Pesquisadores brasileiros descobriram uma doença cujos sintomas são semelhantes aos da leishmaniose, porém mais graves, e resistentes ao tratamento. Todos os 150 casos são de Aracaju (SE), com duas mortes. Análises genômicas apontam que o responsável é um parasita de uma nova espécie, ainda sem nome, não pertencente ao gênero Leishmania, que é o protozoário causador da leishmaniose e transmitido por mosquitos flebotomíneos (mosquito-palha).
Ainda não se sabe nada sobre o ciclo de vida ou vetor do novo parasita, embora haja probabilidade de que também seja transmitido por algum inseto. O que já se sabe é que ele se assemelha – mas não é igual – à Crithidia fasciculata, que infecta apenas insetos. A nova espécie, porém, é capaz de infectar humanos e camundongos, como mostraram testes em laboratório.
A descoberta é parte de uma história que começou há vários anos, em outro trabalho que investigava pacientes diagnosticados com leishmaniose no hospital da Universidade Federal de Sergipe (UFS), para tentar entender a resistência genética à doença. Amostras de pacientes eram enviadas para análise na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP pelo professor João Santana Silva e sua equipe. Algumas delas não puderam ser analisadas com as ferramentas disponíveis para leishmânia, desafiando os pesquisadores a aprofundarem as investigações. “Cheguei a pensar que pudesse ter sido cometido algum erro aqui no laboratório, alguma mistura, ou que estivéssemos trabalhando com primers [iniciadores de DNA, um dos recursos usados para fazer sua amplificação] de má qualidade, mas conferimos e refizemos tudo, e não era o caso. Mandamos para outro laboratório especializado no Rio de Janeiro, que também não conseguiu fechar o diagnóstico”, contou ao Jornal da USP.
Ao mesmo tempo, acostumado a lidar com a leishmaniose, com mais de 11 mil pacientes diagnosticados desde 1984, o médico Roque Pacheco de Almeida atendia alguns pacientes que considerava atípicos. Em outubro de 2010, ele recebeu um caso suspeito de leishmaniose visceral, forma mais severa da doença. O homem de 64 anos deu entrada no Hospital Universitário da UFS já em estado grave, o que é incomum. Além disso, os sintomas eram da doença (perda de peso, febre, anemia e aumento do fígado e baço), mas ele não respondeu aos tratamentos convencionais, tendo tido quatro recidivas que resultaram em reinternações. “Na última delas, ele também passou a apresentar lesões cutâneas que são típicas de outra forma da doença, a leishmaniose tegumentar”, lembra Almeida. O paciente acabou morrendo em 2011, em decorrência da doença e de complicações de uma cirurgia para retirada do baço. “Em mais de 30 anos trabalhando com leishmaniose, eu nunca havia visto nenhum caso parecido”, conta o professor da UFS.
Quando finalmente foi feito sequenciamento do genoma do parasita dessa e de outras amostras, além de análises de bioinformática, tudo indicava que os pesquisadores estavam lidando com um novo parasita. De lá para cá foram 150 casos – todos confirmados pelos cientistas – e duas mortes.
As primeiras análises acabam de ser relatadas em artigo na revista científica Emerging Infectious Diseases. Quando o trabalho foi submetido para publicação, há cerca de um ano, ainda não havia certeza se seria uma nova espécie – apenas que não era leishmânia, explica Sandra Maruyama, primeira autora do artigo e atualmente pesquisadora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Com a continuidade da pesquisa, porém, os cientistas têm mais segurança em dizer que se trata de um parasita nunca antes identificado – apesar de ainda restarem muitas perguntas por responder.
“Os dados que estão no artigo abriram uma série de questões que, concomitantemente à submissão, fomos estudando. Hoje temos resultados, ainda não publicados, que nos fazem acreditar que seja sim um novo parasita, de uma nova espécie, e que seja sim uma nova doença, facilmente confundida com a leishmaniose”, disse Sandra Maruyama ao Jornal da USP.
De acordo com Roque Almeida, da USF, um novo parasita explicaria o porquê do aumento da letalidade de supostos casos de leishmaniose visceral no Brasil. E é preocupante, pois pode significar “que estamos diagnosticando casos de leishmaniose visceral, e cuidando dos pacientes com os tratamentos para leishmaniose visceral, quando, na verdade, se trata de uma nova doença, mais grave, e para a qual ainda não existe tratamento específico.”
Os cientistas esperam descrever a nova espécie e nomear a nova doença nos próximos meses. Mais estudos precisam ser feitos para determinar o ciclo de vida do parasita, seus hospedeiros e formas de transmissão. Tudo isso para investir tanto no controle da infecção quanto em tratamentos efetivos para ela.
Para chegar a esses resultados, os cientistas primeiro sequenciaram e depois compararam o genoma do parasita das amostras dos pacientes de Sergipe com o genoma que se tem de referência para espécies de leishmânia e de tripanossomatídeos. “Quando tentamos identificar o parasita pelos métodos tradicionais, comparando-o às espécies conhecidas, vimos que ele não se parecia com nenhuma delas”, diz João Santana, que também integra a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID), um Cepid-Fapesp.
“Ao sequenciar o genoma do novo parasita, soubemos que, de fato, não era leishmânia. Começamos a desconfiar que se tratava de uma espécie ainda não descrita pela ciência. Ele se revelou semelhante, mas não igual, a um outro parasita chamado Crithidia fasciculata“, explica Sandra Maruyama.
Os gêneros Crithidia e Leishmania pertencem à mesma família, da qual também faz parte o Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas. Até o momento, acredita-se que a Crithidia fasciculata infecte só insetos, não mamíferos. Já a nova espécie investigada por Sandra Maruyama e colegas pode infectar camundongos, além de humanos – como eles comprovaram ao cultivar em laboratório parasitas coletados nos tecidos daquele primeiro paciente. “Expusemos os camundongos aos parasitas isolados do paciente, tanto por via intravenosa quanto cutânea [na pele], e descobrimos que ambos infectavam o fígado dos animais”, conta ela. Os parasitas coletados da pele do paciente também causaram lesões na pele dos camundongos.
Após ter o genoma da nova espécie já sequenciado, foi feita outra análise de bioinformática. Assim foi possível fazer o diagnóstico molecular da infecção dos pacientes por esse parasita. “Isso não seria possível com as ferramentas que existem para diagnóstico molecular de leishmânia. Então tivemos necessidade de desenvolver a metodologia para o novo parasita. Não criamos nenhuma técnica nova, mas elaboramos um procedimento novo”, disse ao Jornal da USP.
“Em posse dos dados genômicos do novo parasita, que são os que estão no artigo publicado, foram feitos mais testes com PCR (Reação em Cadeia da Polimerase, da sigla em inglês)”. A PCR é uma reação enzimática muito aplicada em biologia molecular para amplificar em laboratório fragmentos de DNA. Basicamente, é usada para fazer várias cópias do pedaço de DNA que se está interessado em estudar. Primers, ou iniciadores, são usados dentro da reação enzimática para dar especificidade a uma região genômica. “Realizamos uma análise bioinformática (simulação computacional). Elegemos alguns trechos candidatos que pudessem ser específicos deste novo parasita, desenhamos alguns primers – marcadores moleculares – para regiões genômicas que fossem próprias deste parasita, e que não aparecessem no genoma de leishmânias, e testamos por PCR.”
“Também fizemos triagens com a PCR, usando os primers específicos que desenhamos, em uma gama de outras amostras clínicas que o professor Roque compartilhou conosco. Extraímos o DNA dos isolados clínicos e este DNA serviu como um molde para fazer a reação de PCR com essas regiões específicas da nova espécie”, detalhou a pesquisadora. “Daí conseguimos dizer qual parasita estava naquela amostra coletada do paciente. É o que chamamos de tipagem molecular, isto é, identificar uma espécie por métodos moleculares”.
A cientista, que tem apoio da Fapesp para realizar sua pesquisa, planeja em breve realizar a descrição da nova espécie, para poder finalmente nomear a doença.
A Crithidia, espécie com que o parasita estudado mais se assemelha, infecta insetos, principalmente culicídeos (como o culex, o pernilongo doméstico) e anofelinos (como o anopheles, o mosquito-prego), que se alimentam de sangue. “Mas quando estes insetos picam o homem ou qualquer mamífero, a Crithidia não consegue sobreviver, pelo que até hoje se mostrou. Então a grande dúvida que o trabalho gera é: quem será que é o vetor desse novo parasita?”, diz Sandra Maruyama. Afinal, a leishmânia tem como vetor uma outra família de insetos, que são os flebotomíneos (como o mosquito-palha), muito diferentes dos insetos que a Crithidia parasita. “O primeiro indício que este parasita consegue sobreviver no homem é que conseguimos isolá-lo de pacientes, e o segundo é que ele infecta camundongos, como mostramos experimentalmente, nos órgãos – baço e fígado-, e na pele, como aconteceu com os pacientes – apesar dos sintomas em camundongos não se manifestarem como em humanos.”
Perguntada se é possível que ele estivesse circulando entre outros animais e aquele tenha sido o primeiro caso detectado de infecção humana, a pesquisadora diz que sim. “Nós temos que investigar isso agora, fazer parcerias com grupos que tenham amostras de reservatórios silvestres, como algumas espécies de cães silvestres e de raposas. Temos esse método de diagnóstico molecular para identificar o novo parasita, diferenciando de leishmânia. O que precisamos agora é coletar amostras, ou trabalhar com grupos que tenham já estas amostras de sangue, como existem vários no Brasil” diz, ressaltando que é necessário fazer um rastreamento e começar a investigar até onde se estende a presença deste parasita. “A princípio detectamos o parasita nestas amostras de Sergipe, mas não sabemos o quanto isso está distribuído. E, ao mesmo tempo, temos que fazer parcerias com grupos que estudem insetos vetores de doenças, principalmente da leishmânia, e estes insetos hematófagos que a Crithidia parasita, já que ele é tão parecido com ela.”
Outra maneira de fazer isso, acrescenta, é experimentalmente, que é um dos planos do seu grupo para o ano que vem: “testar se os insetos de laboratório podem ser infectados por este parasita e têm a capacidade transmiti-lo, ao se alimentar de seu sangue, para um hospedeiro vertebrado, e este mamífero desenvolver a doença”. Trata-se de algo bem complexo, mas para o que existem técnicas experimentais. Além disso, é necessário que o procedimento seja feito em laboratórios com certificações específicas de biossegurança. “Nós não temos, então precisamos de colaboração com centros que já estejam autorizados, como um departamento do NIH [National Institutes of Health, nos EUA] , para onde pretendemos enviar uma pesquisadora no ano que vem”, planeja a cientista.
“Quanto aos pacientes, temos testado estas dezenas de amostras que recebemos em Sergipe, mas o ideal seria analisar muito mais casos que sejam inconclusivos. Precisamos de números para descartar totalmente que se trate de coinfecções (infecções por mais de um parasita ao mesmo tempo), e também receber amostras de várias outras regiões, até para não ter viés nas análises”, explica, deixando claro o rigor científico com que deve ser tratada uma nova descoberta. “Por ora, além de refinar a análise genômica desta espécie, estamos tentando infectar in vitro das células destas amostras positivas, o que será mais uma prova que o parasita realmente tem uma fase de vida no hospedeiro vertebrado e que pode vir a causar uma doença no homem.”
O artigo Non-Leishmania parasite in fatal visceral leishmaniasis–like disease pode ser acessado neste link.
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