Novas drogas contra o vírus

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Por Tiago Jokura em Revista Pesquisa FAPESP Dois anos após o aparecimento dos primeiros casos de Covid-19 na China, o mundo continua lidando com a pandemia do Sars-CoV-2. Com mais de 7,7 bilhões de doses de vacinas aplicadas ao redor do mundo, a maior parte em nações de alta renda, a porcentagem da população com a cobertura vacinal completa supera os 42%. Mesmo que essa parcela não seja suficiente para interromper a disseminação do vírus – ainda mais quando novas variantes testam a eficácia da imunização –, há avanços em frentes complementares. A novidade mais animadora diz respeito a dois medicamentos antivirais, os primeiros administrados por via oral, com resultados clínicos promissores: o paxlovid, da farmacêutica Pfizer, e o molnupiravir, da Merck Sharp & Dohme (MSD) e da companhia de biotecnologia Ridgeback Biotherapeutics.

O molnupiravir foi aprovado em caráter emergencial no Reino Unido no início de novembro, sob o nome comercial Lavregio. A droga também foi recomendada pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) para uso em pacientes que não necessitam de oxigênio ou que não estejam sob risco de desenvolver a forma grave da doença e está sendo avaliada pela Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora de medicamentos e alimentos dos Estados Unidos.

De acordo com a análise final dos resultados de um estudo global feito pela MSD, com 1.433 participantes em 170 países, incluindo o Brasil, a administração do fármaco reduziu em 30% as hospitalizações e mortes por Covid-19 em pacientes sintomáticos com pelo menos um fator de risco para evolução desfavorável da doença (obesidade, diabetes, doença cardíaca grave ou idade acima de 60 anos).

Dos 709 voluntários que receberam o molnupiravir, também chamado de MK-4482 ou EIDD-2801, 48 (6,8%) foram hospitalizados. Entre os 699 participantes que tomaram placebo, 68 (9,7%) foram internados. Nove mortes foram relatadas no grupo placebo contra um óbito entre aqueles que tomaram o antiviral. O tratamento consistiu na administração de 800 miligramas (mg) de molnupiravir, duas vezes ao dia, por cinco dias. Em outubro, a partir da análise preliminar de dados de uma amostra parcial (775 participantes) do ensaio clínico, a farmacêutica havia anunciado uma eficácia maior: era capaz de diminuir em 50% o número de internações e óbitos pela doença.

O comprimido da Pfizer, por sua vez, acaba de ser submetido à aprovação da FDA. A expectativa da empresa é que esteja à disposição para uso ainda este ano. O ensaio clínico feito pela farmacêutica foi desenhado para contemplar 3 mil voluntários em 21 países, entre eles o Brasil. Os bons resultados alcançados permitiram a redução da amostra para 774 pessoas.

O medicamento oferecido até o terceiro dia do início dos sintomas a pacientes com ao menos um fator de risco diminuiu a necessidade de internação ou óbito em 89% em comparação com o grupo que recebeu placebo. Menos de 1% de quem tomou o fármaco (3 pessoas em um grupo de 389) foi hospitalizado, sem que ocorressem mortes, ao passo que 7% entre os que receberam placebo foram hospitalizados ou morreram (27 indivíduos entre 385, com 7 mortes). Assim como no ensaio com o molnupiravir, os pacientes foram tratados por cinco dias com duas doses diárias de 300 mg do paxlovid associado a 100 mg de ritonavir. Essa droga é utilizada no tratamento de pacientes com HIV e ajuda a aumentar o tempo de ação do antiviral no organismo.

Estratégias diferentes
Conforme monitoramento da Biotechnology Innovation Organization, entidade global da indústria de biotecnologia, 264 medicamentos antivirais contra o Sars-CoV-2 estão em desenvolvimento no mundo atualmente, além de 233 vacinas e outros 364 tratamentos, totalizando 861 componentes na esteira da pesquisa e desenvolvimento para conter a pandemia.

As tecnologias candidatas a aprovação para uso vacinal ou medicamentoso atuam sobre o vírus de diferentes maneiras. “O mecanismo de funcionamento do molnupiravir é de amplo espectro. Isso significa que ele age potencialmente em vários vírus cujo material genético é formado por RNA [os vírus também podem ser compostos por DNA]. É o caso dos arbovírus responsáveis pela dengue, chikungunya e zika e do vírus causador da gripe”, explica Marina Della Negra, diretora médica da MSD no Brasil.

Della Negra conta que o molnupiravir, desenvolvido por cientistas da Universidade Emory, de Atlanta, nos Estados Unidos, era, até o início de 2020, um candidato a combater outros vírus. A mudança de foco para o tratamento da Covid-19 surgiu, de forma inesperada, durante uma conferência de saúde em São Francisco, na Califórnia, quando George Painter, presidente do Instituto para o Desenvolvimento de Drogas da Emory, buscava financiamento para pesquisar a ação do fármaco contra a gripe. Durante o evento, ele se encontrou com a CEO da Ridgeback Biotherapeutics, Wendy Holman, que estava interessada no uso do medicamento contra o ebola. A Ridgeback acabou comprando o molnupiravir, e com a eclosão da pandemia de Covid-19 mudou o rumo do desenvolvimento. Os testes clínicos começaram em abril e no mês seguinte a Ridgeback firmou parceria com a MSD.

Esse relato ajuda a explicar a principal qualidade da nova droga. “O mecanismo de ação é inibir a replicação de qualquer RNA viral. Basicamente, ele introduz no organismo partículas análogas aos nucleosídeos [unidades básicas de RNA ou DNA] que formam o código genético do vírus. Isso gera mutações e provoca o que chamamos de erro de catástrofe viral, ou seja, o RNA fica inviável e o vírus não se replica”, detalha Della Negra. Foi essa característica que levou um medicamento inicialmente concebido para combater o vírus causador da influenza a tornar-se mais uma arma no enfrentamento ao Sars-CoV-2.

O fato de o molnupiravir alterar o material genético do novo coronavírus também trouxe à tona uma preocupação: o medicamento poderia provocar mutações genéticas nos portadores do vírus que levasse a efeitos colaterais indesejáveis, como o desenvolvimento de câncer? De acordo com Della Negra, os estudos com o molnupiravir demonstraram baixo risco de genotoxicidade em modelos in vivo, no caso, ratos e outros roedores. “Os estudos de genotoxicidade integram um protocolo estipulado pela Organização Mundial da Saúde [OMS] que seguimos à risca”, informa.

“Existe um risco teórico, mas investigações preliminares em animais, divulgadas pela MSD, não apresentaram riscos aumentados de mutações. No entanto, estudos mais amplos e de longo prazo são necessários”, sustenta o infectologista Eduardo Medeiros, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor científico da Sociedade Paulista de Infectologia (SPI).

A droga da Pfizer seguiu um caminho diferente. “Temos uma biblioteca com milhares de moléculas que são estudadas e passam por uma triagem periódica para identificação se são promissoras e viáveis para variados fins. Como já existiram outros coronavírus no passado, nós já tínhamos, pelo aprendizado acumulado, uma ideia do tipo de molécula em nosso portfólio que poderia ser eficaz contra um coronavírus emergente”, descreve Marjori Dulcine, diretora médica da Pfizer no Brasil. Ela esclarece que o nome paxlovid é de uso comercial exclusivo nos Estados Unidos, por questões ligadas à legislação de patentes. “Por ora, no restante do mundo, chamamos de PF-07321332 ou molécula 1332.”

O medicamento vai na contramão da abordagem do concorrente da MSD: em vez de atuar contra um amplo espectro viral, a molécula 1332 age exclusivamente contra o vírus causador da Covid-19. “Nossa molécula é a primeira que inibe a protease 3CL, específica do Sars-CoV-2 e fundamental para replicação de seu RNA. Por meio dessa inibição pontual, o medicamento interrompe a proliferação do vírus”, detalha Dulcine. Protease é uma classe de enzimas que rompem ligações peptídicas entre aminoácidos de proteínas. A 3CL do novo coronavírus interrompe cadeias de proteínas associadas à replicação viral e à montagem de novas partículas que infectarão outras células.

Quanto ao risco de toxicidade do paxlovid, Medeiros avalia que, teoricamente, inibidores de protease do Sars-CoV-2 não têm atividade contra células humanas. “Creio, contudo, que são necessários estudos de avaliação de toxicidade hepática e na medula óssea. Qualquer que seja o medicamento testado contra a Covid-19, estudos de longo prazo são fundamentais para avaliar os eventos adversos e as interações com outras medicações.”

Terapias complementares
Infectologistas consultados por Pesquisa FAPESP enfatizaram que os antivirais para a Covid-19 não substituem a vacinação. “A prevenção contra qualquer doença é sempre uma combinação de fatores. Assim como cinto de segurança, airbag e freios ABS preservam a vida de motoristas e passageiros, uso de máscara, distanciamento social, vacinas e, agora, medicamentos específicos são nossos equipamentos contra a Covid-19”, ilustra Alexandre Naime Barbosa, chefe do Departamento de Infectologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e consultor especial para a Covid-19 da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e da Associação Médica Brasileira (AMB). “As vacinas reduzem o risco individual de casos graves e de óbito, mas não anulam as chances de que ocorram. Para pessoas idosas, indivíduos imunodeprimidos ou não vacinados, é preciso haver uma estratégia de tratamento para a fase inicial da doença, impedindo a replicação do novo coronavírus no organismo.”

“Outro ponto importante é que o doente com quadro clínico leve a moderado de Covid-19 pode eliminar o vírus por até 10 dias após o início dos sintomas – em imunodeprimidos, o tempo é maior, de 20 dias ou mais. Medicações que reduzam a carga viral e, consequentemente, o tempo de excreção viral também auxiliam no controle de surtos, diminuindo a transmissão da doença”, acrescenta Medeiros.

Uma vantagem adicional das medicações de uso oral contra o Sars-CoV-2 é a facilidade logística. As pílulas são mais simples de transportar, distribuir, armazenar e administrar aos pacientes quando comparadas a terapias de infusão endovenosa, como os anticorpos monoclonais, criados em laboratório. É o caso do fármaco Evusheld (AZD7442), cujos resultados promissores foram divulgados em novembro pela AstraZeneca. Confere 83% de proteção contra sintomas de Covid-19 por pelo menos seis meses e reduz em 88% o risco de agravamento dos sintomas.

Próximos passos
A MSD já solicitou à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorização para uso emergencial do molnupiravir contra a Covid-19; o resultado deve sair em 30 dias. O laboratório informa ter produzido 10 milhões de tratamentos para comercialização no mundo – cada tratamento é composto por 40 comprimidos de 200 mg cada a serem tomados ao longo de cinco dias. Para 2022, a previsão é de que o montante ultrapasse 20 milhões. Esse esforço inclui negociações em curso, no Brasil, para cooperação técnica com o Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-Farmanguinhos). O acordo inclui a possibilidade de ensaios no futuro para avaliar a eficácia do antiviral contra dengue e chikungunya.

Já a Pfizer, que até o fechamento desta reportagem ainda não havia dado entrada no pedido junto à Anvisa, estima produzir no próximo ano 50 milhões de tratamentos (10 doses de 300 mg do paxlovid associado a 100 mg de ritonavir) e também divulga estar em negociação com vários países para distribuir o remédio de forma equitativa, de acordo com as necessidades epidemiológicas e financeiras de cada nação – premissa também mencionada pela MSD.

Embora os fabricantes não revelem o custo unitário dos medicamentos, sabe-se que o governo norte-americano pagou cerca de US$ 712 (R$ 4 mil) por cada tratamento de molnupiravir no primeiro lote encomendado à MSD e US$ 529 (R$ 3 mil) para o tratamento da Pfizer. As duas farmacêuticas também firmaram acordos com o Pool de Patentes de Medicamentos da Organização das Nações Unidas (MPP-ONU) para a fabricação de remédios genéricos. O entendimento da MSD com o PMM contempla 105 países com baixo índice de desenvolvimento humano, enquanto o da Pfizer engloba 95 nações com o mesmo perfil. Um estudo feito na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, estima que o custo do tratamento com genéricos fique por volta de US$ 20.

Este texto foi originalmente publicado por Revista Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.

Equipe eCycle

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