A partir de outubro, embalagens devem indicar, na parte frontal, se possuem grandes quantidades de ingredientes prejudiciais à saúde, como sódio e gordura saturada
Por Elstor Hanzen, da UFRGS | A partir de 9 de outubro deste ano, alimentos e bebidas devem respeitar novo padrão de tabela nutricional: na rotulagem frontal dos produtos, há a obrigação de uma lupa, na metade superior da embalagem, indicando o alto conteúdo de nutrientes prejudiciais à saúde, como o sódio, o açúcar adicionado e a gordura saturada. A tabela de informação nutricional passa a ter padronização do tipo e tamanho de fonte, com letra preta em fundo branco – o que facilita a legibilidade e a visibilidade da informação, garantem especialistas em nutrição –, além de haver melhorias no design.
A supervisora técnica do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Laís Amaral, enfatiza que ainda haverá, obrigatoriamente, a inclusão na tabela da informação de açúcares totais e adicionados e uma coluna com as informações nutricionais por 100 g ou 100 ml do produto, o que permite a comparação entre quaisquer alimentos e bebidas. “Serão mantidas, entretanto, as colunas com as informações por porção e por porcentagem do valor diário (%VD), que podem confundir o consumidor, uma vez que as porções não são comparáveis entre diferentes grupos de alimentos e bebidas e o %VD não representa a recomendação nutricional para todas as pessoas, já que cada indivíduo tem necessidades nutricionais diferentes de acordo com condição de saúde, de atividade física, idade, sexo”, alerta.
Apesar dos avanços, porque sequer havia rótulo destacando os componentes danosos à saúde, representantes da academia e da sociedade civil organizada consideram que as mudanças poderiam ter sido maiores, principalmente em relação ao modelo do destaque dos ingredientes críticos. Segundo a supervisora do Idec, no relatório preliminar de análise de impacto regulatório sobre rotulagem nutricional, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) indicou a rotulagem frontal como a mais adequada à população brasileira – o modelo “alto em [nutriente]” (conforme imagem abaixo), com algumas opções de design, entre elas, a lupa, o triângulo e o octógono, como no Chile.
“Ao final, o modelo selecionado foi o da lupa, que não havia sido implementado em nenhum país e não se mostrava superior a outros modelos em estudos científicos. Além disso, independentemente do número de nutrientes críticos no produto, sempre haverá só uma lupa, diferentemente dos octógonos, por exemplo, que se repetem para cada nutriente crítico em excesso”
De acordo com Laís, o setor produtivo usou ações políticas corporativas para interferir na decisão da Anvisa: “Criou a Rede Rotulagem, cara pública do setor no processo, entrou com ação judicial para atrasar a implantação, fez lobby com tomadores de decisão e pediu adiamento do prazo das discussões”, cita.
O setor industrial contesta e diz que o Brasil foi um dos primeiros países da América do Sul a criar uma normativa específica para a rotulagem nutricional. Por meio de nota emitida pela Gerência de Comunicação, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) afirma que a lupa não foi o modelo defendido pela indústria. “A Rede de Rotulagem participou do processo desde o início com a proposta de um modelo frontal com design de semáforo. Nesse modelo, as informações sobre os nutrientes – açúcar, gordura saturada e sódio – são reforçadas pelas legendas ALTO, MÉDIO ou BAIXO, em letras maiúsculas, e a utilização das cores vermelho, amarelo e verde, como no semáforo de trânsito”, ressalta. Acrescenta que, embora sempre tenha defendido um modelo mais informativo, o aprovado pela Anvisa atende aos objetivos propostos desde o início do processo regulatório. “Para o setor produtivo, o mais importante é um modelo que leve informações ao consumidor, e estamos comprometidos com a implementação das novas regras e com ações educativas para o esclarecimento e a compreensão dos novos rótulos”, afirma a entidade.
A professora aposentada da Faculdade de Medicina da UFRGS e coordenadora do Programa de Extensão Ética em Publicidade no Consumo de Alimentos, Noemia Perli Goldraich, foi uma das principais mobilizadoras do processo de rotulagem no RS. Conforme a médica, qualquer um deles seria melhor ao escolhido, embora o do semáforo da indústria seria mais confuso para o consumidor. “Importante é mostrar que a lupa, se o produto tiver um, dois ou três ingredientes críticos, a representação não muda, porque será só uma lupa. No caso dos triângulos, modelo defendido por nós, seria diferente, porque seriam um, dois, três triângulos, com um impacto completamente diferente. Mesmo crianças e analfabetos poderiam identificar quais os produtos que seriam mais prejudiciais à saúde”, compara.
Resultado de longo processo de debates
O processo de revisão da rotulagem nutricional de alimentos embalados iniciou em 2014, com a construção de um grupo de trabalho no âmbito da Anvisa, que contou com a participação de representantes do governo, da academia, da sociedade civil organizada e do setor produtivo. O grupo foi finalizado em 2016, após discussões sobre o que deveria ser aprimorado e como a rotulagem nutricional de alimentos informaria adequadamente o consumidor. Em 2017, a Anvisa recebeu propostas de aprimoramento da rotulagem nutricional de alguns atores, como a Abia e o Idec, em parceria com o Laboratório de Sistemas de Design da Informação da Universidade Federal do Paraná (LabDSI/UFPR).
A regulação começou em dezembro de 2017 e, em 2018, ocorreu uma Tomada Pública de Subsídios (TPS), uma espécie de consulta pública, com um caráter mais técnico para coletar informações para a nova norma de rotulagem nutricional. A Anvisa indicou o rótulo frontal de advertências como o modelo mais adequado à população brasileira, que foi defendido pela sociedade civil organizada e pela academia sem conflitos de interesse, como o Idec e o LabDSI/UFPR. Em 2019, houve uma série de diálogos setoriais promovidos pela Anvisa para discutir tecnicamente alguns pontos da norma, que foi tema de consulta pública no final do mesmo ano, com a proposta de um modelo de rotulagem frontal no formato de lupa.
A nova norma foi aprovada em outubro de 2020, com a lupa. No entanto, a regra sofreu modificações em seu desenho e nos pontos de corte para selecionar quais alimentos e bebidas receberiam o rótulo frontal para os nutrientes indicados.
“O setor produtivo se utilizou de diversas táticas e argumentos para tentar atrasar o processo e impor um modelo menos efetivo de rotulagem nutricional, enquanto a sociedade civil organizada e a academia, sem conflitos de interesse, ofereceram evidências científicas e campanhas de comunicação em prol do melhor modelo possível para a saúde pública e para a garantia do direito à informação adequada para o consumidor”
Ultraprocessados e recomendação à saúde
De modo geral, os produtos ultraprocessados são os que devem ser evitados, porque seu consumo está relacionado ao desenvolvimento de excesso de peso, obesidade e doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, doenças cardiovasculares e tipos de câncer. Esses produtos têm grandes quantidades de sal, açúcar e gordura, além de serem compostos de ingredientes de uso exclusivamente industrial (como amidos modificados e gorduras hidrogenadas) e aditivos alimentares (como corantes, aromatizantes e adoçantes). Tais componentes fazem mal à saúde da população e também prejudicam o meio ambiente pela maneira como são produzidos e consumidos. São exemplos desses alimentos biscoitos, macarrão e sopa instantâneos, salgadinho de pacote, guloseimas, refrigerantes e sucos artificiais.
A pesquisadora da área de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis da USP Ana Paula Bortoletto reforça a relevância de não se deixar seduzir pelas informações da publicidade nas embalagens nem cair na conversa de jogos, brindes, personagens e cores usados para atrair as crianças. Onde não precisa haver dúvida, destaca, é no consumo de alimentos in natura ou minimamente processados, como verduras, legumes, frutas, ovos, cereais e leguminosas, e de preparações culinárias a partir desses alimentos. Além disso, produtos alimentares de risco a doenças crônicas, assim como o tabaco, precisam ser mais regulados, alerta a pesquisadora. “Para qualquer marca, teria de ser usado o mesmo tipo de embalagem, aí você evita o abuso da publicidade pela imagem. Esse seria o caminho ideal de a gente avançar nas regulações”, recomenda. Denúncias de abuso da publicidade infantil podem ser feitas no Observatório da Publicidade de Alimentos.
Este texto foi originalmente publicado pela UFRGS de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.