Uma boa notícia para pecuaristas e cafeicultores brasileiros. Alternativas para o combate ao carrapato-do-boi, aracnídeo responsável por perdas estimadas em US$ 3,2 bilhões por ano no país, e o enfrentamento do bicho-mineiro, principal praga dos cafezais, estão chegando aos produtores. As duas soluções, nascidas respectivamente nos laboratórios da empresa paulista Decoy e da Universidade de Franca (Unifran), baseiam-se no controle biológico de pragas, método que provoca menos impacto no ambiente do que os agentes químicos tradicionais.
O carrapaticida da Decoy, feito à base de fungos, inimigos naturais do parasita, é oferecido em duas formulações, uma para ser pulverizada nos animais e outra no pasto. Os fungos agem em todas as fases de desenvolvimento do artrópode, matando ovos, larvas, ninfas e adultos, de acordo com a empresa. O carrapato-do-boi é uma ameaça à posição que o Brasil, dono do maior rebanho comercial do mundo, com mais de 200 milhões de cabeças, ocupa no mercado de carne bovina – o país é o maior exportador e o segundo produtor, superado apenas pelos Estados Unidos.
Incubada no Supera Parque de Inovação e Tecnologia de Ribeirão Preto (SP), a Decoy investe no controle biológico como solução para um impasse: a crescente resistência do carrapato-do-boi, Rhipicephalus (Boophilus) microplus, aos agentes químicos. O problema é desencadeado pelo uso indiscriminado dos produtos, com a consequente contaminação do ambiente, de animais e seres humanos.
“Estamos trazendo para a criação de animais um conceito que já é realidade na agricultura. Desenvolvemos produtos para o controle biológico de pragas de importância econômica, atendendo a demanda dos produtores”, destaca o biólogo Lucas Garcia von Zuben, sócio-fundador da Decoy.
Além da pesquisa sobre o tratamento fúngico para R. (B.) microplus, a empresa tem outros projetos de inovação em andamento, sendo dois deles com apoio do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), da FAPESP. Um tem como objetivo a criação de um bioinseticida fúngico contra uma praga da avicultura, o cascudinho-da-granja (Alphitobius diaperinus), e o outro, também à base de fungos, é voltado ao controle do ácaro Varroa destructor em colônias de abelhas Apis mellifera.
Fundada em 2015 pelos biólogos von Zuben e Túlio Marcos Nunes, então pós-doutorandos da Universidade de São Paulo (USP), e o economista Filipe Dal’Bó, a Decoy tem cerca de 30 integrantes, dos quais sete são pesquisadores. O ingresso no programa Pipe ocorreu no ano de criação da empresa, mas não gerou um produto. “Nosso primeiro projeto Pipe foi uma fita com feromônio para fixar no animal e atrair os parasitas. Ao conhecermos melhor a realidade da pecuária – até então estudávamos abelhas –, vimos como a ideia era maluca. Não é necessário atrair o carrapato; na pastagem, o próprio boi o atrai”, recorda-se Nunes.
A pesquisa inicial foi a base para a estruturação científica e financeira da empresa. A startup já recebeu R$ 1,8 milhão em investimentos privados e quer que o carrapaticida biológico seja seu carro-chefe. Atualmente, o produto está sendo testado por mais de 700 pecuaristas. A startup fornece o carrapaticida e a orientação técnica para aplicá-lo e recebe em troca uma ajuda de custo, cujo valor não é revelado, para continuar o desenvolvimento.
“É preciso estar aberto ao novo. Eu estava numa situação delicada, mas teria abraçado a ideia de qualquer forma”, conta o pecuarista paulista João Queiroz, criador de gado de corte de Presidente Prudente (SP). Ele perdia para o carrapato cerca de 20 cabeças por ano. “Um dos bois que morreram estava infestado com 3 mil parasitas e não foi por negligência.” O produtor recorria a todos os produtos disponíveis no mercado para combater a praga quando, graças a um interesse comum – a criação de abelhas –, conheceu Nunes, que disse ter uma solução para a questão. “Levamos três meses para conter o problema. A diferença é gritante; não perdi mais nenhum boi”, diz.
A Decoy não revela, por enquanto, que fungos emprega na formulação. A eficácia dos produtos em testes de laboratório varia de 80% a 100% dependendo da concentração e da fase de vida do carrapato. Em campo, a eficácia é estimada em pelo menos 70%, conforme as condições de aplicação do produto. “Temos um projeto em execução para levantar esses dados em campo com mais robustez, pois a influência das condições ambientais é bastante alta”, diz von Zuben. Essa informação é fundamental para a obtenção do registro do carrapaticida no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Uma portaria do órgão exige uma eficácia de 95%, taxa considerada alta no âmbito do controle biológico.
“A portaria foi criada para produtos químicos. O controle biológico requer uma análise diferente, já que atua a partir da dinâmica de populações ao longo de certo período”, defende Nunes. A Decoy solicitará a criação de um novo protocolo de análise que se adéque melhor à realidade do controle biológico, mas já deu andamento, em paralelo, ao pedido de licença para operação de uma biofábrica. Instalada em uma área de 80 metros quadrados no Supera Parque, sua produção poderá atender 1,2 milhão de animais por mês.
A dificuldade burocrática é apontada como uma das razões que inibem o registro de produtos de controle biológico na pecuária, embora pesquisas nessa área existam pelo menos desde a década de 1990. “Entre 2015 e 2019, mais de 40 novas empresas registraram seu primeiro produto para controle biológico. Em 2020, foram 95 produtos registrados para o mercado agrícola, sendo o uso veterinário ainda inexplorado”, observa o agrônomo Italo Delalibera Júnior, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, e pesquisador do São Paulo Advanced Research Center for Biological Control (SparcBio), apoiado pela FAPESP e pela empresa Koppert Biological Systems.
Outro obstáculo para que uma formulação eficaz contra o carrapato-do-boi chegue ao mercado é de ordem técnica. Segundo o veterinário Renato Andreotti, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), diversos estudos mostram que agentes fúngicos funcionam bem em laboratório, mas não demonstram a mesma efetividade no campo. “Um dos problemas é a ação dos raios ultravioleta, que matam o fungo”, exemplifica.
Há 30 anos Andreotti estuda diferentes técnicas de controle do carrapato-do-boi e acaba de depositar a patente de uma vacina, feita à base de peptídeos do parasita. “Talvez os pesquisadores da startup tenham achado uma formulação fúngica que também seja efetiva no campo. As ferramentas químicas para o controle do parasita estão se esgotando por conta da resistência”, ressalta Andreotti. “Torço para que surjam novas soluções.”
O controle biológico também é a estratégia proposta pela entomologista Alessandra Marieli Vacari, da Unifran, para proteger as lavouras de café do país. Ela lidera uma rede formada por biofabricantes de insetos, agrônomos, entomologistas e fazendeiros de Minas Gerais, São Paulo, Goiás e Pará, que testam crisopídeos (Chrysoperla spp.), insetos verdes e voadores popularmente conhecidos como bicho-lixeiro, no manejo integrado de pragas (MIP) do cafeeiro. O MIP usa um conjunto de ferramentas, como produtos químicos, agentes biológicos e plantas-iscas, para o controle de pragas agrícolas (ácaros, insetos, doenças e plantas daninhas).
O alvo deles é o bicho-mineiro (Leucoptera coffeella), uma mariposa branca que na fase larval provoca a formação de minas nas folhas. O ataque causa estragos na folhagem e, por consequência, na capacidade fotossintética dos cafeeiros, diminuindo sua longevidade e ameaçando a sobrevivência. Uma infestação severa pode reduzir a capacidade produtiva de um cafezal em até 70%, segundo estudo publicado pela Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia.
Para oferecer uma alternativa ecológica e sustentável, Vacari tem trabalhado com sete alunos de graduação, todos bolsistas de iniciação científica da FAPESP, para produzir crisopídeos em laboratório e analisar seu comportamento predatório e reprodutivo em campo. “Nossa pesquisa interessa principalmente aos produtores de cafés especiais, que precisam adotar o MIP como critério de certificação, e aos cafeicultores orgânicos, que não podem usar inseticidas químicos sintéticos nem acaricidas no controle de pragas”, explica Vacari.
Três espécies de bicho-lixeiro estão sendo reproduzidas em ambiente controlado na Unifran. Quando os ovos estão prestes a eclodir, eles são liberados em campo e observados nas fases de larva, pupa e adulta. Os hábitos alimentares e de colonização dos crisopídeos são monitorados fora da universidade. “Os produtores estão tão interessados no conhecimento gerado pela pesquisa que oferecem suas áreas para os estudos. Já firmamos parceria com várias fazendas de cafés especiais e de orgânicos”, detalha a entomologista.
Uma delas é a Fazenda Bom Jardim, em Franca (SP), que em 2016 iniciou o processo de transição de um plantio tradicional do café, com uso de químicos e pesticidas convencionais, para o manejo orgânico. De acordo com Alexandre Leonel, um dos proprietários da fazenda, “os índices de infestação de bicho-mineiro, que estavam em torno de 65%, caíram para algo em torno de 10% após quatro solturas dos crisopídeos”.
O controle biológico, diz Leonel, refletiu-se na produtividade. “O talhão de café que recebeu os crisopídeos produziu bem na safra passada. Neste ano, mesmo com a seca e outros desafios, estimamos que produza cerca de 30 sacos por hectare, o que é um bom número. Outros talhões, que não receberam o tratamento, devem produzir 10 sacos por hectare”, explica o cafeicultor. “Os resultados são promissores, mas refletem apenas um ciclo com a administração desses agentes biológicos. Precisamos acompanhar por pelo menos três ciclos para consolidar a tecnologia.”
“O primeiro uso documentado de bicho-lixeiro para controle de pragas é dos anos 1980, em algodoeiros na Colômbia”, informa o taxonomista Francisco José Sosa Duque, da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), um dos parceiros de Vacari na pesquisa. Não à toa, o uso de crisopídeos no cafeeiro surgiu no Brasil por causa da lavoura de algodão. Em 2013, a Associação Mineira dos Produtores de Algodão (Amipa) criou uma biofábrica para produzir macrorganismos, entre eles a microvespa parasitoide Trichogramma pretiosum, usada para combater ataques de lagartas.
Em seguida, começaram a multiplicar crisopídeos para predar ácaros, pulgões e ninfas de mosca-branca nas safras de algodão. “Como tínhamos 12 mil hectares de café nas propriedades dos nossos associados, decidimos testar os crisopídeos para atacar o bicho-mineiro e, de cara, vimos o potencial. Tanto que 90% da nossa produção de crisopídeos hoje é para café”, informa Lício Pena, diretor-executivo da Amipa.
Com produção em larga escala e resultados animadores em testes de campo, o próximo passo é tornar viável a comercialização dos crisopídeos. Para isso, a Amipa entrou com o primeiro pedido de registro da espécie Crhysoperla externa no Mapa. Enquanto aguarda aprovação, outro procedimento vem sendo observado pela associação: o controle conservativo, ou seja, o plantio de outras espécies para manter a população de crisopídeos por perto. “Em insetos adultos dissecados, nota-se uma preferência alimentar por plantas aromáticas e floríferas. Por isso, temos plantado essas espécies nas ruas do cafezal; algumas fixam nitrogênio e outras reciclam nutrientes, enriquecendo o solo”, comenta Pena. Se a estratégia der certo, o controle populacional dos bichos-mineiros passa a depender de menos liberações de crisopídeos, com a colonização de seus inimigos naturais no cafezal.
1. Controle biológico do cascudinho-da -granja, Alphitobius diaperinus (Coleoptera: Tenebrionidae) com base em um bioinseticida fúngico (nº 19/16636-8), Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Tatiana Magalhães (Decoy Smart); Investimento R$ 32.380,60.
2. Controle biológico do parasita Varroa destructor em colônias de Apis mellifera (nº 19/23976-0), Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Larissa Galante Elias (Decoy Smart); Investimento R$ 555.186,72.
HIGA, L. O. S. et. al. Acaricide resistance status of the Rhipicephalus microplus in Brazil: A literature overview. Medicinal Chemistry. v. 5, p. 326-33. 2015.
Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.
Saiba mais