A maior parte da água chegou à região atualmente ocupada pela órbita da Terra antes que o planeta tivesse se constituído
Munidos da lei da gravitação universal de Newton (cuja publicação completou 330 anos em 2017) e de pesados recursos computacionais (para poder aplicar a lei a mais de 10 mil corpos em interação), um jovem pesquisador brasileiro e seu antigo supervisor de pós-doutorado acabam de propor um novo modelo físico para explicar a origem da água na Terra e nos demais objetos de tipo terrestre do Sistema Solar.
O artigo assinado por ambos, Origin of water in the inner Solar System: Planetesimals scattered inward during Jupiter and Saturn’s rapid gas accretion, foi publicado na revista Icarus.
Os autores são André Izidoro, da Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá da Universidade Estadual Paulista (Unesp) – bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) na modalidade Apoio a Jovens Pesquisadores –, e o astrofísico norte-americano Sean Raymond, do Laboratoire d’Astrophysique de Bordeaux, na França.
“A ideia de que a água da Terra veio predominantemente por meio de asteroides não é nova. Ela é praticamente consensual entre os pesquisadores. Nosso trabalho não é pioneiro em relação a isso. O que conseguimos foi associar esse aporte de asteroides ao processo de formação de Júpiter. E, com base no modelo resultante, ‘entregar à Terra’ quantidades de água consistentes com os valores estimados atualmente”, disse Izidoro à Agência Fapesp.
O valor de água existente na Terra varia muito de uma estimativa a outra. Usando como unidade de medida o “oceano terrestre”, o que corresponde a toda a água dos oceanos da Terra, alguns falam em três a quatro “oceanos terrestres”. Outros, em dezenas. A variação decorre do fato de não se saber quanta água existe no manto do planeta. E nem mesmo na crosta, aprisionada no interior das rochas. De qualquer forma, o modelo proposto dá conta do amplo leque de estimativas.
“Convém afastar logo a ideia de uma Terra que recebeu toda a sua água por meio do impacto de cometas oriundos de regiões muito distantes. Tais ‘entregas’ também ocorreram, mas sua contribuição foi posterior e percentualmente muito menos importante. A maior parte da água chegou à região atualmente ocupada pela órbita da Terra antes que o planeta tivesse se constituído”, disse Izidoro.
Para entender “como”, vale recapitular o cenário definido pelo modelo convencional de formação do Sistema Solar, acrescentando o novo modelo relativo ao aporte de água. A condição inicial é uma gigantesca nuvem de gás e poeira cósmica. Devido a algum tipo de perturbação gravitacional ou turbulência local, essa nuvem entra em colapso e passa a ser atraída por uma determinada região de seu interior, que configura um centro.
Com o aporte de matéria, o centro torna-se tão massivo e aquecido que, cerca de 4,5 bilhões de anos atrás, entra em processo de fusão nuclear, transformando-se em estrela. Enquanto isso, a nuvem remanescente continua a orbitar o centro e seu material se aglutina, formando um disco, que posteriormente se fragmenta, definindo os nichos protoplanetários.
“Estima-se que, nesse disco, a região rica em água se localizava a partir de algumas unidades astronômicas de distância do Sol. Na região interior, mais próxima da estrela, a temperatura era alta demais para que a água pudesse se acumular, exceto talvez em muito pequena quantidade, na forma de vapor”, explicou Izidoro.
Por definição, a unidade astronômica (AU) é a distância média da Terra ao Sol. Entre 1,8 AU e 3,2 AU localiza-se atualmente o Cinturão de Asteroides, com centenas de milhares de objetos. Nessa faixa, os asteroides que ocupam a região entre 1,8 AU e 2,5 AU são predominantemente pobres em água, enquanto a maioria daqueles situados além de 2,5 AU são ricos. O processo de formação de Júpiter pode explicar a origem dessa divisão, de acordo com o pesquisador.
“O tempo transcorrido entre a formação do Sol e a completa dissipação do disco gasoso foi bastante curto, na escala cosmogônica: de apenas 5 milhões a no máximo dez milhões de anos. E a formação de planetas gasosos tão massivos quanto Júpiter e Saturno só pode ter ocorrido durante essa fase de juventude do Sistema Solar. Então, foi durante essa fase que o rápido crescimento de Júpiter perturbou gravitacionalmente milhares de planetesimais ricos em água, deslocando-os de suas órbitas originais”, disse Izidoro.
Estima-se que Júpiter possua um núcleo sólido, com massa equivalente a algumas vezes a massa da Terra. Esse núcleo sólido é recoberto por um extenso e massivo envoltório gasoso. Júpiter só pode ter adquirido tal envoltório durante a fase da nebulosa solar, quando o sistema estava em formação e havia enorme quantidade de material gasoso disponível.
Devido à vultosa massa do embrião de Júpiter, o processo de aquisição do gás, por atração gravitacional, foi muito rápido. Nas vizinhanças do planeta gigante em formação, situados além da “linha de gelo”, milhares de planetesimais [corpos rochosos semelhantes a asteroides] orbitavam o centro do disco, atraindo-se, simultaneamente, uns aos outros.
O rápido aumento da massa de Júpiter rompeu o precário equilíbrio gravitacional desse sistema de muitos corpos. Vários planetesimais foram engolidos pelo Proto-Júpiter. Outros, enviados para os confins do Sistema Solar. E uma pequena fração, arremessada para a região interior do disco, entregando água para o material que, mais tarde, formaria os planetas terrestres e constituiria o Cinturão de Asteroides.
“O período de formação da Terra é datado entre 30 milhões e 150 milhões de anos após a formação do Sol. Quando isso ocorreu, a região do disco onde nosso planeta se constituiu já dispunha de bastante água, entregue pelos planetesimais deslocados por Júpiter e também por Saturno. Admite-se que uma pequena fração da água existente na Terra tenha chegado mais tarde, mediante o choque de cometas e asteroides. E que uma fração ainda menor possa ter-se formado localmente, por meio de processos físico-químicos endógenos. Mas a maior parte da água veio com os planetesimais”, disse Izidoro.
A afirmação sustenta-se no modelo construído por ele e seu antigo supervisor. “Com o emprego de supercomputadores, simulamos a interação gravitacional entre os múltiplos corpos por meio de integradores numéricos, em linguagem Fortran. E introduzimos uma modificação para incluir os efeitos do gás presente no meio durante a época de formação dos planetas. Isso porque, além de todas as interações gravitacionais em cena, os planetesimais sofreram também a ação do chamado ‘arrasto gasoso’, que é, basicamente, um ‘vento’ em sentido contrário ao do movimento – o mesmo tipo de efeito que um ciclista percebe ao se deslocar, decorrente da colisão das moléculas do ar com seu corpo”, descreveu o pesquisador.
O “arrasto gasoso” fez com que as órbitas dos planetesimais deslocados por Júpiter, inicialmente muito alongadas, fossem, pouco a pouco, “circularizadas”. Foi tal efeito que implantou esses objetos na zona que corresponde atualmente ao Cinturão de Asteroides.
Um parâmetro fundamental para esse tipo de simulação é a massa total da nebulosa solar no início do processo. Para chegar a esse número, Izidoro e Raymond utilizaram um modelo proposto no início da década de 1970. Ele parte do levantamento da massa de todos os objetos atualmente observados no Sistema Solar.
Para compensar as perdas decorrentes da ejeção de matéria durante a fase de formação do sistema, o modelo corrige as massas atuais dos diferentes objetos, fazendo com que suas proporções de elementos pesados (oxigênio, carbono etc.) e de elementos leves (hidrogênio, hélio etc.) fiquem iguais às do Sol. Isso com base na hipótese de que o disco de gás e o Sol tinham a mesma composição. Feitas as alterações, obtém-se a massa presumível da nuvem primitiva.
“Além disso, nosso novo modelo considerou também os diferentes tamanhos dos atuais asteroides, que vão de quilômetros a centenas de quilômetros de extensão, porque o gás tende a afetar mais os asteroides menores”, disse Izidoro.
O artigo Origin of water in the inner Solar System: Planetesimals scattered inward during Jupiter and Saturn’s rapid gas accretion(doi: 10.1016/j.icarus.2017.06.030), de Sean N. Raymond e André Izidoro, pode ser lido em aqui e aqui.