-água-energia globalmente e localmente sustentáveis em Laboratórios Urbanos vivos ‒ Glocull ‒ projeto sistema de indicadores para avaliação de sustentabilidade em projetos integrados urbanos sobre alimento/água e energia (n° 18/21249-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Convênio Belmont Forum; Pesquisadores responsáveis Tadeu Fabricio Malheiros e Gabriela Di Giulio (USP); Beneficiário Fabiano de Araújo Moreira; Investimento R$ 337.062,21.
5. Understanding innovative initiatives for governing food, water, and energy nexus in cities – IFWEN (n° 17/50425-9 e nº 18/20057-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Convênio Belmont Forum e JPI Urban Europe como parte da Sustainable Urbanisation Global Initiative (Sugi 11221480); Pesquisador responsável José Antonio Puppim de Oliveira (FGV); Beneficiário Rodrigo Augusto Bellezoni; Investimento R$ 406.314,18.
6. Understanding innovative initiatives for governing food, water, and energy nexus in cities – IFWEN (n° 17/50425-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Convênio Belmont Forum e JPI Urban Europe como parte da Sustainable Urbanisation Global Initiative (Sugi 11221480); Pesquisador responsável e líder do consórcio: José Antonio Puppim de Oliveira (FGV); Beneficiários: Rodrigo Augusto Bellezoni (n° 18/20057-0), Laura Sílvia Valente de Macedo (n° 18/20160-6); Julio Cesar Zambrano Gutierrez (n° 20/07136-9); Marc Barda Picavet (n° 18/26505-5); Investimento € 1.309.831 (FAPESP, NSF, BMBF, Formas, Start, Most).
Livro
MOREIRA, F. A. et al. The Nexus water-energy-food – What the Brazilian research has to say. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da USP, 2022.
Artigo científico
HOFF, H. Understanding the Nexus. Background paper for the Bonn 2011 Nexus Conference: The water, energy and food security nexus. Estocolmo: Stockholms Enviroment Institute, 2011.
Relatório
MOREIRA, F. A. et al. Relatório técnico: Sistema de indicadores para avaliação de sustentabilidade em projetos integrados urbanos sobre o nexo alimentos-água-energia na zona sul do município de São Paulo. Universidade de São Paulo – Faculdade de Saúde Pública, 2022.
Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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