Por Cristina Albuquerque, Guillermo Petzhold e Fernando Corrêa, da WRI Brasil | O transporte coletivo tem percorrido novas rotas. Enquanto o Brasil discute um marco regulatório para o setor, subsídios aos sistemas de ônibus urbanos deixaram de ser exceção. Faixas exclusivas tiram o ônibus do congestionamento e receitas de estacionamento rotativo e publicidade geram recursos para qualificá-lo. Cidades buscam novos modelos de contrato de concessão e formas de remunerar o sistema segundo indicadores de qualidade. Mesmo a ideia “utópica” de transporte gratuito já é realidade em dezenas de municípios.
Cinco anos atrás, era ainda no território da contemplação que se encontrava a maior parte desses avanços. Já a crise de demanda do setor, a falência do modelo de financiamento baseado na arrecadação tarifária e a necessidade de reter e atrair clientes – esses eram desafios muito reais. Foi nesse contexto que o WRI Brasil deu início ao Grupo de Benchmarking QualiÔnibus, uma rede que hoje conta com 28 cidades, agências metropolitanas e operadores de transporte comprometidos em medir a qualidade de seus sistemas de ônibus e em experimentar e compartilhar soluções para desafios também compartilhados.
Os novos pontos de ônibus de Belo Horizonte, São Paulo, Fortaleza ou Porto Alegre. Os ônibus elétricos que São José dos Campos comprou com receitas do estacionamento rotativo. A ferramenta Nina, que Fortaleza implementou para combater o assédio sexual. Todas essas boas práticas têm passado pelo Grupo de Benchmarking QualiÔnibus.
Por vezes origem das soluções, noutras ponto de embarque ou centro de informações, o Grupo esmiúça o processo de implementação dessas novas práticas e entende seus impactos, para que sejam compartilhadas, replicadas e contribuam para a renovação do setor. Confira, a seguir, temas e inovações que marcaram os cinco anos do Grupo de Benchmarking QualiÔnibus – e que o WRI Brasil e as cidades têm avançado em conjunto.
Quase um terço da população brasileira depende do transporte público coletivo para acessar trabalho, estudo ou outras atividades cotidianas, e metade dos passageiros de ônibus em grandes cidades brasileiras têm nele sua única opção. Há um vínculo claro entre renda e facilidade de acesso a oportunidades. Em São Paulo, o número de empregos acessíveis aos 10% mais ricos é mais do que 9 vezes maior do que o número de empregos acessíveis aos 40% mais pobres. Renovar os sistemas de ônibus no Brasil é promover equidade, justiça e prosperidade econômica para as pessoas e as cidades.
Carros e motos geram a maior parte das externalidades negativas do transporte e recebem a maior parte dos investimentos públicos. É uma lógica perversa, que ignora que um transporte coletivo que as pessoas queiram usar é uma das principais medidas para conter a migração de passageiros para o transporte individual motorizado e todos os efeitos deletérios dessa migração no clima, na qualidade do ar e na saúde pública. Uma pesquisa da Rede Nossa São Paulo mostrou que 66% das pessoas que usam carro deixariam de usá-lo caso houvesse uma boa alternativa de transporte público.
Ações para qualificar o serviço devem, portanto, priorizar efetivamente os passageiros, mantenedores de um serviço que beneficia toda a sociedade. O primeiro passo é ouvir essas pessoas, o que cidades do Grupo fazem utilizando a Pesquisa de Satisfação QualiÔnibus. A metodologia avalia a satisfação dos passageiros com diferentes fatores da qualidade, como conforto dos pontos de ônibus, dos veículos, disponibilidade e segurança pública, possibilitando que sejam identificados os fatores a serem priorizados na implementação de melhorias.
Tarcísio Abreu, presidente da Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (CMTC) de Goiânia, ressalta que a pesquisa ajuda a fechar um “ponto cego” de mecanismos tradicionais. “A gente tem uma percepção de quem executa o serviço, de quem monitora, de quem controla o serviço. Mas a percepção do passageiro que está lá na ponta, dentro do ônibus, é uma realidade totalmente diferente”.
Os resultados da pesquisa ajudam as cidades a serem mais assertivas. “A pesquisa é ampla, robusta e abarca vários fatores, relacionados aos pontos de acesso, às viagens e à percepção do passageiro em relação às intervenções que nós fazemos. O diagnóstico fica muito mais claro e nos permite uma intervenção muito mais direta no que realmente precisa melhorar”, avalia Livia Mamede, da Secretaria Municipal de Trânsito e Transportes (Settran) de Uberlândia (MG).
Várias cidades do grupo adotaram a Pesquisa de Satisfação e os Indicadores QualiÔnibus no monitoramento do transporte coletivo. Porto Alegre e Salvador foram além e incorporaram as ferramentas em seus programas de metas. Porto Alegre busca melhorar em 5% o índice de satisfação geral com o sistema, e Salvador estabeleceu a nota 6 como meta a ser alcançada com base na qualificação que o sistema vem recebendo, como o novo BRT Salvador e a incorporação dos primeiros ônibus elétricos em sua frota.
“A gente percebe que o BRT tem trazido a qualidade esperada pelo cidadão do ponto de vista de segurança, de pontualidade. E o QualiÔnibus tem sido um instrumento extremamente eficiente de ajuda na busca por essa qualidade”, avalia Fabrizzio Muller, secretário de Mobilidade de Salvador.
Pontos de ônibus são o primeiro contato dos passageiros com o sistema. Pode parecer óbvio, mas em 2016, poucas cidades ousariam priorizar a qualificação dos pontos de ônibus no apertado orçamento do transporte coletivo. Após a aplicação da Pesquisa de Satisfação QualiÔnibus apontar os pontos de ônibus como uma das principais insatisfações de passageiros, Belo Horizonte encontrou um caminho: concedeu estruturas a uma empresa, que qualifica, mantém e instala abrigos. Em troca, comercializa espaço publicitário.
Apresentada e discutida no Grupo de Benchmarking QualiÔnibus e objeto de uma visita técnica de cidades do Grupo, a iniciativa de Belo Horizonte semeou a mudança – até agora – em Fortaleza e Porto Alegre. A capital gaúcha concedeu a instalação de 1.507 abrigos – dos quais 75 haviam sido implementados em novembro de 2022 –, com bancos confortáveis e tomadas USB, protegidos por laterais transparentes para maior segurança. São planejados 75 abrigos com telhados verdes e painéis fotovoltaicos, 100 com câmeras de monitoramento e wi-fi, e 180 com painéis digitais de informação em tempo real sobre os coletivos.
A ferramenta Nina foi uma das finalistas do Desafio InoveMob em 2018. O WRI Brasil conectou Fortaleza e a Nina, e a parceria deu certo. A ferramenta foi implementada no do app Meu Ônibus e lançada em 2019. Em 2022, foi atualizada e passou a permitir denúncias diretamente pelo WhatsApp.
A capital cearense seguiu um caminho de financiamento distinto e implementou quatro novos abrigos como protótipos do projeto Parada Segura. Foram incluídas câmeras, iluminação, wi-fi gratuito e requalificação do ponto e acessibilidade. Além do conforto, o foco é em segurança. A conectividade permite a qualquer pessoa com um smartphone acessar as informações sobre o sistema pelo app Meu Ônibus ou efetuar denúncias de assédio pela plataforma Nina (leia mais sobre a Nina no box).
A escolha dos primeiros pontos prioritários para qualificação se baseou no mapeamento dos que tinham mais problemas de segurança e denúncias de assédio. A fim de mensurar o impacto da qualificação dos primeiros abrigos do Parada Segura, foi utilizada a metodologia QualiÔnibus para avaliar o cenário antes e o depois. “Houve aumento de 30% na sensação de segurança, e 59% de avaliação positiva do conforto. O projeto se mostrou muito benéfico para a população”, avalia Raimundo Rodrigues, vice-presidente da Empresa de Transporte Urbano de Fortaleza (Etufor). A meta agora é implementar 200 abrigos até 2024 em outros locais que necessitem de maior atenção quanto à segurança pública.
Predomina nos sistemas de ônibus no Brasil o financiamento baseado na arrecadação tarifária. Além de insuficiente para garantir um serviço de qualidade, o modelo rateia entre a população mais pobre e desassistida o financiamento da operação de um serviço básico – e um direito constitucional. Desde o princípio, cidades do Grupo discutem e experimentam novos modelos de arrecadação de receitas para bancar e qualificar o serviço.
Os casos dos pontos de ônibus de Belo Horizonte e Porto Alegre são um bom exemplo, mas há muito potencial inexplorado de receitas extratarifárias, as quais podem ser componentes importantes no financiamento do sistema como um todo – e mesmo de sua renovação. São José dos Campos, por exemplo, viabilizou a compra dos 12 ônibus elétricos que operam a Linha Verde do BRT com recursos da outorga do estacionamento rotativo. Conciliou a descarbonização do transporte coletivo com a modernização da zona azul, que hoje tem 38,5% da receita destinada para o fundo de transportes do município.
A cobrança por usos privados que motoristas fazem do espaço dos recursos coletivos, como o estacionamento em via pública, é uma medida promissora e pouco explorada. A título de exemplo, das 27 capitais brasileiras, apenas São Paulo tem a tarifa da área azul superior à tarifa do transporte coletivo.
A boa ideia se disseminou rapidamente pelo Grupo. Em 2021, oito municípios saíram de uma oficina sobre a nova política de estacionamento rotativo da cidade paulista com planos de ação próprios. Novo Hamburgo, na região metropolitana de Porto Alegre, gostou do caso de Lisboa, apresentado durante os debates, e incorporou zonas distintas de cobrança, de acordo com a demanda por vagas em cada região. Já a capital gaúcha aumentou em 74% o valor da hora da área azul (de R$ 2,30 para R$ 4) e passou a destinar a arrecadação ao transporte coletivo. A expectativa da prefeitura é de que R$ 20 milhões sejam direcionados para o sistema em 2023.
O grande desafio do transporte coletivo é conciliar sustentabilidade com qualidade. “Trazer aquele passageiro que perdeu a vontade de andar de ônibus para o sistema de transporte. E, com isso, criar um sistema retroalimentado, um círculo virtuoso”, resume Adão de Castro, secretário de Mobilidade Urbana de Porto Alegre.
Experiências como o Grupo de Benchmarking QualiÔnibus retiram as cidades de um isolamento ilusório em que se debatem sozinhas com seus problemas, e as colocam em uma aliança pela busca de soluções. Como sintetiza Eunice Horácio, gerente da Federação das Empresas de Mobilidade do Estado do Rio de Janeiro (Semove), “a gente fala que o transporte não se copia porque cada cidade é um pouquinho diferente, mas a gente olha o que um está fazendo para tentar trazer da melhor forma possível para o nosso universo”.
Vice-presidente da Semove, Rodrigo Tortoriello era secretário de Transporte e Trânsito de Juiz de Fora em 2017, quando a cidade foi uma das primeiras a se juntar ao Grupo. “A nossa decisão em participar bem no comecinho foi pela oportunidade de os nossos técnicos conversarem com técnicos de outras cidades e às vezes solucionar um problema que parecia complicado e outra cidade achou uma solução simples, barata e prática de ser implantada. O grande valor do Grupo é facilitar a adoção de novas medidas e soluções de forma rápida, prática e com baixo custo.”
Desde 2017, o grupo cresceu em tamanho – de 10 para 28 cidades e operadores. Em diversidade, já que hoje conta com municípios de diferentes portes. Em resultados, como mostram os exemplos acima. Nos últimos anos, o WRI Brasil tem coordenado redes de técnicos de cidades brasileiras em diferentes frentes da mobilidade urbana. Trata-se de um desafio contínuo de manutenção de engajamento, mas que se sustenta na concretização das mudanças, na capacitação e na entrega de valor para as cidades, os líderes e a população.
Este texto foi originalmente publicado por WRI Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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