O efeito tranquilizador da narrativa

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Quem já se emocionou ao ler um livro ou se viu na pele de uma personagem ao ouvir uma história sabe que as narrativas têm o poder de mexer com os sentimentos e, ainda que momentaneamente, transportar para outra realidade. Com essa ideia em mente, o físico especializado em neurociências e educação Guilherme Brockington, da Universidade Federal do ABC (UFABC), uniu-se à equipe do neurocientista Jorge Moll Neto, do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOr), no Rio de Janeiro, para medir o impacto que a contação de histórias infantis poderia produzir sobre o estado emocional e o nível de estresse de crianças internadas em Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Publicados em 1º de junho na revista Proceedings of the National Academy of Sciencies (PNAS), os resultados do trabalho indicam que participar da contação de histórias reduziu a dor e o grau de tensão das crianças e as ajudou a ter uma visão mais positiva do ambiente hospitalar.

“Toda vez que se conta uma história para uma criança, vê-se um efeito imediato. Na literatura científica, havia relatos anedóticos dessa transformação, mas não existiam medições das mudanças fisiológicas e psicológicas que ocorrem”, conta Brockington. “Até então, a evidência positiva era baseada no julgamento de que esse tipo de interação poderia distrair, entreter e aliviar um pouco o sofrimento”, completa Moll. Partindo dessas informações, os pesquisadores planejaram realizar um experimento que permitisse obter informações mais objetivas sobre esse efeito.

Em um hospital da Rede D’Or na zona sul da cidade de São Paulo, eles convidaram pouco mais de 80 crianças que haviam sido internadas na UTI (a maior parte por causa de problemas respiratórios, como asma ou pneumonia) para participar de um teste. De maneira aleatória, elas foram separadas em dois grupos: metade integrou a turma que ouviu a narração de uma obra infantil, enquanto a outra metade participou de uma brincadeira de adivinhação de charadas – nos dois casos, a atividade foi realizada por um contador de histórias da Associação Viva e Deixe Viver, que há 24 anos treina voluntários para ler para o público infantil em hospitais. As crianças tinham entre 4 e 11 anos de idade e, no primeiro grupo, podiam escolher a leitura de um entre oito livros – eram obras como Chapeuzinho amarelo, de Chico Buarque de Hollanda e Ziraldo; Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado; O grande rabanete, de Tatiana Belinky (1919-2013); e Gabriel, já para o banho, de Ilan Brenman. “Um grupo de especialistas selecionou as obras consideradas emocionalmente neutras porque queríamos avaliar o efeito do ato de contar história, e não do conteúdo emocional de cada uma delas”, explica Brockington.

Minutos antes e depois de cada sessão, os pesquisadores pediam para cada criança indicar em uma escala de 1 a 6 que nível de dor sentiam no momento e coletaram amostras de saliva para analisar a concentração de dois hormônios: o cortisol, que é liberado em condições estressantes, preparando o corpo para enfrentar dificuldades; e a oxitocina, que é produzida em situações de aconchego e favorece a criação de vínculos afetivos com outras pessoas. Tanto as crianças que ouviram a história quanto as que participaram da sessão de charadas no estilo “o que é, o que é?” foram, depois, convidadas a relatar o que lhes vinha à mente quando observavam sete cartas, cada uma com um desenho diferente:  hospital, médica, enfermeira, dor, remédio, livro e doente.

“Essas crianças estavam com algum grau de sofrimento, além do provocado pela própria doença, porque se encontravam isoladas e com dor. “Por isso, imaginávamos que tanto a contação de histórias quanto a participação nas charadas produziriam um resultado positivo, mas que a primeira seria mais poderosa”, explica Brockington. Apesar de isso realmente ter ocorrido, os resultados, de certa forma, surpreenderam.

De fato, o nível de cortisol diminuiu e o de oxitocina aumentou nos dois grupos de crianças. Os pesquisadores não esperavam, porém, que a contação de história promovesse um efeito tão maior. A concentração de cortisol caiu e a de oxitocina subiu duas vezes mais entre as crianças que ouviram a história do que entre as que responderam às charadas. A redução da dor também foi maior no primeiro grupo do que no segundo. “Eu não imaginava que fôssemos registrar um efeito fisiológico tão intenso”, afirma o psicólogo alemão Ronald Fischer, que integra a equipe do IDOr.

As crianças que ouviram o relato apresentaram um estado emocional mais positivo em relação ao tratamento, revelado pela livre associação de palavras diante das cartas com desenho, do que as que participaram da brincadeira de adivinhação. As deste último grupo descreviam com mais frequência a figura da enfermeira como sendo “aquela mulher má que me dá remédio de gosto ruim” e a da médica como “uma pessoa cruel que me cutuca com uma agulha”. Para elas, o hospital era “um lugar ruim para onde vou quando estou muito doente”. Já as crianças que haviam ouvido a contação de uma história eram mais propensas a dizer que a enfermeira era uma “pessoa que ajuda a ficar bem e ir para casa”, que a médica era “quem cuida de mim” e que o hospital era “um lugar onde fico até me sentir melhor”. Os pesquisadores atribuem esse estado emocional mais positivo, refletido nos níveis mais altos de oxitocina e reduzidos de cortisol, ao efeito das narrativas.

“Esse estudo confirmou uma percepção que já tínhamos”, afirma o publicitário Valdir Cimino, fundador da Viva e Deixe Viver, que reúne 1.100 voluntários que contam histórias para crianças em 86 hospitais do país. “A partir do relato dos voluntários, sabíamos que a contação de histórias exercia certa influência, porque as crianças ficavam menos amedrontadas e tristes e se tornavam mais colaborativas, por exemplo, aceitando realizar um exame que antes não queriam fazer.”

“É um estudo sério e bem realizado, que busca corroborar cientificamente a hipótese de que as histórias produzem um efeito psicológico positivo sobre quem as ouve”, comenta Fabiana Buitor Carelli, professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), onde coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Literatura, Narrativa e Medicina (Genam). “O trabalho vai além da visão superficial de considerar a narração da história apenas como forma de entretenimento e lazer e apresenta dados que validam um nível mais profundo, que é o do efeito sobre a dimensão emocional das crianças, a partir de dados empíricos.” Segundo ela, é também um estudo abrangente e feito sob uma perspectiva eminentemente brasileira. “Porém é preciso lembrar que, para além de seu poder terapêutico, enfatizado no trabalho, as histórias ainda podem ser compreendidas num terceiro nível de profundidade, fenomenológico e existencial, que propõe a narrativa como modo de configurar sentidos para o nosso estar no mundo. Nesta última acepção, a narrativa, como qualquer outra forma artística, se propõe como um clarão, uma abertura para o fulgurar de uma verdade anteriormente encoberta, como disse [o filósofo alemão Martin] Heidegger [1889-1976]. Tal dimensão não é abarcada por esse tipo de estudo”, ressalva Carelli.

Por ora, ainda não se sabe qual mecanismo da contação de história é responsável por todo esse efeito, mas há uma pista: um fenômeno chamado transporte narrativo. “Quando a pessoa fica imersa na história, ela passa a viver em outro mundo e se esquece de seus problemas e de suas ansiedades”, conta Fischer. “Alguns estudos já sugeriram que essa viagem também faz aumentar a empatia com outras pessoas.”

Se a imersão na história for o mais importante, ler um livro ou assistir a um filme produziria o mesmo efeito? “Não temos elementos para responder, mas suspeito que não seja tão intenso”, diz Brockington. Em sua opinião, o efeito do transporte narrativo é potencializado pela interação com quem está contando a história. Com base nos resultados do estudo, o pesquisador propõe que a contação de histórias para crianças seja mais disseminada nos hospitais. “É uma solução simples e de custo muito baixo. Os pais também poderiam passar a contar histórias para os filhos em casa, principalmente durante a pandemia, um período de incertezas e no qual se está longe dos amigos”, conclui o pesquisador, que conheceu muito cedo na vida o impacto transformador do ato de contar histórias.

Quando tinha por volta de 7 anos, uma pneumonia o fez adoecer gravemente durante semanas. “Passei a ter muito medo e não conseguia mais dormir. Como eu não dormia, não melhorava”, recorda. Sua avó materna, então, recomendou que, toda vez que o temor surgisse, ele contasse uma história para o medo, que se tornaria seu amigo. “Funcionou. Em pouco tempo, voltei a dormir. Até hoje, quando o medo surge, conto histórias para ele, que tem a forma de uma bola preta com dois olhinhos”, revela Brockington.

Equipe eCycle

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