Novo estudo apresenta potencial tratamento para obesidade

Compartilhar

Por Ricardo Zorzetto em Pesquisa Fapesp Alguns especialistas consideram a fome e a saciedade como extremos de um estado fisiológico que controla a busca da energia essencial para manter o organismo vivo e funcionando em equilíbrio. Como os pratos de uma balança, o desejo de comer e a sensação de satisfação oscilam ao longo do dia, regulados por uma série de substâncias produzidas pelo sistema digestivo e pelo tecido adiposo que informam ao sistema nervoso central a disponibilidade de energia ou a necessidade de procurar alimento. No cérebro, quem rege os momentos de fome e saciedade é uma estrutura profunda e polivalente: o hipotálamo. Menor do que uma amêndoa e com o formato aproximado de um cone, o hipotálamo funciona como uma espécie de zeladoria central do corpo. Além de comandar o desejo de comer, ele regula direta ou indiretamente a temperatura, a sede, a fadiga, o sono, a criação de vínculos com outras pessoas e a libido.

Células de hidrogênio para substituir o diesel

Trabalhos publicados neste ano por dois grupos brasileiros estão ajudando a identificar algumas peças do tabuleiro bioquímico do hipotálamo que influenciam as sensações de fome e saciedade, mas cuja ação havia passado despercebida da ciência. Uma delas, inclusive, parece ser um potencial alvo para a ação de medicamentos destinados a controlar o ganho exagerado de peso, problema que assumiu dimensões planetárias nas últimas décadas. Hoje o sobrepeso e a obesidade atingem pouco mais da metade da população mundial, razão pela qual essa epidemia foi apelidada de globesidade.

Em experimentos com camundongos realizados na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a equipe do imunologista Lício Velloso verificou que aumentar a expressão de um único gene, ativo no cérebro apenas em um pequeno número de células do hipotálamo, pode ser suficiente para reduzir o ganho de peso por estimular a saciedade e o gasto energético, além de amenizar sinais de ansiedade e depressão, frequentes em uma parcela importante das pessoas com sobrepeso e obesidade. Na Universidade de São Paulo (USP), o fisiologista José Donato Junior e seus colaboradores constataram, também em experimentos com roedores, que um hormônio chamado grelina, produzido no sistema digestivo e tradicionalmente associado ao despertar da fome, não atua sozinho. Ele precisa da ação simultânea de outro composto – o hormônio do crescimento, por décadas relacionado apenas a fenômenos que aumentam o consumo de energia – para disparar no hipotálamo o impulso da busca de alimento.

Esses trabalhos, somados a outros conduzidos no Brasil e no exterior, ajudam a compreender quão intrincada é a relação entre as peças do mecanismo que controla a saciedade e a fome e quão difícil é alterar o seu funcionamento sem causar prejuízos importantes. “Os mecanismos que controlam o equilíbrio energético são redundantes e complexos”, afirma o bioquímico Marcio Torsoni, da Unicamp, que não participou dos dois estudos. “Por essa razão, qualquer interferência hormonal para o tratamento da obesidade só pode ser realizada após a perfeita compreensão de como cada hormônio afeta a sinalização celular e suas repercussões sobre outros eventos metabólicos e comportamentais”, completa.

Uma característica peculiar torna o gene estudado pelo grupo de Velloso um bom alvo para a ação de medicamentos contra o ganho de peso. De nome complicado, atribuído em razão das características estruturais da proteína que codifica e da função que ela exerce, o gene nescient helix-loop-helix 2 (NHLH2) normalmente é expresso em um grupo muito restrito de células do hipotálamo: os neurônios produtores de pró-opiomelanocortina, conhecidos pela sigla POMC. Quando estão repletas de gordura, as células do tecido adiposo distribuídas pelo corpo liberam na corrente sanguínea o hormônio leptina, que, ao atingir o cérebro, sinaliza que é hora de parar de comer. No hipotálamo, a leptina ativa os neurônios POMC e, estes, por sua vez, liberam um neurotransmissor que ativa outros neurônios e induzem à saciedade.

Células orgânicas solares: nova tecnologia é leve e pode gerar energia solar em praticamente qualquer superfície

O aumento da expressão do gene NHLH2 reduziu o ganho de peso e aumentou o gasto energético

Há mais de duas décadas se sabe que o NHLH2 tem alguma conexão com o ganho de peso em animais e seres humanos. Em 1997, em um estudo para descobrir a função desse gene, a biomédica Deborah Good, durante um estágio de pós-doutorado no Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos, desativou as duas cópias do gene em embriões de camundongos e observou o que acontecia. Sem o NHLH2, os roedores não desenvolviam bem os órgãos sexuais, perdiam a libido e se tornavam obesos quando adultos. Anos mais tarde, ela constatou também que esses animais também eram menos ativos do que o normal.

“Esses e outros estudos que reduziram a expressão do gene ou o desativaram mostravam uma piora no quadro de obesidade”, conta Velloso, coordenador do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC), um dos centros de pesquisa, inovação e difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. “Estava claro que ele era importante para a regulação do peso, mas ainda não se havia tentado verificar o que ocorre quando se aumenta sua atividade”, explica o imunologista.

Durante o doutorado feito sob a orientação de Velloso no Laboratório de Sinalização Celular da Unicamp, o biólogo Rodrigo Carraro usou um vírus geneticamente modificado para aumentar em 40% a expressão do gene nos neurônios POMC. De maneira simplificada, a maior expressão desse gene causou um efeito preventivo e outro curativo. Em animais que tinham peso saudável no início dos testes e foram alimentados com uma dieta rica em gorduras (hiperlipídica), indutora de obesidade, a elevação da atividade do NHLH2 evitou que se tornassem obesos por aumentar a saciedade. Os roedores que produziam maior quantidade da proteína codificada pelo gene comiam menos do que aqueles com atividade normal do NHLH2 e engordaram cerca de 40% menos, indicam os resultados publicados no final de outubro no Journal of Neuroscience.

Nos camundongos que já começaram o experimento obesos, o efeito foi ainda maior. Igualmente alimentados com dieta hiperlipídica, eles ganharam 80% menos peso do que os do grupo de controle. Também gastaram 15% mais energia por serem fisicamente mais ativos e produzirem mais calor no tecido adiposo marrom. Eles caminhavam mais nas gaiolas e suportavam mais tempo de exercício na esteira ou em um cilindro girando. Sua temperatura corporal também ficou em média 1,3 grau Celsius (°C) mais elevada do que a dos animais com atividade normal do gene – a temperatura média do primeiro grupo foi 34,3 °C, ante os 33 °C do segundo grupo. Nas baterias de experimentos comportamentais, os camundongos que sintetizavam mais da proteína codificada pelo NHLH2 apresentaram menos sinais de depressão e de ansiedade.

“Ainda não se havia atribuído a esse gene funções tão importantes como o controle da fome e a redução da depressão e da ansiedade”, afirma Velloso. Caso se identifiquem compostos capazes de aumentar a expressão do NHLH2 no hipotálamo, quem poderia se beneficiar mais de um futuro tratamento seriam os obesos ansiosos, supõem os pesquisadores. É que essas pessoas são mais sensíveis a pequenas alterações no ambiente ou na rotina, o que as leva a procurar comida mesmo sem fome.

Células-tronco: o que são e principais aplicações

A ação da grelina, o chamado hormônio da fome, é insuficiente para despertar o apetite

“O hipotálamo controla uma infinidade de processos fisiológicos nos níveis periférico e central e está interconectado com áreas cerebrais envolvidas, entre outras coisas, no comportamento. A ligação entre obesidade e ansiedade ou depressão é bem conhecida em humanos e está associada ao ato de comer em excesso. Esse trabalho fornece uma nova base molecular, até então desconhecida, para essa associação”, comenta o fisiologista Miguel Antonio López, da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, estudioso do papel dos neurônios do hipotálamo na percepção dos níveis de energia do corpo.

A equipe da Unicamp planeja agora iniciar uma triagem de compostos já sintetizados a fim de encontrar alguns que tenham afinidade pelo gene e elevem sua expressão, aumentando a saciedade. Se uma dessas moléculas funcionar em seres humanos, ela pode resultar em um tratamento medicamentoso com efeitos adversos limitados, uma vez que o NHLH2 é expresso em um número muito restrito de neurônios. “Esse gene é um bom alvo porque está no neurônio certo”, diz Velloso.

A equipe da USP, por sua vez, ainda não teve a mesma sorte de encontrar um alvo tão específico, embora seu trabalho esteja ajudando a rever como funciona a ativação da fome. Desde que foi descoberta em 1999, a grelina é considerada a principal responsável por despertar no organismo a urgência de comer – razão por que já foi chamada de “hormônio da fome”. Produzida no estômago e nos intestinos, ela age em outro pequeno grupo de células do hipotálamo: os neurônios AgRP/NPY, assim chamados por causa de dois neuropeptídeos que produzem. Seu efeito é tão potente que, administrada na corrente sanguínea, faz pessoas ou animais buscarem comida mesmo após uma farta refeição.

O mecanismo de ação da grelina começou a se mostrar mais complicado depois que se verificou há poucos anos que ela também age na hipófise, uma glândula vizinha ao hipotálamo, estimulando a produção do hormônio do crescimento (GH, na sigla em inglês). Nos órgãos e tecidos periféricos, esse composto estimula a proliferação celular e o gasto de energia, levando ao crescimento nas fases iniciais da vida e ao reparo de tecidos nos adultos. Em 2019, porém, o grupo da USP constatou que durante o jejum esse hormônio também desperta os neurônios AgRP/NPY e provoca fome, ao mesmo tempo que sinaliza para o corpo que é preciso economizar energia (ver Pesquisa FAPESP nº 277).

“Por algum tempo, imaginou-se que o efeito da grelina e o do GH ocorressem em paralelo e de modo independente”, conta Donato. O trabalho de sua equipe indica agora que a ação isolada da grelina sobre os neurônios AgRP/NPY é insuficiente para causar fome. Ela depende da atuação simultânea do GH no hipotálamo – possivelmente em outro grupo de neurônios.

Biocurativo de células-tronco permite o tratamento inteligente de feridas e queimaduras

Essa dependência começou a se tornar evidente nos experimentos feitos pelo fisiologista Frederick Wasinski entre 2016 e 2020, durante um estágio de pós-doutorado supervisionado por Donato. No Laboratório de Neuroanatomia Funcional da USP, Wasinski gerou dois tipos de camundongos geneticamente alterados, cada um deles com um grau diferente de insensibilidade à ação do GH. Os animais do primeiro grupo não apresentavam na superfície dos neurônios do cérebro todo a molécula (receptor) à qual esse hormônio se liga. No segundo grupo, esses receptores estavam ausentes apenas nos neurônios AgRP/NPY. Em ambos os casos, os roedores continuavam capazes de produzir normalmente o hormônio do crescimento e consumiam proporcionalmente a mesma quantidade de ração que os animais do grupo de controle, com os receptores intactos e ativos.

As diferenças começaram a surgir em dois testes de restrição alimentar, situação em que ocorre o aumento natural na produção de grelina e de GH. No primeiro experimento, os animais passavam 24 horas sem acesso a alimento, antes de poder comer livremente. Já no segundo, eram liberados para se nutrir à vontade depois de cinco dias sob restrição alimentar (recebiam 60% das calorias de que precisavam). Nas duas condições, os animais sem o receptor do GH no cérebro comeram mais após o período de privação de alimento, mas, ainda assim, em um nível bem inferior aos do grupo de controle. Era um sinal de que, sem a ação do hormônio do crescimento, a grelina não despertava a fome como antes.

Em outra bateria de testes, Wasinski estimulou a fome artificialmente (injetou uma dose de grelina na corrente sanguínea) e verificou que os camundongos sem o receptor de GH apenas nos neurônios AgRP passaram a comer tanto quanto os do grupo de controle, que mantinham a sinalização desse hormônio inalterada no cérebro. Os animais sem o receptor no cérebro todo ingeriram menos alimento que os dos outros dois grupos, segundo dados publicados em maio na revista Endocrinology. Dias mais tarde, o grupo do endocrinologista Jeffrey Zigman, da Universidade do Texas Southwestern Medical Center, nos Estados Unidos, apresentou uma conclusão semelhante em um artigo na Molecular Metabolism no qual descreve testes feitos com roedores que não produziam o hormônio do crescimento por não terem o receptor da grelina na glândula hipófise.

De acordo com os pesquisadores da USP, esse resultado sugere que a estimulação do apetite promovida pela grelina depende da ação concomitante do hormônio do crescimento em outros grupos de neurônios do hipotálamo, e não apenas nos AgRP/NPY. Atualmente a equipe de Donato realiza outros testes para tentar identificar quais são esses neurônios.

Exercício aumenta renovação de células-tronco musculares e favorece reparação de lesões

“Do ponto de vista fisiológico, a atuação sinérgica dos dois hormônios faz muito sentido, uma vez que o efeito do hormônio do crescimento depende do aporte de nutrientes energéticos, facilitado pela ação da grelina de estimular a fome”, comenta Torsoni, da Unicamp. “Conhecer como a interação de ambos modula a atividade das diferentes populações de neurônios do hipotálamo é fundamental para identificar quais delas poderiam ser manipuladas por compostos candidatos a tratar a obesidade”, conclui.

Na opinião de Eduardo Ropelle, fisiologista da Unicamp que não participou dessa pesquisa, o achado do grupo da USP pode abrir novas possibilidades terapêuticas para o tratamento da obesidade, uma vez que compostos que impedem a ação da grelina estão sendo exaustivamente testados em modelos experimentais, com resultados modestos e muitas vezes inconclusivos. “A combinação de compostos capazes de inibir seletivamente tanto a atividade da grelina como a do GH poderia apresentar resultados mais promissores, embora não se possa desconsiderar o risco de efeitos adversos”, afirma Ropelle.

Equipe eCycle

Você já percebeu que tudo o que você consome deixa um rastro no planeta? Por uma pegada mais leve, conteúdos e soluções em consumo sustentável.

Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.

Saiba mais